terça-feira, agosto 12, 2025

AS TRÊS IMAGENS DE SOBREIRA

A trajetória de um cristão-novo nas Minas setecentistas: da mácula inquisitorial à fundação de marcos sagrados

Manoel Teixeira Sobreira nasceu na freguesia de Vila Cova da Lixa, concelho de Felgueiras, no Arcebispado de Braga — região do Minho, norte de Portugal.

Filho de Domingos Vaz e de Luiza Gonçalves, ambos naturais da freguesia de Borba de Godim, também no concelho de Felgueiras, era oriundo de uma terra marcada por intensas correntes migratórias rumo ao Brasil. 

Movido por esse fluxo, atravessou o Atlântico e, nas Minas do século XVIII, encontrou o cenário propício para construir sua fortuna. Em Vila Rica, destacou-se como negociante e, posteriormente, como abastado proprietário de terras, firmando alianças estratégicas que asseguraram sua inserção e prestígio na sociedade mineradora.

O casamento com Maria Ribeira da Conceição, filha de Manoel Ribeiro Filgueiras — conterrâneo de Vila Cova da Lixa — e de Ana Maria de Campos, natural de Recife, Pernambuco, evidencia o peso das redes de origem como fator de confiança e apoio na mobilidade social colonial. Essas conexões de terra natal eram comuns entre reinóis no Brasil e serviam de base para parcerias de negócios e alianças matrimoniais.

Em 1742 o negociante já residia em Vila Rica, já casado, requereu em Lisboa a carta de familiar do Santo Ofício — cargo honorífico ligado à Inquisição portuguesa. Esse título não apenas conferia prestígio, mas garantia privilégios jurídicos e proteção em disputas, funcionando também como um selo de “pureza de sangue” para quem o obtinha.

O processo, porém, foi interrompido sem despacho final após diligências na sua terra natal revelarem suspeitas sobre sua ascendência. O comissário inquisitorial recolheu depoimentos que apontavam a avó paterna, Ana Ferreira, como filha de Cecília Ferreira, uma mulher solteira que tivera filhos com Henriques Monteiro, judeu castelhano fugitivo da Inquisição.

O relato das testemunhas de que Manoel teria adotado o sobrenome Sobreira (de seu bisavô, o Reverendo Manoel Sobreira) para se afastar do “Henriques” mostra um caso típico de estratégia onomástica para tentar apagar vínculos públicos com a origem judaica. Essa prática — mudar sobrenomes, enfatizar linhagens “limpas”, buscar alianças matrimoniais estratégicas — era comum entre cristãos-novos em busca de aceitação social.

Essa ascendência o inseria automaticamente na categoria jurídica e social de cristão-novo, grupo marcado por estigma hereditário na sociedade portuguesa de Antigo Regime. Embora o batismo o tornasse formalmente cristão, a “mácula de linhagem” — tida à época como transmissível indefinidamente — impunha barreiras a certos cargos e honras, entre eles a carta de familiar do Santo Ofício.

O caso de Sobreira ilustra bem o mecanismo inquisitorial de “prova de limpeza de sangue”, pelo qual a Inquisição investigava não apenas o candidato, mas seus ascendentes e colaterais por várias gerações. A descoberta de um antepassado “contaminado” bastava para reprovar o pleito, independentemente da conduta religiosa do candidato.

Apesar do insucesso na habilitação ao Santo Ofício, Manoel Teixeira Sobreira consolidou-se nas Minas como um agente econômico multifuncional. Em Vila Rica, atuou como comerciante e credor, figurando em ações cíveis — de Alma e de Crédito — na Execução para cobrar devedores, além de emprestar mercadorias — inclusive em operações com outros abastados comerciantes —, o que evidencia circulação de capital e uma rede de parceiros bem azeitada.

