domingo, junho 25, 2017

ITAÚNA: RUA DO CASCALHO


*Maria Lúcia MENDES

Manhã, bem cedo, começa a labuta na rua do Cascalho. Das casinhas sem reboque, empilhadas morro a pique, as chaminés soltam uma fumaça cheirosa, sinal de que está pronto o café. E a lenha estala nos fogões, cozinhando o feijão do almoço.
Uma a uma, as janelas vão se abrindo. Surgem mulheres de lenço na cabeça, sacudindo colchas de retalhos coloridos e batendo os travesseiros para tirar a poeira. Logo depois, lá estarão elas à frente da casa empunhando enormes vassouras de coqueiros. Dá gosto vê-las alegres, varrendo o chão batido num trabalho de todas as manhãs. Vez em quando param e espicham conversa na lengalenga de sempre: Compadre, não te conto nada...
Quando o terreiro já está bem varrido, é a vez de aguar as plantas que, amontoadas aqui e ali, dão um toque de graça à rudeza das pedras. São latas de manjericão, malvinhas, plantas em pinicos, cravo-caboclo, queixo-caído, comigo-ninguém-pode e espadas-de-São Jorge.
Ao redor das casas, brotando dos alicerces, os pés de mulata-nasala vão colorindo a paisagem com suas florzinhas regateiras.
Uma velhinha espigada abre a porta da cozinha trazendo nas mãos uma cuia de milho: Tico, tico, tico! P’rrr!...
E bate na cuia chamando as aves que correm agitadas, bicando-lhe as chinelas e a saída de algodão. Depois, ela, pondo-se de cócoras, vai jogando punhadinhos de milho aqui e ali falando sozinha: este aqui é para o Natal, o carijó para o Ano Novo...
Enquanto isto, no quintal ao lado, as galinhas d’angola gritam encarapitadas no sabugueiro: Tô fraca! Tô fraca! Tô fraca!...
A dona da casa chega à porta da cozinha: Êta galinhada custosa!
E entra novamente comandando a filharada: Varra essa casa direito, Maria! Olhe a panela no fogo, Beré!
Lá no alto, num barraco pitando de azul, Aninha da Capela costura em sua máquina de mão. Ajeita os cabelos puxados num coquinho ralo e começa a cantoria: “Sete e sete são quatorze, com mais sete, vinte e um. Todo mundo tem amor, só eu não tenho nenhum”.
Um rapazinho magro, carregando às costas um enorme balaio vai subindo a rua devagarinho. Às vezes, para, descansa um pouco, e sua voz conhecida esparrama-se pela rua afora: Sooo... Vadinho! Pão de sal! Forrobodó! Ô de casa?! Ô de Casa?!
A freguesia acode: Ô de fora! E é um tal de mexe, remexe o fundo do balaio sob os protestos de sempre: Deram outro corte no pão!
Acostumado àquela cantilena, o padeiro sorri, põe o balaio às costas e segue seu caminho.
O sol começa a brilhar pelos telhados e quintais. A rua ganha movimento. É muita gente descendo com latas e rodilhas, rumo à torneira que serve aos moradores do Cascalho e que fica lá embaixo no começo da rua. Pelo caminho, ninguém despreza um dedo de prosa.
Oi, Zé Camilo! O remédio foi bom pra danar. Qual é o remédio? Não estou me lembrando não. E sem esperar resposta: Barbatimão, chapéu-de-couro, gravatá, mutamba, erva-cidreira, canelinha...
Esse tal de gravatá é um porrete pra tosse. E o velho cachimbando: Remédio das plantas é muito melhor. O povo é porque não sabe. A fileira das latas vai aumentando. E o vaivém prossegue animado.
Quem já encheu sua vasilha, sobe o morro com lata d’agua num equilíbrio que dá gosto.
Rua do Cascalho! A pureza e a simplicidade de sua gente, suas casinhas morro a pique, os pés de mulata-na-sala florindo nos alicerces. Eu também morei lá, sempre algumas horas por dia, quando ia catar umas pedras redondinhas para jogar nendes nas tardes calmas da infância. E. na roda-viva de hoje, ante os obstáculos da vida, relembro a fileira das latas, os moradores da rua e inconscientemente vou cantando: Nendes! Nendes! Um! Nendes! Nendes! Dois...
É a roda-viva que continua.   

* Escritora itaunense por herança e registro.

Fonte: MACEDO, Maria Lúcia mendes Vera. Pedra de Cetim, BH, Gráfica e Ed Cultura, 2001, p.26,27,28.


0 comentários:

Postar um comentário