domingo, abril 09, 2017

NECA FISCAL


Neca Fiscal era um senhor singular. Poucas pessoas sabiam seu nome. A maioria desconhecia a sua atividade. Era fiscal. Despachava em um escritório debaixo do Automóvel Clube. Era o bastante.
Muitos o conheciam como Sô Neca. Extrema ironia. Desculpem-me o trocadilho. Um Sô Neca casado com D. Syrene. Um paradoxo.
Ao que tudo indica, viviam felizes. Tinham três filhos. Dois homens — Roberto o mais velho. Oto foi meu colega de curso primário. Tinham também uma filha, Nicéia. D. Sirene, se a memória não me falha era professora de piano. Coisa fina. Para moças prendadas.
Neca Fiscal foi o introdutor do basquete em Itaúna. Tão logo terminada a quadra polivalente na Escola Normal, obra do dr. Guaracy, coube ao Sô Neca ensinar a arte da bola ao cesto aos jovens de Itaúna. Seu filho Oto era um atleta nato. Não do basquete. Foi campeão mineiro de vôlei. Pelo Minas Tênis Clube.
Outra singularidade de Neca Fiscal — tinha cachorros de raça. Bem diferentes. Num tempo no qual na cidade só se via os cachorros chamados "cabeçudos", que deram origem posteriormente ao Fila Brasileiro, os chamados veadeiros, cães magros e velozes, usados nas caça de veados e os vira-latas. Sô Neca tinha cachorros da raça boxer. Como o desconhecimento era geral, todo mundo dizia que ele criava buldogues. Objeto de admiração. Morava num casarão na rua Direita, na boca do beco da Caridade. Quem passava por lá, espreitava para conseguir divisar os tais cachorros.
A vida corria tranquila até que um dos cães apareceu doente. Neca Fiscal deu remédio e nada. Botou o cachorro no carro do Chico do Vítor e tocou para Belo Horizonte atrás do dr. Giovane, veterinário de fama, apesar de paraguaio de nascimento.
Sem chance. Sem diagnóstico e sem tratamento. Sô Neca voltou para Itaúna e na viagem ouviu o conselho do Chico do Vitor, chofer de praça muito rodado, conhecedor de Itaúna e redondezas.  —" O Neca: prás bandas do Córrego do Soldado, tem um curandeiro que é tiro e queda. Se quiser, antes de te levar em casa, te levo até lá. Quem sabe? 
Revigorado com a sugestão do motorista, Neca Fiscal ficou aliviado. Mal entraram em Itaúna, rumaram para a estrada de Itatiaiuçu, no caminho da casa do curandeiro. Em pouco tempo, a Chevrolet 1950 do Chico já estava na porta do casebre do benzedor. Desceram os dois. Chico do Vitor se encarregou da apresentação do visitante e do problema. O velho benzedor não se fez de rogado. — De imediato disse: "pode trazer o bicho." Ao ver o cão disse : "Cachorro fromoso, deferente. Num vai sê difici cura. "
Pegou de um ramo de arruda, benzeu o cão, mastigou algumas rezas entre os dentes e disse ao aflito Neca Fiscal: "O bichinho tá sem cume, quando chega em casa e de fome, da cumida e coloca esse pozinho. Na hora que coloca, fala o nome de dois preguiçoso de Itaúna."
Neca Fiscal respirou aliviado. Quis saber quanto era o trabalho. O benzedor disse-lhe para dar uma esmola bem boa para Nossa Sra. do Rosário dos Pretos. Sô Neca agradeceu, pediu benção ao curandeiro e se arrumou no banco do Chevrolet, junto com seu cachorro. Chegando em casa botou o cão na casinha, arrumou a comida do bicho, colocou o pozinho e falou bem alto: " Wilson Alemão e Jorge Turquinho." De imediato o pobre bicho esticou as canelas. Enfarte fulminante. Neca Fiscal ficou desolado. No dia seguinte bem cedo, procurou Chico do Vítor, contou-lhe o ocorrido e tocaram para o Córrego do Soldado a procura do benzedor.
Lá chegando Sô Neca esbaforido contou para o curandeiro a morte do cachorro e pediu explicações. Sem se alterar, o benzedor lhe perguntou: "Vosmecê fez tudo cumo falei? Deu cumida. Deu pozinho? Qual nomes de mintiroso vosmice falo?
Neca Fiscal repetiu os nomes: "Wilson Alemão e Jorge Turquinho". Daí que o curandeiro exclamou: " Vosmice mato o cachorro. Isso é remédio prá cavalo, num é pra cachorro!!!

 A história do basquete é verídica. Dos cachorros também. Do curandeiro é mentira!!!

*Urtigão (desde 1943) é pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, que viveu em Itaúna nas décadas de 50 e 60. "Causo" enviado especialmente para o blog Itaúna Décadas em 03/04/2017


BIOGRAFIAS: NECA FISCAL & DONA CYRENE

Manoel Gonçalves de Carvalho: Nasceu em BH no dia 15 de fevereiro de 1907 e faleceu em 30 de novembro de 2000, em Itaúna. Ele era conhecido como Neca Fiscal, devido ao cargo de Fiscal de Rendas. Foi um dos fundadores da Loja Maçônica Itaúna Livre. Construiu, quase que sozinho, o campo do Esporte, hoje Estádio “Manoel Gonçalves de Carvalho”, que pertence à Universidade de Itaúna. Foi treinador de basquete e vôlei, e o filho Oto se destacou na Seleção Juvenil Brasileira de Voleibol. Foi o primeiro itaunense criador de cães de raça, proprietário do Canil Pedra Negra. Seus cães eram admirados em todo Brasil.
Cyrene Morávia de Carvalho: Muito contribuiu com a educação musical de Itaúna pois foi a primeira mulher a tocar piano em bailes, no Clube que ficava na casa de Luiz Fagundes, na Rua Silva Jardim. Também foi a primeira professora de piano de Itaúna, ensinando sua arte para centenas de itauneneses. Fazia parte de um Coro que cantava nas de igreja e casamentos, com um instrumento que era conhecido como Harmônio, junto com Zezé Dornas, Hermínio Corradi, Duzolina Corradi e tantos outros. Como professora de piano organizava audições em casa e no Clube União.

BIOGRAFIAS: Revista Cidade de Itaúna.
Cidade de Itaúna - Edição III / Personalidades de Itaúna, Vile Ed, 2003., p.21.
Redação: Guaracy de Castro Nogueira / Geovane Vilela
Coordenação Editorial e de Pesquisa: Conceição Lopes
Revisão: Guaracy , Professor Miranda e Geovane Vilela

Mais sobre a vida de Dona Cyrene: As organistas da Matriz de Sant’Ana - < http://itaunaemdecadas.blogspot.com.br/2016/08/as-organistas-da-matriz-de-santana.html >.

Pesquisa e Organização: Charles Aquino