Além do comércio, investiu na mineração e na produção rural, garantindo receitas estáveis e expandindo sua influência. Participou da arrematação de contratos régios e obteve sesmarias estratégicas, transformando mercês reais em patrimônio e consolidando-se na elite mineradora do século XVIII. Ao lado da fortuna material, Manoel investiu na paisagem do sagrado, pedindo de Setúbal, Portugal três imagens por promessa: Senhor do Bonfim e duas Sant’Ana. Em contexto setecentista, devoção pública funcionava tanto como expressão religiosa quanto como estratégia de legitimidade — aproximando o benfeitor da comunidade e blindando reputações em tempos sensíveis à pureza de sangue.

Bonfim: o Senhor do Bonfim como padroeiro e identidade

Foi nas terras da Rocinha, onde Manoel Teixeira Sobreira fixara residência, que a primeira das imagens encontrou repouso. Em 1750, já na Fazenda Palestina, no vale do rio Águas Claras, ele obteve licença episcopal para erguer uma capela; ali foi entronizada a imagem do Senhor do Bonfim, núcleo do culto que mais tarde daria lugar ao atual Santuário.

Mais que um objeto devocional, a imagem funcionou como marco fundador do povoado: em seu entorno consolidaram-se vizinhanças, abriram-se caminhos, organizaram-se procissões, e multiplicaram-se promessas e ofertas votivas (os chamados ex-votos, objetos oferecidos aos santos como agradecimento por graças recebidas), estruturando uma sociabilidade centrada na fé, em uma religiosidade que combina o catolicismo tradicional com elementos populares, herdados da tradição ibérica e adaptados ao contexto mineiro.

O nome da cidade de Bonfim é uma homenagem direta à imagem do Senhor do Bonfim. A própria toponímia evidencia o papel estruturante dessa devoção: Bonfim é o nome que substituiu “Bonfim do Paraopeba” após a emancipação e elevação do arraial à categoria de cidade, em 1860. A fé e o reconhecimento popular à imagem foram tão marcantes que influenciaram, inclusive, os registros administrativos e a formação simbólica da comunidade.

 Santana do Paraopeba: a imagem de Sant’Ana e o barroco da fé rural

A história da imagem de Nossa Senhora Sant’Ana em Santana do Paraopeba — distrito do município de Belo Vale/MG — está intimamente ligada aos primórdios da colonização do Vale do Rio Paraopeba e ao desenvolvimento cultural e religioso da região. Erguida como expressão de fé e devoção pelos primeiros colonos portugueses, a imagem representa não apenas um símbolo religioso, mas também um testemunho material do processo de formação social e espiritual do interior de Minas Gerais no século XVIII.

Destinada à então São Pedro do Paraopeba, a segunda imagem de Sant’Ana acompanhou a frente mineradora que Manoel Teixeira Sobreira e o sócio Manoel Machado abriram na região. Por volta de 1735, ergueram no alto de um outeiro uma capela dedicada à padroeira, que rapidamente se tornou o núcleo religioso e organizador do povoado, rebatizando-o como Santana do Paraopeba. A imagem trazida por Sobreira permanece no altar; a capela, de feição barroca, foi restaurada e hoje é bem tombado do município de Belo Vale. A devoção se renova anualmente, sobretudo em 26 de julho, quando peregrinações e festejos reafirmam a memória devocional e a identidade local — sinais da durabilidade do gesto fundador de Sobreira.

A imagem de Sant’Ana, mais que um objeto de culto, representa um elo entre o passado e o presente, entre o sagrado e o território. Sua presença foi determinante para a formação espiritual, urbana e social de Santana do Paraopeba, que por sua vez é parte indissociável da história de Belo Vale.

Itaúna: a Sant’Ana das barrancas do Rio São João Acima

A imagem de Senhora Sant’Ana, padroeira de Itaúna, representa não apenas um símbolo religioso, mas também um marco histórico e identitário da cidade. A trajetória dessa imagem entrelaça-se com a própria formação do município, sendo possível traçar suas origens até os primeiros momentos da colonização da região, ainda no século XVIII.

