*Maria Lúcia MENDES
Manhã,
bem cedo, começa a labuta na rua do Cascalho. Das casinhas sem reboque, empilhadas
morro a pique, as chaminés soltam uma fumaça cheirosa, sinal de que está pronto
o café. E a lenha estala nos fogões, cozinhando o feijão do almoço.
Uma
a uma, as janelas vão se abrindo. Surgem mulheres de lenço na cabeça, sacudindo
colchas de retalhos coloridos e batendo os travesseiros para tirar a poeira.
Logo depois, lá estarão elas à frente da casa empunhando enormes vassouras de
coqueiros. Dá gosto vê-las alegres, varrendo o chão batido num trabalho de
todas as manhãs. Vez em quando param e espicham conversa na lengalenga de
sempre: Compadre, não te conto nada...
Quando
o terreiro já está bem varrido, é a vez de aguar as plantas que, amontoadas
aqui e ali, dão um toque de graça à rudeza das pedras. São latas de manjericão,
malvinhas, plantas em pinicos, cravo-caboclo, queixo-caído, comigo-ninguém-pode
e espadas-de-São Jorge.
Ao
redor das casas, brotando dos alicerces, os pés de mulata-nasala vão colorindo
a paisagem com suas florzinhas regateiras.
Uma
velhinha espigada abre a porta da cozinha trazendo nas mãos uma cuia de milho:
Tico, tico, tico! P’rrr!...
E
bate na cuia chamando as aves que correm agitadas, bicando-lhe as chinelas e a saída
de algodão. Depois, ela, pondo-se de cócoras, vai jogando punhadinhos de milho
aqui e ali falando sozinha: este aqui é para o Natal, o carijó para o Ano
Novo...
Enquanto
isto, no quintal ao lado, as galinhas d’angola gritam encarapitadas no
sabugueiro: Tô fraca! Tô fraca! Tô fraca!...
A
dona da casa chega à porta da cozinha: Êta galinhada custosa!
E
entra novamente comandando a filharada: Varra essa casa direito, Maria! Olhe a panela
no fogo, Beré!
Lá
no alto, num barraco pitando de azul, Aninha da Capela costura em sua máquina
de mão. Ajeita os cabelos puxados num coquinho ralo e começa a cantoria: “Sete
e sete são quatorze, com mais sete, vinte e um. Todo mundo tem amor, só eu não
tenho nenhum”.
Um
rapazinho magro, carregando às costas um enorme balaio vai subindo a rua
devagarinho. Às vezes, para, descansa um pouco, e sua voz conhecida esparrama-se
pela rua afora: Sooo... Vadinho! Pão de sal! Forrobodó! Ô de casa?! Ô de Casa?!
A
freguesia acode: Ô de fora! E é um tal de mexe, remexe o fundo do balaio sob os
protestos de sempre: Deram outro corte no pão!
Acostumado
àquela cantilena, o padeiro sorri, põe o balaio às costas e segue seu caminho.
O
sol começa a brilhar pelos telhados e quintais. A rua ganha movimento. É muita
gente descendo com latas e rodilhas, rumo à torneira que serve aos moradores do
Cascalho e que fica lá embaixo no começo da rua. Pelo caminho, ninguém despreza
um dedo de prosa.
Oi,
Zé Camilo! O remédio foi bom pra danar. Qual é o remédio? Não estou me
lembrando não. E sem esperar resposta: Barbatimão, chapéu-de-couro, gravatá,
mutamba, erva-cidreira, canelinha...
Esse
tal de gravatá é um porrete pra tosse. E o velho cachimbando: Remédio das
plantas é muito melhor. O povo é porque não sabe. A fileira das latas vai
aumentando. E o vaivém prossegue animado.
Quem
já encheu sua vasilha, sobe o morro com lata d’agua num equilíbrio que dá
gosto.
Rua
do Cascalho! A pureza e a simplicidade de sua gente, suas casinhas morro a
pique, os pés de mulata-na-sala florindo nos alicerces. Eu também morei lá,
sempre algumas horas por dia, quando ia catar umas pedras redondinhas para jogar
nendes nas tardes calmas da infância. E. na roda-viva de hoje, ante os
obstáculos da vida, relembro a fileira das latas, os moradores da rua e inconscientemente
vou cantando: Nendes! Nendes! Um! Nendes! Nendes! Dois...
É
a roda-viva que continua.
* Escritora itaunense por herança e registro.
Fonte:
MACEDO, Maria Lúcia mendes Vera. Pedra de Cetim, BH, Gráfica e Ed Cultura,
2001, p.26,27,28.
Organização e arte: Charles Aquino