No fim do século XIX, em pleno coração do arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima — hoje Itaúna, em Minas Gerais — desenrola-se um dos mais expressivos embates públicos da história local: uma disputa moral, administrativa e profundamente pessoal entre quatro figuras ilustres da vila mineira.
O palco? A Companhia de Tecidos Santanense. Os protagonistas? O
reverendo Vigário Antônio Maximiano de Campos, o Coronel João de Cerqueira Lima
(gerente da companhia e autor do texto), o acionista Manoel Gonçalves de Souza Moreira e o conselheiro fiscal Francisco
Manoel Franco.
O texto intitulado “O Senhor Francisco Manoel Franco e o Seu
Juramento”, publicado na Gazeta de Oliveira em abril de 1898, é uma
peça documental marcada pela retórica ardente, pela defesa vigorosa da honra e
pelo uso do espaço público — no caso, a imprensa — como arena de justiça. Franco
jura em plenário pela veracidade das informações — e é justamente esse
juramento que dá nome ao texto.
Cerqueira Lima, sentindo-se injustamente acusado de irregularidades na
gestão da companhia, redige uma carta aberta à comunidade, na qual reconstitui,
com riqueza de detalhes, as tentativas de difamação baseadas em rumores e
insinuações não comprovadas. A acusação mais grave? Que o Coronel se
abasteceria no armazém da companhia sem pagar pelos produtos, e que teria
rendimentos ocultos incompatíveis com sua função.
Diante da Assembleia de acionistas, o Coronel não apenas se defende com
dados, documentos e uma narrativa precisa de suas ações, como exige provas. No
clímax do embate, a verdade é tensionada com a chegada de uma carta do acionista Manoel Gonçalves — suposto autor da informação — que, tomado de
surpresa, revela não ter conhecimento prévio de tal episódio.
Além de relatar esse episódio com detalhes minuciosos, o texto é um
excelente exemplar da linguagem de época: solene, rebuscada, repleta de
expressões que traduzem a eloquência e o peso moral de se viver numa sociedade
pautada pela reputação e pelo prestígio pessoal. A estrutura do discurso é
digna das grandes defesas forenses, com introdução, argumentação, provas e
clímax dramático. Trata-se, portanto, de um documento que atravessa a mera
defesa pessoal — é também um testemunho sobre os valores, os modos de
governança e os códigos de honra de uma vila em transformação.
O texto é exemplar da oratória mineira do século XIX, especialmente em
contextos de embates administrativos e de honra. Sua ortografia está em
consonância com as normas da época. A força do texto está na sua capacidade de dramatizar um conflito
ético, utilizando-se de uma retórica formal e cuidadosamente estruturada, que
ainda hoje ecoa como documento cultural, lingüístico e histórico.
Convido você, leitor ou pesquisador da história mineira, a conhecer e analisar mais
de perto esse embate singular — onde honra, palavra, fé e poder administrativo
se entrelaçam num texto digno das grandes batalhas retóricas do Brasil
oitocentista.
Venha descobrir como, numa época de poucas testemunhas e de muitos
boatos, a verdade encontrava sua melhor aliada na palavra escrita — e como um
homem usou a eloquência, a imprensa e o senso de justiça para defender seu nome
diante da história.
O
SENHOR FRANCISCO MANOEL FRANCO E O SEU JURAMENTO
“Jurar
e por na balança da justiça alguma coisa mais do que o próprio nome, a
consciência em abono da verdade”
Como gerente da
Companhia de Tecidos Santanense, cumpria um dever submetendo a apreciação do
muito digno Conselho Fiscal da Companhia, os livros e mais papeis bem como o
balanço relativo ao ano administrativo de 1897.
Cumpria ainda um
dever respondendo as informações que me foram solicitadas pelo muito digno
membro do Conselho Revmo. Vigário Antônio Maximiano de
Campos, que, solícito e escrupuloso no desempenho de seu cargo quis este
senhor de um modo, orientar-se da origem de alguns títulos do vencimento de
alguns empregados e mesmo das condições em que minhas compras no armazém da
fábrica, eram efetuadas.