A imagem depositada em Itaúna foi colocada inicialmente em um oratório simples de taipa de pilão no alto do morro, próximo a um antigo cruzeiro. Estima-se que esse oratório tenha sido erguido por volta de 1739. Foi nesse espaço que a imagem em madeira entalhada, proveniente da cidade de Setúbal, passou a receber as primeiras manifestações de fé da população local. Com o tempo, esse oratório daria lugar à Capela de Sant’Ana, construída com autorização do Bispo de Mariana, Dom Frei Manoel da Cruz, em 1750. A capela foi concluída em 1765 e, no ano seguinte, foi nomeado o primeiro capelão: o padre José Teixeira de Camargos.

A importância da imagem de Sant’Ana transcende sua presença física e simbólica. A devoção à santa impulsionou a nomeação do arraial como “Sant’Ana do Rio São João Acima”, expressão do vínculo afetivo e devocional da comunidade com sua padroeira. A própria origem do nome “Itaúna” não apaga essa marca inicial: antes de ser cidade, o lugar era reconhecido como um espaço de fé e pertencimento sob o manto de Sant’Ana.

Ao longo dos séculos, a imagem acompanhou o desenvolvimento do povoado, atravessando as transformações dos períodos colonial, imperial e republicano da história brasileira. Foi testemunha do surgimento de uma paróquia em 1841, da fundação da Companhia de Tecidos Santanense em 1895, e da emancipação político-administrativa do município em 1901. Em 1961, por Bula do Papa João XXIII, Sant’Ana foi oficialmente declarada Padroeira de Itaúna.

A imagem de Sant’Ana que hoje repousa na Matriz da cidade é considerada uma das relíquias religiosas mais importantes de Itaúna. Trata-se de uma escultura barroca em madeira policromada do tipo “Sant’Ana Mestra” — representando Sant’Ana ensinando a Virgem Maria. É, muito provavelmente, o bem religioso mais antigo do município e está protegida por tombamento municipal.

Seu valor ultrapassa o aspecto material: a imagem carrega consigo um elo emocional com a comunidade, sendo objeto de orações, promessas e peregrinações. Sua presença na vida litúrgica da cidade é marcada, especialmente, pela tradicional festa de julho, celebrada há quase três décadas, reunindo milhares de fiéis em novenas, procissões e outras manifestações de fé.

A imagem em cedro de Senhora Sant’Ana é mais que uma peça devocional — é uma herança cultural que guarda em si a memória da fé dos antepassados, dos pioneiros, das famílias, das comunidades negras e brancas que ali ergueram capelas, cantaram ladainhas e construíram a cidade ao redor da fé. Hoje, protegida como patrimônio tombado, a imagem continua a exercer sua função simbólica de agregação comunitária, memória viva e resistência cultural. Ao preservá-la, Itaúna preserva a si mesma — sua história, sua identidade e sua alma coletiva.

Tutela, casamento e cautela historiográfica

Em 1737, Manoel Teixeira Sobreira requereu a D. João V licença para transportar seus sobrinhos órfãos ao Reino, “debaixo de fiança”, a fim de apresentá-los “em juízo competente” e assumir a tutoria. O pedido descreve quatro menores (“três fêmeas e hum macho”), filhos de Manoel Ribeiro Filgueira; são nomeados Manoel, Anna Maria e Thereza, informando-se ainda que até então a mãe, Ana Maria de Campos, fora sua tutora e administradora.

Dado que outras fontes identificam a esposa de Sobreira como Maria Ribeira da Conceição, filha de Manoel Ribeiro (Filgueira) e de Ana Maria de Campos, é altamente plausível que Maria seja a menor nomeada no requerimento de 1737 — o que implicaria que Sobreira casou-se com uma das órfãs sob sua tutela. A hipótese é coerente com o conjunto documental (parentesco, redes de conterrâneos, cronologia), mas reclama confirmação direta em assento matrimonial e/ou autos de tutela (prestação de contas, termo de exoneração) conforme o direito vigente.

Em regra, tutores que se casavam com tuteladas deviam prestar contas e obter autorização da justiça eclesiástica/cível; rastros dessa tramitação podem constar dos livros de casamentos paroquiais (Vila Rica e entorno) e dos autos cíveis das comarcas.

