Itaúna
era ligada a Belo Horizonte e ao interior de São Paulo pela Rede Mineira de
Viação. Sucedânea da Viação Férrea Centro-oeste, a RMV tinha na época a maior
malha ferroviária do Brasil. A cidade de Sant'Ana tinha tráfego diário de
vários trens e por meio deles podia se chegar, com baldeações, ao Sul do
Brasil, ao norte de Minas, à Bahia, ao Rio de Janeiro e até a Bolívia, nos
trilhos da Transpantaneira. Demorava mas chegava. Razão do apelido "Ruim Mas
Vai" em razão das letras RMV que estampava as
locomotivas e os vagões.
Viajar
de trem era confortável. Mesmo de segunda classe, em bancos de madeira, não era
desagradável. Espaço de sobra para bagagem e passageiros. Nada de aperto e
desconforto para as pernas. Bancos que viravam em cento e oitenta graus,
propiciando aos viajantes a chance de prosearem face a face, sem perigo de
torcicolos no pescoço. Banheiro a bordo, janelas amplas e venezianas para
escurecer o ambiente para quem se dispusesse a tirar um cochilo. Plataformas
para viajar com o vento no rosto. Perigoso para crianças e mulheres. Ótimo para
moços. Fumavam ao ar livre com prazer. Fumar naquele tempo era chique. O tabaco
fazia parte da vida do sexo masculino.
Muitas
paradas, plataformas de estações repletas de viajantes e curiosos. A passagem
do trem pela cidade era um acontecimento. Em muitos lugares, nos quais a
passagem dos comboios era feita somente uma vez ao dia, era quase um programa
obrigatório.
Nada
de "fast food". Comida de estação
ou de viajantes era quase padrão. Frango com farofa, comido com a mão, aos
bocados. Quitandas, bolos, bolachas e comidas caseiras. Famílias em viagem era
sinônimo de "matula" certa.
Os
trens cruzavam o País em ritmo lento, mas constante. Cidade boa era toda aquela
servida por ferrovia. Estrada de rodagem era sempre de terra. Muita poeira,
desconforto, pneus furados. Em tempo de chuva, lamaçais intransponíveis.
Jardineiras atoladas, arrancadas do barro pela força de juntas de boi.
Em
Itaúna, além dos trens cargueiros, diariamente passavam vários trens de
passageiros. Tinha o Misto — carga e passageiros, o Expresso, que tinha menos
paradas. Somente em cidades maiores, e o mais sofisticado: o Noturno. Tinha
cabines para dormir, com cama e camareiro, carro restaurante e cadeiras
reclináveis para quem não pudesse comprar leitos nos dormitórios.
Itaúna
tinha mais: um trem exclusivo da cidade para Belo Horizonte. Era chamado de
Subúrbio. De manhã, saia da estação às quatro da manhã. Chegava em Belo
Horizonte, na "gare" da rua Sapucaí, às nove. Cinco horas de viagem
para percorrer noventa e seis quilômetros. Parava em qualquer estação, por
menor que fosse o lugar. Voltava da Capital as duas da tarde. Bilhetes vendidos
a preços irrisórios. Ao alcance de qualquer bolso.
Na
estação da cidade tinha um desvio com o virador (rotunda) da locomotiva. Todos
os dias ela era colocada lá e os manobristas da Rede se encarregavam de mover a
geringonça com alavancas. Virada a "maquina" ela tomava posição para
a viagem a Belo Horizonte.
Quando
minha família se mudou para Sant'Ana de São João Acima, em 1951, as locomotivas
eram todas a vapor. Valentes "Marias Fumaças", de barulho e apito
inconfundível. Traz muitas saudades.
Dois
ou três anos depois, foram trocadas por locomotivas inglesas, de tração
elétrica. Muito imponentes, elegantes de linhas, as "Metropolitan Vickers" eram o suprassumo da tração
ferroviária em sua época. O ramal eletrificado ia somente até Divinópolis.
Para
os viajantes chegava ao fim o uso de guarda-pó, que evitava as fagulhas e o
carvão das máquinas a vapor. Um luxo, politicamente corretas, as Metrovicks, nos anos cinquenta eram a
vanguarda da energia limpa e responsável.
Três
notas
Em
São João Del Rey, no museu ferroviário, além de material rodante, vagões e
diversas locomotivas de várias épocas, os visitantes podem conhecer uma Metrovick de perto. Passados quase
setenta anos, as máquinas ainda são modernas. Linhas aerodinâmicas e limpas.
Vale a pena conhecer o museu e todo o acervo.
Vários
comboios que diariamente passavam em Itaúna iam até a cidade de Cruzeiro, em São
Paulo. De lá, grande parte do Brasil podia ser acessado. Demorava, mas chegava.
Sem acidentes.
Este
texto foi escrito em homenagem ao avô de Charles Aquino, o saudoso Aristides de Aquino que tinha o apelido de
"Tico Tico ". Foi guarda-fios da Rede Mineira de Viação. O trabalho
do guarda-fios era primordial para o transporte ferroviário. A tarefa deles era
zelar pelos fios do telégrafo ao longo da estrada. Pelo telégrafo era feito o
controle de tráfego que tornava viável a viagem em linha única. Das estações,
por meio da comunicação em Morse, o itinerário de cada comboio era monitorado.
Sem acidentes.
*Urtigão
(desde 1943) é pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, que viveu em
Itaúna nas décadas de 50 e 60. Causo verídico enviado especialmente para o blog
Itaúna Décadas em 12/05/2017.
Acervo:
O Trem Noturno Rio Doce da E.F.Vitória a Minas. Disponível em: http://tremriodoce.blogspot.com.br/2011/09/147-guia-levi-um-legado-historico-do.html