A crônica da
Professora Nise Campos, publicada em 1964, é uma homenagem ao violinista,
pianista, compositor, arranjador musical e regente Coral, professor Jesus
Ferreira e ao Coro Orfeônico do Instituto São Rafael de Belo Horizonte/MG. Ao mesmo tempo, é uma
reflexão sobre a percepção humana, o talento artístico e a capacidade de
superação. A crônica oferece uma análise poética e emotiva sobre a apresentação
do coro na cidade de Itaúna, destacando o impacto do legado do professor Jesus
Ferreira tanto para a comunidade local quanto para o cenário cultural mais
amplo.
Enxergar além dos
olhos — a crônica começa com uma observação sobre o fato de que, apesar de
serem fisicamente cegos, os alunos de Jesus Ferreira, sob sua liderança, são
descritos como pessoas que “enxergam mais do que nós que só vemos o que nos
impressiona a retina”. Nise Campos ressalta que a cegueira física dos alunos do
Instituto São Rafael é superada por uma visão interior profunda. Jesus
Ferreira, sendo cego, é visto como alguém dotado de uma "luz intensa"
que transcende a capacidade de enxergar com os olhos físicos, iluminando sua
inteligência, moralidade e sensibilidade artística.
Essa visão
reforça a ideia de que a verdadeira percepção vai além dos sentidos físicos e
se baseia em uma conexão mais profunda com a alma e o coração. Ao dizer que o professor Jesus e seus alunos veem de maneira mais clara que aqueles que possuem visão
física, Nise Campos nos desafia a reconsiderar nossos conceitos sobre o que
significa "ver". É uma crítica implícita à superficialidade com que
muitas vezes lidamos com as aparências e uma celebração da profundidade
espiritual e artística que os cegos possuem.
O artista e a sua
terra natal — Nise Campos também destaca o talento excepcional de Jesus
Ferreira, referindo-se a ele como “artista e poeta” que vibra a alma ao reger
seu coro e ao tocar seu violino. A autora reconhece o domínio de Jesus Ferreira
sobre a música, assim como seu profundo amor por Itaúna, sua cidade natal. Isso
fica evidente quando ela menciona que ele fala com sinceridade sobre Itaúna,
mostrando que, mesmo com suas conquistas e viagens, sua ligação emocional com
sua terra natal permanece forte.
Esse aspecto da
crônica ilustra como o professor Jesus Ferreira, apesar de suas conquistas nacionais e
internacionais, nunca perdeu suas raízes. Ele é descrito como alguém que
projeta o nome de Itaúna no cenário cultural, elevando o prestígio da cidade ao
mesmo tempo em que traz reconhecimento ao Instituto São Rafael e à música
brasileira. A cidade, no entanto, é retratada de forma ambígua, como se não
tivesse aplaudido o suficiente o talento e a dedicação de seu filho ilustre.
A apresentação e
a dimensão transcendental da arte — a apresentação do Coro Orfeônico do
Instituto São Rafael é descrita de maneira profundamente poética, transportando
o leitor para um mundo de “luminosa catedral de sonhos” e “uma floresta
encantada”. A autora não descreve de forma técnica a performance, mas captura a
sensação mágica que ela provocou no público, como se os cegos tivessem trazido
uma luz espiritual para a cidade de Itaúna.
Essa escolha de
palavras sugere que a música tem o poder de transcender as limitações físicas e
de criar experiências que tocam a alma. Quando Nise Campos menciona que
“fecharam-se as janelas de seus olhos, Jesus, mas as portas de sua alma
abriram-se para novas e desconhecidas claridades que só os cegos podem ver”,
ela eleva a música a um espaço quase místico, onde aqueles que não têm visão
física são, paradoxalmente, capazes de acessar uma compreensão mais profunda do
universo.