Em suma, o raciocínio é consistente — mesmos pais, mesma rede e cronologia compatível —, e a identificação de Maria como uma das órfãs é provável. A demonstração cabal, contudo, depende da localização do assento de casamento (com menção da filiação e, idealmente, referência à tutela/dispensa) e/ou de peças judiciais relativas à tutela. A hipótese, agora fortalecida pela menção explícita do nome, permanece historiograficamente prudente até sua confirmação documental.

Cristão-novo

A trajetória de Manoel Teixeira Sobreira, cristão-novo nas Minas setecentistas, condensa as ambivalências do Antigo Regime luso-brasileiro: entre o estigma inquisitorial e a mobilidade social, entre a devoção sincera e a estratégia de legitimação, entre o capital econômico e o capital simbólico. Reprovado na habilitação ao Santo Ofício por “mácula de sangue”, Sobreira não permaneceu à margem: acumulou terras, diversificou negócios, firmou contratos régios e inscreveu o sagrado na geografia de Bonfim, Santana do Paraopeba e Itaúna. Cada uma dessas fundações religiosas, ancoradas em imagens trazidas de além-mar, revela como a fé podia se converter em instrumento de coesão social e em legado duradouro.

As Minas ofereceram condições únicas para a ascensão social dos cristãos-novos, com oportunidades mais rápidas e amplas do que em regiões como a açucareira. Espalhados por todo o território, eles mantinham redes de comunicação que atravessavam fronteiras e conectavam diferentes partes da América e da Europa. Nesse contexto, Manoel Teixeira Sobreira se destaca como exemplo de quem soube transformar essas conexões e oportunidades em patrimônio, influência e memória.

Mais que um proprietário ou negociante de vulto, foi mediador de sentidos e construtor de marcos de identidade coletiva. Ao redor das imagens que introduziu, consolidaram-se arraiais, moldaram-se paisagens e perpetuaram-se devoções que atravessaram séculos. Assim, a biografia de Manoel Teixeira Sobreira ultrapassa os limites da vida individual para se projetar na memória e no patrimônio de comunidades que, até hoje, rezam, celebram e se reconhecem sob a sombra de sua obra.

 Nota final

Esta pesquisa já estava concluída e pronta para ser publicada quando o jovem historiador Filipe Abner fez uma pergunta que mudou totalmente meu olhar sobre Manoel Teixeira Sobreira: sobre a possibilidade de ele e seus antepassados terem sido cristãos-novos.
Essa indagação abriu um leque de informações e conexões que até então eu não havia observado, levando-me a retomar os estudos, buscar novas fontes e aprofundar a análise. O resultado foi uma compreensão mais ampla e precisa de quem ele foi. Agradeço ao historiador Filipe por sua contribuição valiosa e o encorajo — assim como a todos os jovens pesquisadores — a continuar fazendo perguntas instigantes. São essas inquietações que movem a pesquisa histórica e fazem toda a diferença na construção do conhecimento.

Ao longo dos anos, realizamos visitas e pesquisas empíricas nos três locais históricos diretamente ligados à trajetória de Sobreira, acompanhados dos genealogistas Aureo Nogueira, Alan Penido e Alexandre Campos, cujo apoio e incentivo à valorização da história mineira foram fundamentais. Nessas ocasiões, fizemos registros fotográficos e filmagens que contribuíram para documentar e preservar a memória desses espaços. 

                                                    

Organização e pesquisa: Charles Galvão de Aquino – Historiador Registro nº 343/MG

Colaboradores:

Filipe Abner Silva Souza

Dr. Alan Penido

Alexandre Magno Martoni Debique Campos

Aureo Nogueira da Silveira


Referências consultadas:

Fontes Primárias:

ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO – AHU (Portugal). Minas Gerais, caixa 29, doc. 3087, 1737, p.1-8.  Projeto Resgate – BNDigital. Disponível em: http://resgate.bn.gov.br/docreader/017_RJ_AV/20771. Acesso em: 13 ago. 2025.

ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO. Extinção do Tribunal do Santo Ofício e da Inquisição. Portugal. Exposição virtual. Disponível em: https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/tribunal-do-santo-oficio/. Acesso em: 12 ago. 2025.

PORTUGAL. Tribunal do Santo Ofício. Conselho Geral. Diligência de habilitação de Manuel Teixeira Sobreira. Habilitações incompletas, doc. 4695, 1741-1742. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/788ee5ed33844c6392cd1cc2df2333ab .Acesso em: 12 ago. 2025.

Fonte Impressa:

Itaúna em Detalhes – Pesquisa Guaracy de Castro Nogueira - Enciclopédia Ilustrada de Pesquisa. Edição: Jornal Folha do Povo, 2003, fascículo, 2- 6.

Bibliografias: 

NOVINSKY, Anita. Ser marrano em Minas Colonial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 40, p. 203-220, 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/m9BHw96SxvjbjZwVbkvfpqr/?lang=pt . Acesso em: 11 ago. 2025. 

PEREIRA, A. M. Trajetórias individuais: uma proposta metodológica para o estudo dos comerciantes nas Minas setecentistas. Locus: Revista de História[S. l.], v. 22, n. 2, p. 495-496, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20836 . Acesso em: 12 ago. 2025. 

RODRIGUES LOPES, L. F. Os que fracassaram: os candidatos rejeitados pelo Santo Ofício em Minas Gerais Colonial. Locus: Revista de História[S. l.], v. 27, n. 1, p. 215–216, 2021. DOI: 10.34019/2594-8296.2021.v27.31898. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/31898 . Acesso em: 12 ago. 2025.

TRIGUEIRO, Renato. Museu de Cabeceira – Bonfim/MG – Documentário. Belo Horizonte, edição do autor, p, 8-10, 2008.

Sites: 

IBGE – Histórico do município de Bonfim – Disponível: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/bonfim/historico 

Jornal S’Passo – Luiz Mascarenhas, “Capela do Rosário” e “Sant’Ana, nossa Padroeira”. Disponível: https://jornalspasso.com.br/santana-nossa-padroeira/ 

Memorial Santana Belo Vale. Disponível em: https://visitebelovale.com.br/memorialdesantana     

Prefeitura de Belo Vale – Tombamento da Igreja de Santana. Disponível: https://www.belovale.mg.gov.br/pagina/11653/TOMBAMENTO%20IGREJA%20DE%20SANTANA

Prefeitura Municipal de Bonfim – Informações Históricas. Disponível: https://www.prefeiturabonfim.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/conheca-a-historia-de-bonfim/6594 

Prefeitura Municipal de Itaúna/MG – Quadro III Processo Tombamento da Imagem de Sant’Ana Mestra. Disponível: https://www.itauna.mg.gov.br/arquivos/imagem_da_senhora_de_santana_01105806.pdf

Prefeitura Municipal de Itaúna/MG: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Codempace Bens Patrimoniais Tombados e Registrados.  Disponível: https://www.itauna.mg.gov.br/portal/secretarias-paginas/154/relacao-de-bens--protegidos-por-tombamento/

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto. 

sexta-feira, agosto 08, 2025

SANTANENSE 1896

Progresso em Sant’Anna de São João Acima: A Fábrica Santanense em 1896

No final do século XIX, enquanto o Brasil vivia os primeiros anos da República, algumas regiões de Minas Gerais começavam a experimentar os sinais de um novo tempo: o da industrialização. Um exemplo eloquente desse processo pode ser encontrado em um registro publicado em Belo Horizonte, no qual se destacava o desempenho da Companhia de Tecidos Santanense, situada no então distrito de Sant’Anna de São João Acima — atual cidade de Itaúna.

Fundada em 1891, a fábrica já dava sinais expressivos de vitalidade econômica em 1896. Somente naquele ano, a produção alcançou a marca de mais de 300 mil metros de tecidos de algodão, brancos e coloridos, atendendo a uma demanda crescente. O lucro líquido registrado refletia uma gestão eficiente e um mercado consumidor em expansão. A baixa quantidade de tecidos em estoque no fim do ano mostrava que a produção encontrava escoamento rápido, sem acumular-se nos armazéns: havia, portanto, circulação, consumo e retorno.

