O
meu pai foi sapateiro. Órfão de pai e mãe aos onze anos, o quarto de onze
irmãos, não pode estudar. Foi colocado em uma banca de sapateiro para aprender
o ofício. Caprichoso e detalhista, aprendeu muito bem. Por falta de emprego em
Rio Piracicaba no final da década trinta do século passado, mudou-se para Nova
Lima onde se aperfeiçoou no ofício. Foi um sapateiro de qualidade.
Quando
chegamos em Itaúna, em 1951, meu pai já não podia mais trabalhar. Estava quase
cego. Em pouco tempo foi-se o resto da visão. Deixara de enxergar com os olhos
e enxergava com os dedos. Com o tato apurado pela perda da vista, descobria
defeitos imperceptíveis em calçados. Difícil de encontrar um sapateiro que
passasse no seu crivo.
Em
meados do século passado, os sapatos eram raros em lojas. Feitos a mão, nas
oficinas do ramo. No interior, principalmente. Lembro-me bem dos profissionais
que se dedicavam a tal serviço em Itaúna. Falo de quem fabricava. Alguns só
consertavam. Sapatos eram caros e normalmente tínhamos só um par.
De
lembrança, alguns sapateiros da cidade. Joaquim
Palomino, nosso vizinho na rua Cassiano Dornas, fabricava e consertava
calçados perto do Grupo de "Cima". Na avaliação criteriosa de meu
pai, era razoável. Bom homem, bom amigo. Sem filhos, tinha um sobrinho que se
tornou meu amigo. O garoto morava em Belo Horizonte e passava férias na casa
dele. Anos depois, morei um ano na casa dele na Capital. Filho único, exímio
violonista. O pai dele também era sapateiro em Belo Horizonte.
O
Ivolino tinha uma grande banca de
sapateiro na Travessa Arthur Vilaça, no lugar onde depois foi erguida a
"Casa das Roupas". Fabricava de tudo, com as botinas gomeira em
maioria. No escrutínio de meu pai era um "remendão”. Serviço grosseiro,
sem capricho. Na adolescência tornei-me amigo de um filho dele, de nome
Expedito, vulgo "Ditão ". Uma boa figura. Não sei se ainda vive.
O
terceiro nas minhas lembranças, tinha o sobrenome Burrini. Italiano ou filho de peninsulares. Fabricava sapatos para
a elite da cidade. Oficina pequena, quase ao lado do Joaquim Palomino.
O
último de minhas lembranças chamava-se Cordocil.
Tinha uma banca de sapateiro pequena, na garage da casa do Chichico Saldanha na
rua Silva Jardim. Só fazia consertos. Um gozador, piadista e contador de casos.
A estudantada da Escola Normal fazia de sua oficina um ponto de reunião e
prosa. Parada obrigatória para os que ao saírem da aula passavam na sua porta.
Todo o dia tinha uma história nova.
De
outros, não me lembro. A cidade tinha vários curtumes e produzia couros
baratos. Vaquetas, solas e couro para forro de sapato. Camurças, pelica, cromo
e verniz eram compradas em Belo Horizonte ou Juiz de Fora. Alguns até
importados. As formas, todas elas eram importadas. Moldadas ao pé de ingleses,
franceses e alemães. Difíceis de adaptação aos pés brasileiros.
Em
tempo: meu pai era manco de uma perna e tinha o pé defeituoso. Acidente
acontecido quando tinha sete anos. Além de excelente mestre de sapataria,
precisava de sapatos bem feitos, adaptados aos seus pés. Daí a sua
"pinimba" com os sapateiros da cidade. Nada pessoal.
*Urtigão
(desde 1943) é pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, que viveu em
Itaúna nas décadas de 50 e 60. Causo verídico enviado especialmente para o blog
Itaúna Décadas em 17/05/2017.
Organização e Arte: Charles Aquino