Levar suas
pesquisas a este ponto de indagar como eram realizadas as minhas compras no armazém,
vi nisso, uma revelação como vislumbre de gravidade; abençoada revelação. O
senhor Vigário Campos como membro do Conselho Fiscal da Companhia de Tecidos
Santanense, cumpria o seu dever, era fiscal competia-lhe, portanto, ver,
examinar, informar-se de tudo e emitir sua opinião.
Lamento que outro
tanto não fizesse o digno membro do Conselho, senhor Francisco Manoel Franco;
porquanto limitou-se apenas a folhear em silêncio as páginas do Diário, a
demorar suas vistas de profissional no balanço e não passou disso; não pediu sequer
um esclarecimento.
Dar-se-ia talvez
por satisfeito como o seu escrupuloso exame não carecendo de esclarecimento
algum; ou pelo menos contentar-se-ia com os que me haviam sido solicitados pelo
Revmo. Vigário Campos, os quais de muito bom agrado forneci.
Dias depois
comparecia o digno membro do Conselho Fiscal, senhor Thomaz Antônio de Andrade;
a ele foram por mim postos a sua disposição todos os livros e mais papéis bem
como o balanço sobre qual cumpria-lhe dar seu parecer etc. Por minha vez chamei
atenção desse senhor para que sindicasse com minuciosidade sobre a origem de
qualquer lançamento ou procedência de qualquer título que lhe parecesse
estranho, declarando-me ao mesmo tempo pronto para fornecer-lhe todo e qualquer
esclarecimento que preciso fosse.
O seu exame não
foi menos escrupuloso; porquanto orientando [...] financeiro da Companhia e do
seu [...] industrial, mostrando satisfeito. Habilitado o Conselho Fiscal a
[...] o autorizado parecer, apresentou a Diretoria em 16 do corrente.
A reunião dos
dois primeiros membros teve lugar em 11 do corrente, e em 12 fui surpreendido
com o que meu respeito havia sido informado, o meu particular amigo Vigário
Campos. Quem seria o autor de semelhantes informações? É cedo ainda; e o seu
nome não importa.
De fato, uma
suspeita que implica a própria desonra pairava de um modo premeditado e covarde
sobre meu nome. Ciente pois do que a meu respeito se dizia, ou antes boatos
dirigidos, pensados e premeditados por uma só cabeça, fiquei tranquilo e
agradeci de bom grado a providência que assim me deparava um justo motivo de
explicar com as mais cabais e satisfatórias provas, o timbre de todos os meus
atos. Aproximava-se o dia da reunião da Assembleia Geral dos acionistas,
convocada para 26 do corrente; belíssima ocasião; ela seria ciente de todos os
meus feitos.
O título “Despesas
Gerais” sobre o qual poderia visar alguma suspeita, foi por mim apresentado em
conta corrente, objeto por objeto, pagamento por pagamento, ao muito digno membro
do Conselho Vigário Campos, em 20 do corrente, ficando a mesma com ele até dia
26. E esta conta não datava só o do ano de 1897, pois vinha desde a data em que
assumi a gerência da Companhia em 1895. Ainda
[...] julguei [...] ainda para o mesmo [...] sorte que apresentou todas,
poderia a Assembleia julgar-se habilitada a sondar qualquer irregularidade se
realmente essa existisse.
Chegou finalmente
o dia 26. As 12 horas da manhã assumia a presidência da mesa o acionista
Vigário Campos que declarou acharem-se presentes acionistas que representavam 1.249
ações, por conseguinte; mais de um terço do Capital da Companhia.
Aprovado o
parecer do Conselho; rejeitada por unanimidade a emenda, que mandava distribuir
como dividendo os lucros suspensos, proposta por um dos seus membros, senhor
Franco, no respectivo parecer; aprovadas enfim, todas as contas da Companhia,
reeleitos os mesmos ficais para o exercício de 1898, eu exercendo um dos mais
sagrados deveres, pedi a palavra.
Senhores Acionistas.
Ciente das
referências que a meu respeito foram feitas ao digno membro do Conselho senhor
Vigário Campos, referencias que desabonam o meu caráter, a minha reputação, a
minha consciência, eu acredito cumprir um dever acrescentando-vos de todo tempo
de minha gestão, a origem de todos os meus atos administrativos, a cópia fiel
de todos os lançamentos sobre os quais possa haver qualquer suspeita. Declaro-vos, pois, que, sobre qualquer título,
qualquer lançamento, sobre enfim, qualquer ato de minha gestão, acho-me
habilitado a demonstrá-lo, a esclarecê-lo, a prová-lo.