Mais do que números, o texto revela aspectos fundamentais sobre o modo como o empreendimento se organizava. A diretoria da fábrica contava com figuras proeminentes da elite local. Essa configuração mostra como o capital econômico e o capital político frequentemente se entrelaçavam na condução dos negócios regionais, impulsionando o desenvolvimento com base nas redes de influência locais. Não à toa, o Conselho Distrital, espécie de câmara local, aprovou um voto de louvor ao gerente, reconhecendo o avanço da fábrica como expressão do espírito progressista da comunidade.

E é justamente neste ponto que o texto assume um tom simbólico. Ao dizer que o progresso da fábrica “vem atestar o espírito yankee dos santanenses”, não apenas pela força e dedicação dos empreendedores locais, mas também invoca um ideal de modernidade associado a eficiência, trabalho, inovação. A frase funciona como afirmação de identidade e orgulho regional — Sant’Anna se via (ou queria ser vista) como uma vila moderna, ativa, capaz de competir em igualdade com os centros mais dinâmicos do país.

Entretanto, o entusiasmo não anula a crítica. Mesmo com solo fértil e favorável, a região não tinha um desenvolvimento suficiente no cultivo do algodão, base essencial para o funcionamento da fábrica. A dependência da importação dessa matéria-prima "em rama" é qualificada como “quase vergonhosa”, denunciando uma contradição estrutural: uma fábrica moderna funcionando em uma região que não lhe garantia insumos básicos. Era o retrato de um modelo de industrialização que, apesar do sucesso técnico, ainda carecia de integração com a produção agrícola local. O alerta é claro: o verdadeiro progresso exigia não apenas máquinas e lucros, mas também planejamento e articulação entre diferentes setores da economia.

Este documento, mais do que um simples relatório empresarial, é uma janela para compreender os desafios e ambições do interior mineiro no final do século XIX. Revela como distritos como Sant’Anna de São João Acima buscavam se destacar em meio à economia nacional, apostando na indústria como caminho para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, expõe as limitações de um país que tentava se modernizar, mas ainda enfrentava entraves históricos, como a concentração fundiária, a fraca diversificação agrícola e a ausência de políticas públicas voltadas à integração produtiva.

Para a história de Itaúna, esse texto é uma fonte preciosa. Ele mostra que a origem industrial da cidade não foi mero acaso, mas fruto de estratégias, investimentos e sonhos de progresso. A Companhia de Tecidos Santanense foi um dos pilares dessa transformação — não apenas por suas máquinas, mas pelo que ela representava: uma aposta no futuro, feita com os pés ainda fincados em um passado que resistia a mudar por completo.

 INDÚSTRIA MINEIRA

Lê-se na Capital de Belo Horizonte: “A Companhia de Tecidos Santanense, fundada no próximo distrito de Sant’Anna de São João Acima (1891), teve um lucro líquido de 43:435$057 (Quarenta e três contos, quatrocentos e trinta e cinco mil e cinquenta e sete réis) ou 8% sobre o capital realizado. Durante o ano de 1896 a fábrica produziu 306.089,20 metros de algodões brancos e de cores, tendo estes produtos grande procura.

Em 31 de dezembro o depósito de fazendas era apenas 24:000$000 (vinte quatro contos de réis). A fábrica tem trabalhado com quarenta teares, e montou outras machinas que devem começar a funcionar em junho próximo. É gerente da empresa o senhor João de Cerqueira Lima, sendo presidente o deputado estadual, dr. José Gonçalves de Souza e tesoureiro o senhor Manoel José de Souza Moreira.

O parecer do Conselho Distrital propôs um voto de louvor ao gerente da companhia, cujo estado de progresso é indiscutível e vem atestar o espírito yankee dos santanenses. Lamentamos tão somente, que ali, onde a uberdade do solo compensa todo o trabalho, não se desenvolva em larga escala o plantio do algodoeiro, pois é quase vergonhoso, se é que não o é em absoluto, ver-se o nosso Estado importar algodão em rama!


