Saí do quarto agora, deixando minha doente
quase dormindo. A sala, fria e silenciosa, convida ao sonho ...
Nosso relógio centenário não trabalha mais e
parece guardar, em seu mutismo, a história de nossas vidas: as despedidas, as
chegadas, as núpcias e os funerais ...
Vou a à janela para continuar minhas
observações filosóficas. Nossa rua, antes tão quieta, tão sossegada, apresenta,
agora, um movimento inusitado.
Com as leis mutáveis de trânsito, ela mudou de
aspecto. Parece até que o mundo inteiro por ela transita.
A casa paroquial na esquina; um escritório de
contabilidade; o consultório médico-pediátrico do Dr. João; um atelier de
costura; uma república de estudantes; a oficina do Afonso; a vizinhança do INPS
e, mais além, o ginásio, uma fundição, os Correios, o Dr. Valter, tudo isso lhe
dá vida de cidade grande e oferece-me um largo campo de análise das relações
humanas.
Há também o tráfego barulhento de carros de
todas as marcas e de todos os veículos. Os caminhões, com grandes
carregamentos, atestam o movimento do Comércio e Indústria da cidade. O
caminhão de lixo aponta o cuidado da Prefeitura.
E as figuras humanas entram em cena ....
Passam, agora, as Professoras, essas heroínas anônimas, que vão colocar mais um
tijolo no edifício da civilização. Agora passam os escolares, as crianças que
vão mudar o mundo de amanhã ...
Mães aflitas, com filhos doentes ou
agonizantes[...], entram no consultório. Leprosos passam, estendendo os imundos
chapéus à espera das moedas que, raramente caem.
Associados do INPS apresentam os mais
diversificados tipos de transeuntes, com papéis à mão, discutem o andamento de
seus processos.
Vêm eles de outras cidades e são, para mim,
estranhos.
Passam os ricos e os pobres. Leio, em suas
fisionomias ou em seus olhares, a apatia, o desânimo, a euforia, o tédio, o
orgulho, a vaidade.
Passam os escravos do horário de trabalho que
conhecem a velha professora de outros tempos, que lhes falara de tantas coisas
e de muitos mistérios transcendentais.
Esses, para meu conforto, cumprimentam-me
amistosamente.
Vendo-me sempre à janela, reconheço os que
estranham isso e aparecem indagar: não terá ele* o que fazer?
Sai, agora, uma noiva do prédio vizinho. De
branco vestida, de véu e grinalda, na sua inocente candura parece sonha com as
preocupações de sua nova vida.
Talvez, por acaso, passa na rua uma pobre mãe
solteira, arrastando brutalmente pelas mãos, uma criança doente... Coisas da
vida.
Mais tarde, passa um enterro. Com passos
lentos, os acompanhantes parecem ter pena de levar o morto ao cemitério e vão
rezando baixinho suas orações.
São cenas do cotidiano. Por toda a parte, a
alegria e a dor, a miséria e a riqueza e a lágrima se encontram.
Allan Kardec ensinou-me a compreender essas
alternativas. São o determinismo [anêmico], as violações à lei do libre
arbítrio; as vidas sucessivas que a isso forçam.
Depois de analisar a alma do homem nos quadros
que presenciei, volto a meu livro, onde estudo a alma das plantas, a alma das
coisas e encanto-me com o comentário de um cientista poeta: “Ao vermos uma
mulher com flor, perguntar qual delas sofre mais” ...
Ouço a voz do Mineirinho, alegre e simpática,
que me tira do devaneio e espalha alegria no ambiente.
Volto, depois, ao leito da minha doente, que,
estranhando a ausência da enfermeira, indaga na expressão de seus olhos muito
azuis, onde eu estivera. E eu lhe respondo mentalmente: à janela, vendo a vida
passar ...
Referências:
Texto: Nise Álvares da Silva Campos (In Memoriam)
Texto: Nise Álvares da Silva Campos (In Memoriam)
Organização: Charles Aquino
Colaboradora: Cláudia Lage
Colaboradora: Lindomar Batista Lage
Colaboradora: Lindomar Batista Lage
Acervo: Shorpy
*Original: ela
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