segunda-feira, abril 01, 2019

VENDO A VIDA PASSAR


Saí do quarto agora, deixando minha doente quase dormindo. A sala, fria e silenciosa, convida ao sonho ...

Nosso relógio centenário não trabalha mais e parece guardar, em seu mutismo, a história de nossas vidas: as despedidas, as chegadas, as núpcias e os funerais ...

Vou a à janela para continuar minhas observações filosóficas. Nossa rua, antes tão quieta, tão sossegada, apresenta, agora, um movimento inusitado.

Com as leis mutáveis de trânsito, ela mudou de aspecto. Parece até que o mundo inteiro por ela transita.

A casa paroquial na esquina; um escritório de contabilidade; o consultório médico-pediátrico do Dr. João; um atelier de costura; uma república de estudantes; a oficina do Afonso; a vizinhança do INPS e, mais além, o ginásio, uma fundição, os Correios, o Dr. Valter, tudo isso lhe dá vida de cidade grande e oferece-me um largo campo de análise das relações humanas.

Há também o tráfego barulhento de carros de todas as marcas e de todos os veículos. Os caminhões, com grandes carregamentos, atestam o movimento do Comércio e Indústria da cidade. O caminhão de lixo aponta o cuidado da Prefeitura.

E as figuras humanas entram em cena .... Passam, agora, as Professoras, essas heroínas anônimas, que vão colocar mais um tijolo no edifício da civilização. Agora passam os escolares, as crianças que vão mudar o mundo de amanhã ...

Mães aflitas, com filhos doentes ou agonizantes[...], entram no consultório. Leprosos passam, estendendo os imundos chapéus à espera das moedas que, raramente caem.

Associados do INPS apresentam os mais diversificados tipos de transeuntes, com papéis à mão, discutem o andamento de seus processos.
Vêm eles de outras cidades e são, para mim, estranhos.

Passam os ricos e os pobres. Leio, em suas fisionomias ou em seus olhares, a apatia, o desânimo, a euforia, o tédio, o orgulho, a vaidade.

Passam os escravos do horário de trabalho que conhecem a velha professora de outros tempos, que lhes falara de tantas coisas e de muitos mistérios transcendentais.

Esses, para meu conforto, cumprimentam-me amistosamente.

Vendo-me sempre à janela, reconheço os que estranham isso e aparecem indagar: não terá ele* o que fazer?

Sai, agora, uma noiva do prédio vizinho. De branco vestida, de véu e grinalda, na sua inocente candura parece sonha com as preocupações de sua nova vida.

Talvez, por acaso, passa na rua uma pobre mãe solteira, arrastando brutalmente pelas mãos, uma criança doente... Coisas da vida.

Mais tarde, passa um enterro. Com passos lentos, os acompanhantes parecem ter pena de levar o morto ao cemitério e vão rezando baixinho suas orações.

São cenas do cotidiano. Por toda a parte, a alegria e a dor, a miséria e a riqueza e a lágrima se encontram.

Allan Kardec ensinou-me a compreender essas alternativas. São o determinismo [anêmico], as violações à lei do libre arbítrio; as vidas sucessivas que a isso forçam.

Depois de analisar a alma do homem nos quadros que presenciei, volto a meu livro, onde estudo a alma das plantas, a alma das coisas e encanto-me com o comentário de um cientista poeta: “Ao vermos uma mulher com flor, perguntar qual delas sofre mais” ...

Ouço a voz do Mineirinho, alegre e simpática, que me tira do devaneio e espalha alegria no ambiente.

Volto, depois, ao leito da minha doente, que, estranhando a ausência da enfermeira, indaga na expressão de seus olhos muito azuis, onde eu estivera. E eu lhe respondo mentalmente: à janela, vendo a vida passar ...        




Referências:
Texto: Nise Álvares da Silva Campos (In Memoriam)
Organização: Charles Aquino
Colaboradora: Cláudia Lage
Colaboradora: Lindomar Batista Lage
Acervo: Shorpy
*Original: ela

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