E aqui perante
vós, perante quem quer que seja, eu protesto contra semelhantes referências e
convido o seu autor a provar-me o que disse, a menos que não queira passar por
um caluniador.
Dizer-se que me
alimento à custa do armazém da Companhia sem que me sejam debitados os gêneros
que careço; dizer-me que as venda da Companhia ou aliás, o seu produto em
fazendas, fora por mim confessado em $300 e tantos contos de réis em 1897; dizer-se
finalmente que as venda da Companhia no próximo mês de janeiro, foram ainda por
acusadas em $50 e tantos contos; Senhores! Isto importa em um abuso de tal
ordem, que reclama as vossas mais sérias e mais enérgicas providências.
Eu cumpro um
dever apresentando-vos todos os meus atos documentados por uma escrita que não
sofreu emendas, e que pelo seu sistema todos os títulos estão harmoniosamente
ligados, uns aos outros. Ei-la aí está; examinai-a; sondai esses descalabros
dos quais eu peço, eu exijo formalmente a prova. Por minha felicidade
achavam-se presentes o enformado e o informante; este apresentou-se finalmente.
Quem havia de ser
meu Deus! Um dos membros do Conselho Fiscal, o senhor Francisco Manoel Franco;
que boas provas, deve ter; sim porque na sua qualidade de fiscal compete lhe ou
pelo menos assiste-lhe o dever de saber, examinar, pedir informações a pessoa
competente; ouvir todo e qualquer esclarecimento; fiscalizar, enfim, o erro o
descalabro, a mentira e emitir em seu parecer a verdade nua e crua de suas
pesquisas.
Vejamos as suas
provas: Quem diz o que o senhor se fornece do armazém da Companhia, dos gêneros
para seu consumo e que estes não lhe são debitados, são os empregados da
fábrica.
Um fiscal de uma
Companhia fundar suas provas por um boato, de cujo eu duvido formalmente e
tanto que o convido a provar-me declinando o nome ou nomes desses empregados.
Mas não isto o senhor Franco não fará de certo; a menos que não queira
comprometer a terceiros inocentes. Mas contra essa prova vã indigna de um homem
e muito mais de um fiscal, aí tem minha caderneta; mais depressa ela lhe dirá
que os gêneros alimentícios ou outros quaisquer que ali compro-me, são
debitados pelo custo e carreto com 10% do que de graça.
Aí está minha
conta corrente com a Companhia; vereis por ela que hão de ter sido regulares os
pagamentos que tenho feito do armazém da fábrica. Os empregados são que dizem,
sim; os empregados da intriga, os empregados da inveja, os empregados da
calúnia, digo-lhe eu.
Continuam as suas provas: Que o produto da fábrica de 300 e tantos contos em 1897, ouvi do senhor. De mim? Ainda bem que o senhor fiscal andou desta vez melhor. Disse-lhe então que o produto da fábrica em 1897 foi de 300 e tantos contos? Pois olhe o balanço diz menos; apenas nos demonstra 184 contos e tantos.
E o que é que
vossa senhoria quis pretender com isso? Acaso demonstrar uma lesão em meu
benefício próprio de cento e tantos contos! Extraordinária gerência! Não embaraçada
por uma crise que fará época na história brasileira, assombra com lucros
fabulosos ultrapassando a expectativa ao senhor Franco, mas ao mesmo tempo
mesquinha de mais em distribuir dividendos.
Não senhor
Franco; o senhor não ouviu isso de mim, afirmo-lhe; porém o que é fato é
ter-lhe declarado a produção da fábrica em 1897, em 320 e tantos mil metros de
fazendas; e como 320 e tantos mil metros de fazendas, não são 300 e tantos
contos, logo o senhor sacrificou a verdade com os seus algarismos exagerados.
Ter-lhe dito
também que as vendas da fábrica em janeiro já saiam a 50 e tantos contos, não é
certo; porém poderia dizer-lhe, e disto não tenho lembrança e nem sequer me
lembro se conversamos a respeito que as nossas vendas inclusive pedidos para
aprontar, andavam por cento e tantos fardos. Mas não é só.