A análise desse documento permite refletir sobre diversos aspectos econômicos, sociais e culturais da época:

O ano de referência é 1896, período da Primeira República (ou República Velha), em que Minas Gerais buscava redefinir sua posição econômica após o declínio do ciclo do ouro e diante da ascensão do café em outras regiões. O texto evidencia a tentativa de inserção de Minas no processo de industrialização nacional, através da produção têxtil, um dos primeiros setores industriais brasileiros a se consolidar.

A Companhia de Tecidos Santanense é apresentada como um exemplo de sucesso, com: Lucro líquido de 43:435$057 réis, equivalente a 8% sobre o capital realizado, valor expressivo e indicativo de boa gestão e demanda favorável. Produção de 306.089,20 metros de tecidos brancos e coloridos — o que mostra não apenas capacidade produtiva, mas também diversificação de produtos. Baixo estoque no fim do ano (24 contos de réis), sinalizando uma venda eficiente da produção. O dado de que os produtos tinham “grande procura” reforça a ideia de que havia mercado consumidor, tanto local quanto regional, para os têxteis produzidos no interior mineiro.

A fábrica operava com quarenta teares e se preparava para instalar novas máquinas em junho, o que demonstra um processo contínuo de modernização tecnológica e ampliação da capacidade produtiva. Esse dado é relevante para compreender como, mesmo em regiões interiores de Minas, havia esforço em acompanhar os avanços industriais, importando provavelmente equipamentos estrangeiros (possivelmente ingleses ou americanos) ou de centros industriais mais desenvolvidos como São Paulo e Rio de Janeiro.

O parecer do Conselho Distrital, que propõe um voto de louvor ao gerente, demonstra o envolvimento cívico da comunidade com a fábrica. A expressão “espírito yankee dos santanenses” é especialmente significativa: elogia-se a mentalidade empreendedora, associando-a aos ideais de progresso e modernização dos Estados Unidos (referência ao “American way of business”). Essa comparação reforça um tipo de orgulho regional e um desejo de diferenciação positiva dentro do Estado de Minas, sugerindo que Sant’Anna seria um exemplo a ser seguido por sua capacidade de inovar e gerar riqueza.

Apesar do bom desempenho da fábrica, a falta de plantio de algodão na própria região. Considerando que essa era a matéria-prima fundamental para a indústria têxtil, o texto denuncia a dependência de importação de algodão em rama, o que era visto como “quase vergonhoso”.

Isso revela um paradoxo no modelo de desenvolvimento local: havia indústria, mas não havia uma base agrícola de suporte devidamente articulada, resultando em custos mais altos e dependência externa. O autor sugere que, dada a “uberdade do solo” (fertilidade), o cultivo do algodão deveria estar mais disseminado — uma crítica ao atraso agrícola diante do avanço industrial.

Este texto é uma fonte primária importante por revelar: a inserção do interior mineiro no processo de industrialização nacional; a formação de elites industriais locais com base na política e nos negócios familiares; o esforço de modernização industrial e tecnológica; a valorização simbólica da iniciativa privada e do trabalho como formas de progresso; e ao mesmo tempo, a denúncia de desequilíbrios estruturais, como a falta de articulação entre agricultura e indústria.

Para o estudo da história de Itaúna e de Minas Gerais, esse documento reforça a importância da Companhia Santanense como elemento fundacional da cidade de Itaúna, que viria a emancipar-se pouco depois, em 1901. Também serve como base para análises sobre o empreendedorismo regional, a transição entre economia agrária e industrial, e as tensões entre progresso técnico e estrutura agrária tradicional.

 

Referencias:

Organização e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa:

Jornal “Minas Geraes” - Ouro Preto, MG, 18 de maio de 1897, ed. 130, p.5.

Jornal “Minas Geraes”, Ouro Preto, 17 de novembro de 1891, ed. 248, p.3.

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.