O legado do professor Jesus Ferreira — a crônica termina com uma nota de esperança e reconhecimento, destacando o legado de Jesus Ferreira. Ao afirmar que "seus olhos que já foram lâmpadas que se queimaram [...] voltarão de novo, um dia, a ver fulgurar o sol e as estrelas", Nise Campos sugere que, embora ele não possa ver com os olhos físicos, seu legado continuará a brilhar e será eternamente reconhecido. A imagem de "velas e círios que arderam" simboliza a dedicação de sua vida à música e à educação, e que, mesmo sem a visão física, ele deixou uma marca indelével no mundo.
A crônica da professora Nise Campos, além de ser uma homenagem ao professor Jesus Ferreira, destaca o impacto profundo que ele teve em sua comunidade e no cenário musical. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a percepção e a superação, desafiando as noções comuns de deficiência e exaltando a capacidade do espírito humano de enxergar além das limitações físicas. O amor de Jesus Ferreira por sua terra natal, Itaúna, e seu compromisso com a música e a educação são evidentes, e seu legado continua a inspirar, tanto em sua cidade quanto além.
BRILHANTE
FESTIVAL
O Coro Orfeônico
do Instituto São Rafael exibiu-se nesta cidade, conforme noticiámos dia 15
último. Não vamos descrever a beleza dessa exibição, que a Dona Adília Lima nos
proporcionou. Vamos publicar, apenas o que a Professora Dona Nise Campos
escreveu. E, na sua singela crônica ela disse tudo.
Piu (Jornalista da Folha do Oeste)
Crônica
da Professora Nise Campos — 1964
Os cegos que veem.
Palavras a Jesus Ferreira; dizem todos que você é cego. Que são cegos os
cantores e musicistas que você trouxe do instituto São Rafael e que são alunos
seus.
Eu, porém, digo
que vocês enxergam mais do nós que só vemos o que nos impressiona a retina. Sei
que aquelas crianças, rapazes e mocinhas veem interiormente, tudo o que lhes
fala a alma e ao coração e que você, meu prezado ex-aluno hoje, posso dizer meu
querido mestre, tem dentro dos olhos apagados, uma luz tão intensa, que nos
deslumbraria a todos, se nos fosse dado ver. E essa luz vem de sua portentosa
inteligência, do seu gigantesco aprumo moral e intelectual.
Você é um
artista, na lídima acepção do termo, artista e poeta, vibra a alma nos gestos,
quando você rege o seu coro; o sentimento mais alto dita-lhe palavras e a gente
sente sua sinceridade quando você fala de Itaúna. No seu violino você tange as
suas mágoas e a sua ternura, você sobre por não poder ver normalmente como nós.
Mas o verbo ver que você sabe sentir e conjugar espiritualmente, sem uma força
de expressão transcendental, que poucos sabem entender.
O seu recital foi
magnífico. Pareceu-me estar numa luminosa catedral de sonhos. Ouvindo os seus
rouxinóis, sabiás e patativas, transformou-se o ambiente numa floresta
encantada. E todos se calaram porque agora iriam canta todos os uirapurus da
Serra. Fecharam-se as janelas de seus olhos, Jesus, mas as portas de sua alma
abriram-se para novas e desconhecidas claridades que sós os cegos podem ver.
Você, membro da
Academia de Música de São Paulo, está projetando o nome do Instituto São Rafael
no cenário cultural do país e do exterior e, por conseguinte o nome de seu
Estado e de sua gente. Itaúna não soube aplaudi-los como o merecem. Sua terra
tem agora a mais um nome a inscrever no Pantheon de glória. E eu lhes
digo, nessas mal alinhavadas linhas, que seus olhos que já foram lâmpadas que
se queimaram e velas e círios que arderam, voltarão de novo, um dia, a ver fulgurar
o sol e as estrelas...
MEMORÁVEL PROFESSOR ITAUNENSE
Referências:
Organização, arte
e pesquisa: Charles Aquino
Fonte impressa: Jornal Folha do Oeste, Ed. 516, p.1,3. 1964, Itaúna/MG.