O senhor Franco
não satisfeito de pretender mesclar a reputação alheia, de mim que procuro
simplesmente nos meus trabalhos, nos meus esforços, de um modo condigno,
tornar-me sempre merecedor dos aplausos da minha consciência, da minha família,
da sociedade em que vivo, quis ainda ir mais longe comprometendo a terceiros.
Vejamos, vejamos
a sua última prova; ela vai ser enérgica, precisa e incontestável:
— Ouvi do senhor
Manoel Gonçalves de Souza Moreira, que o senhor contara a senhora deste, ter o
senhor como gerente da Companhia de Tecidos Santanense o rendimento anual de
vinte e tantos contos, subindo, por conseguinte as suas retiradas a esta
importância. O senhor diz que ouviu do senhor Manoel Gonçalves (ainda bem que
isto me satisfaz), e eu digo-lhe que o senhor não ouviu do senhor Manoel
Gonçalves o que SSª acaba de falar; eu afirmo-lhe em pleno vigor da palavra,
com toda energia que vai nesta expressão, o senhor não ouviu.
A um protesto tão
formal o senhor Franco em plena Assembleia, surpreendeu-a prestando um juramento,
em abono do que acabava de relatar. Jurar! — Eu juro! — quando estas palavras
nos saem dos lábios, o homem parece reunir nelas, toda a extensão do seu ser:
crenças honra consciência o próprio nome forma o conjunto dessas duas palavras
— eu juro. — E o senhor Franco jurou. Não lhe quis dizer que sacrificara o seu
juramento: não obstante manifestei-lhe a mesa, que duvidava da sua validade
porquanto sabia que tal confidência, não podia ter existido.
Compreende-se,
pois, que o senhor Franco jurou e eu duvidei do seu juramento; a exceção desta
confidência — recurso de momento não logrou provar coisa alguma; as suas
suspeitas as suas provas, careciam da verdade. Ficou o juramento.
Ora eu tinha
duvidado e quem duvida em questões desta natureza, deseja, ou pelo menos
assiste-lhe o dever, de documentar as suas dúvidas com provas cabais. Assim foi
que dirigi ao senhor Manoel Gonçalves de Souza Moreira, a seguinte carta:
Ilustríssimo
senhor Manoel Gonçalves de Souza Moreira.
Convido a
Vossa a Senhoria a provar-me a existência de uma confidência por mim feita a
vossa Excelentíssima Senhora ... e que versa sobre o seguinte: Ter eu declarado
a vossa Excelentíssima Senhora [...] da Companhia de Tecidos Santanense o
rendimento anual de vinte e tantos contos, subindo, por conseguinte a esta importância
as minhas retiradas.
Faço isto pelo
fato de Assembleia Geral de acionistas hoje reunidos, o membro do Conselho
Fiscal, senhor Francisco Manoel Franco ter declinado o nome de Vossa Senhoria
como transmissores de semelhante confidência. Esperando à vossa resposta, conto
que não me será negado fazer dela o uso que me convier. Com apreço me
subscrevo. De Vossa Senhoria, Coronel João de Cerqueira Lima. Sant’Anna, 26 de março
de 1898.
Eis a resposta:
Ilustríssimo senhor João de Cerqueira Lima. Acabo de receber, neste momento, a vossa carta datada de ontem e apreso-me em respondê-la. Surpreendeu-me a vossa pergunta, porque nunca falei nem ouvi falar de pessoa alguma que Vossa Senhoria recebia da Companhia Tecidos Santanense vinte e tantos contos de rendimento anuais. E posso garantir-lhe que não sei o quanto Vossa Senhoria tem de vencimento e nem me compete saber; e tenho por hábito não ocupar ou indagar daquilo que não me compete ou não diz respeito meu particular. Pode fazer desta o uso que convier. Subscrevo. Vosso admirador. Manoel Gonçalves de Souza Moreira. Basta estou satisfeito. Sant’Anna de São João Acima 28 de março de 1898.
Referências:
Pesquisa e elaboração:
Charles Aquino
Hemeroteca Digital Brasileira.
Biblioteca Nacional. Jornal Gazeta de Oliveira (MG), 17 de abril de 1898, nº
552, p. 2. Disponível em: <https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=850420&pagfis=119>.