sexta-feira, maio 12, 2017

ITAÚNA: DA MARIA FUMAÇA ÀS METROVICKS


Itaúna era ligada a Belo Horizonte e ao interior de São Paulo pela Rede Mineira de Viação. Sucedânea da Viação Férrea Centro-oeste, a RMV tinha na época a maior malha ferroviária do Brasil. A cidade de Sant'Ana tinha tráfego diário de vários trens e por meio deles podia se chegar, com baldeações, ao Sul do Brasil, ao norte de Minas, à Bahia, ao Rio de Janeiro e até a Bolívia, nos trilhos da Transpantaneira. Demorava mas chegava. Razão do apelido "Ruim Mas Vai" em razão das letras RMV que estampava as locomotivas e os vagões.
Viajar de trem era confortável. Mesmo de segunda classe, em bancos de madeira, não era desagradável. Espaço de sobra para bagagem e passageiros. Nada de aperto e desconforto para as pernas. Bancos que viravam em cento e oitenta graus, propiciando aos viajantes a chance de prosearem face a face, sem perigo de torcicolos no pescoço. Banheiro a bordo, janelas amplas e venezianas para escurecer o ambiente para quem se dispusesse a tirar um cochilo. Plataformas para viajar com o vento no rosto. Perigoso para crianças e mulheres. Ótimo para moços. Fumavam ao ar livre com prazer. Fumar naquele tempo era chique. O tabaco fazia parte da vida do sexo masculino.
Muitas paradas, plataformas de estações repletas de viajantes e curiosos. A passagem do trem pela cidade era um acontecimento. Em muitos lugares, nos quais a passagem dos comboios era feita somente uma vez ao dia, era quase um programa obrigatório.
Nada de "fast food". Comida de estação ou de viajantes era quase padrão. Frango com farofa, comido com a mão, aos bocados. Quitandas, bolos, bolachas e comidas caseiras. Famílias em viagem era sinônimo de "matula" certa.
Os trens cruzavam o País em ritmo lento, mas constante. Cidade boa era toda aquela servida por ferrovia. Estrada de rodagem era sempre de terra. Muita poeira, desconforto, pneus furados. Em tempo de chuva, lamaçais intransponíveis. Jardineiras atoladas, arrancadas do barro pela força de juntas de boi.
Em Itaúna, além dos trens cargueiros, diariamente passavam vários trens de passageiros. Tinha o Misto — carga e passageiros, o Expresso, que tinha menos paradas. Somente em cidades maiores, e o mais sofisticado: o Noturno. Tinha cabines para dormir, com cama e camareiro, carro restaurante e cadeiras reclináveis para quem não pudesse comprar leitos nos dormitórios.
Itaúna tinha mais: um trem exclusivo da cidade para Belo Horizonte. Era chamado de Subúrbio. De manhã, saia da estação às quatro da manhã. Chegava em Belo Horizonte, na "gare" da rua Sapucaí, às nove. Cinco horas de viagem para percorrer noventa e seis quilômetros. Parava em qualquer estação, por menor que fosse o lugar. Voltava da Capital as duas da tarde. Bilhetes vendidos a preços irrisórios. Ao alcance de qualquer bolso.
Na estação da cidade tinha um desvio com o virador (rotunda) da locomotiva. Todos os dias ela era colocada lá e os manobristas da Rede se encarregavam de mover a geringonça com alavancas. Virada a "maquina" ela tomava posição para a viagem a Belo Horizonte.
Quando minha família se mudou para Sant'Ana de São João Acima, em 1951, as locomotivas eram todas a vapor. Valentes "Marias Fumaças", de barulho e apito inconfundível. Traz muitas saudades.
Dois ou três anos depois, foram trocadas por locomotivas inglesas, de tração elétrica. Muito imponentes, elegantes de linhas, as "Metropolitan Vickers" eram o suprassumo da tração ferroviária em sua época. O ramal eletrificado ia somente até Divinópolis.
Para os viajantes chegava ao fim o uso de guarda-pó, que evitava as fagulhas e o carvão das máquinas a vapor. Um luxo, politicamente corretas, as Metrovicks, nos anos cinquenta eram a vanguarda da energia limpa e responsável.

Três notas
Em São João Del Rey, no museu ferroviário, além de material rodante, vagões e diversas locomotivas de várias épocas, os visitantes podem conhecer uma Metrovick de perto. Passados quase setenta anos, as máquinas ainda são modernas. Linhas aerodinâmicas e limpas. Vale a pena conhecer o museu e todo o acervo.  
Vários comboios que diariamente passavam em Itaúna iam até a cidade de Cruzeiro, em São Paulo. De lá, grande parte do Brasil podia ser acessado. Demorava, mas chegava. Sem acidentes.
Este texto foi escrito em homenagem ao avô de Charles Aquino, o saudoso Aristides de Aquino que tinha o apelido de "Tico Tico ". Foi guarda-fios da Rede Mineira de Viação. O trabalho do guarda-fios era primordial para o transporte ferroviário. A tarefa deles era zelar pelos fios do telégrafo ao longo da estrada. Pelo telégrafo era feito o controle de tráfego que tornava viável a viagem em linha única. Das estações, por meio da comunicação em Morse, o itinerário de cada comboio era monitorado. Sem acidentes.


*Urtigão (desde 1943) é pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, que viveu em Itaúna nas décadas de 50 e 60. Causo verídico enviado especialmente para o blog Itaúna Décadas em 12/05/2017.

Acervo: O Trem Noturno Rio Doce da E.F.Vitória a Minas. Disponível em: http://tremriodoce.blogspot.com.br/2011/09/147-guia-levi-um-legado-historico-do.html


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