quinta-feira, maio 11, 2017

PORCO SAPECADO

FARTURA NOS BONS TEMPOS ITAUNENSE

Ao contrário dos árabes e seus vizinhos judeus, os povos de origem romana sempre consumiram muita carne de porco. O mesmo se dá com os eslavos, anglo-saxões, gauleses, italianos, espanhóis e portugueses.

O leitão assado, frequente nas mesas de festas mineiras é comum em Portugal e na Itália, onde se come inigualáveis " porchettas".

Nos meus tempos de criança e de adolescente em Itaúna, comia-se muita carne suína. A cidade tinha três fábricas de banha, das quais lembro o nome de todas: banhas Grécia, Branca de Neve e Tavares. 

Produção quase toda ela exportada. Naqueles tempos os porcos eram engordados para fornecer gordura. Carne, costeleta, torresmo e outras partes eram vendidas na cidade a preço módico. Frango era comida de domingo.

Caro para a maioria dos bolsos. Carne bovina era pouco consumida. Matavam animais velhos, de carne ruim.

Voltemos aos porcos. Era comum, mesmo dentro dos limites urbanos, a engorda de suínos para consumo próprio. Raças bem caipiras, sobretudo Piaus, de muito toucinho e pouca carne. 

Cevados com "lavagem". Sobra de comida doméstica, engrossada com mandioca, abóbora cozida, sobras de horta, frutas da época. Banana caturra, manga, mamão de corda e outras sobras enriqueciam a ração. Milho e fubá, vez ou outra. Encarecia o trato.

Lembro-me bem de uma senhora que lavava as roupas de minha casa. Moravam na cidade, na rua João Dornas. O marido cumpria tarefas na roça. D. Sebastiana, esse era o nome dela, lavava roupas com sabão preto, feito por ela mesmo e ainda fazia pastéis para abastecer alguns botecos.

Diariamente levávamos até a casa dela a "lavagem". O mesmo se dava com outras freguesas de lavação de roupa. Recebia sobras de comida de várias casas e garantia o sustento dos leitões.

Nos idos de cinquenta do século passado, as preocupações com vigilância sanitária eram ínfimas. Engordava-se os suínos e o abate era feito em casa. Dia de matar um porco era dia de muito trabalho. 

O marido se encarregava de sangrar o bicho. Não sem antes de ter ajuntado muita palha de milho, de banana e de capim seco. Combustível orgânico para sapecar o defunto.

Apesar do berreiro (porco é muito escandaloso), o sofrimento era pouco. Uma estocada debaixo da pata dianteira, com faca comprida e afiada, ia direto no coração. Daí o termo "sangrar". 

O sangue, todo ele era aparado em vasilha limpa. Matéria prima para chouriços, feitos de puro sangue, temperos e um pouco de toucinho. Um prato inigualável. No Brasil, em Portugal, na Espanha e até na Inglaterra.

Depois de ter sido devidamente "sapecado" na palha de bananeira, de milho e restos de capim seco, chegava a hora de retalhar o animal. Coisa de quem sabia e separava carnes, banha em rama e toucinho, aproveitando tudo.

Serviço não faltava. Separadas as partes, a dona da casa e mais ajudantes da vizinhança tocavam a fritar toda a banha e o toucinho. As carnes eram fritas na gordura do bicho e estocadas em latas de vinte quilos, mergulhadas na gordura.

Os torresmos, guardados para enriquecer o feijão e a farofa. As aparas de carne, rapidamente eram bem temperadas com alho, sal, salsa, cebolinha e pimenta "comari". Nesse meio tempo, as tripas do animal já estavam devidamente lavadas e limpas com limão capeta.

Cheias de carne e toucinho, iam para o varal de bambu esticado em cima do fogão de lenha. Ali ficavam, num defumador natural, escorrendo o excesso de água e apurando o gosto.

Os miúdos do porco (rins, fígado e pulmão) eram ferventados para tirar o amargo. Depois, devidamente cortados e temperados eram consumidos.

O mesmo se dava com o miolo. Devidamente ferventado, era passado no ovo batido e bem frito em banha quente. Uma delícia.

Um dia inteiro de labuta e muita fartura. A ração diária de proteína animal estava garantida por uns dois meses. E ainda sobrava para presentear as freguesas da lavação de roupa, aquinhoadas com um bom pedaço de linguiça. 

Em tempo: a pele do porco também ia para o varal, fazer companhia as linguiças. Depois de bem escorridas eram fritas na gordura quente. Ótimas pururucas.

NOTAS
Atribuem a um enfarte sofrido pelo Gal. Eisenhower, em 1955, quando era presidente dos USA, a cruzada dos americanos contra a gordura suína. Foi demonizada e substituída por óleos e gorduras vegetais.

Deixaram de cozinhar com banha, mas não deixaram de lado o bacon, o presunto e outros derivados. Com o tempo e a campanha contra, desapareceram as fábricas de banha, inclusive no Brasil.

Da mesma, demonizaram a carne do porco. Com o tempo ela foi sendo reabilitada. Novas raças de suíno foram introduzidas. Porco para carne. Fim da era do "porco toucinho".

No final dos anos setenta, inventaram no Brasil uma tal "peste suína". A onda levou de roldão os porcos criados na cidade. Foram exterminados.

De uns anos pra cá, a onda gastronômica, principalmente em Minas está reabilitando o lugar da carne suína nas mesas elegantes. A carne conservada na banha, a moda antiga, já é encontradiço em muitos lugares.

Tenho pra mim que não tem o mesmo sabor de antigamente. Afinal, os porcos são de outra raça e comem ração. O trato à antiga fazia a diferença.


*Urtigão (desde 1943): pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, que viveu em Itaúna nas décadas de 50 e 60. Causo verídico enviado especialmente para o blog Itaúna Décadas em 11/05/2017.
Acervo: CORREIA, Conceição. Lavagem do porco: início dos anos 60 do séc. xx. Disponível em: http://santacruzmadeira.blogspot.com.br/2011/10/morte-do-porco.html
Organização: Charles Aquino


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