terça-feira, outubro 28, 2025

GABRIEL: O FUNDADOR

Gabriel da Silva Pereira: o Fundador de Sant’Ana do Rio São João Acima (Itaúna/MG)

A história de Itaúna — antigo arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima — nasce das trilhas abertas pelos desbravadores que, no início do século XVIII, deixaram o litoral e adentraram os sertões em busca de ouro, terras e novas devoções. 

Entre esses pioneiros, um nome ergue-se como símbolo da origem da cidade: Gabriel da Silva Pereira, português da província do Minho, homem de fé, minerador, sertanista e fundador do núcleo que se tornaria o coração de Itaúna/MG.

Mais que um simples colonizador, Gabriel representou o elo entre dois mundos: o europeu e o bandeirante, a disciplina régia e a religiosidade popular. Sua trajetória, assim como a de sua esposa Florência Cardoso de Camargo, descendente direta do bandeirante João Lopes de Camargo, uniu as tradições de Portugal e São Paulo, fixando em terras mineiras o início de uma longa linhagem que moldou a sociedade itaunense.

Gabriel da Silva Pereira era natural de Barcelinhos, freguesia às margens do rio Cávado, no Concelho de Barcelos, Arquidiocese de Braga, província do Minho, norte de Portugal — região de antigas tradições rurais e religiosas. Consta, embora sem comprovação documental definitiva, que era filho do Juiz de Vintena Joaquim Pereira, homem de posição e influência local.

Chegou ao Brasil ainda jovem, com menos de vinte anos, no final do século XVII, em meio ao movimento migratório de portugueses atraídos pelas recém-descobertas minas de ouro. Por volta de 1720, Gabriel encontrava-se firmemente estabelecido nos sertões do rio São João, em território que mais tarde formaria Itaúna, possuindo escravos e trabalhando na mineração aurífera e na ocupação das margens dos rios São João, Manso e Paraopeba.

Gabriel fixou residência definitiva na paragem do rio São João, onde ergueu as primeiras moradias e roças, abrindo a picada que ligava Bonfim a Pitangui, percurso de dezoito léguas (cerca de 108 km). Essa antiga rota, margeando o rio São João até a foz do rio Pará, foi o caminho que deu origem ao núcleo do atual município de Itaúna.

Naquela época, o sertão mineiro era território de risco e de promessas. Gabriel manteve estreitas relações com os desbravadores Thomaz Teixeira, Manoel Neto de Mello e Manoel Teixeira Sobreira, todos ligados à família do bandeirante João Lopes de Camargo — cujas filhas vieram a casar-se com esses pioneiros, estabelecendo alianças familiares e econômicas que estruturaram o domínio da região.

Florência Cardoso de Camargo: Herdeira do Sangue Bandeirante

Gabriel casou-se com Florência Cardoso de Camargo, descendente direta do bandeirante João Lopes de Camargo, unindo, assim, as tradições portuguesas de Barcelos ao sangue bandeirante paulista. O casal teve filhos legítimos e também filhos naturais, aos quais Gabriel concedeu terras e dotes, garantindo-lhes sustento e posição. 

Entre eles destacam-se Timóteo da Silva Pereira, casado com Antônia Maciel, e Francisca da Silva Pereira, esposa de Manoel Pinto Madureira, ambos estabelecidos nas sesmarias do Pará e São João.

Esses filhos e genros herdaram as propriedades que originaram fazendas, sítios e povoados rurais que se tornaram o embrião do território itaunense. Os filhos legítimos receberam as principais terras como dote e herança, perpetuando o patrimônio da família Pereira-Camargo-Madureira.

Casada com Gabriel da Silva Pereira em 12 de agosto de 1739, na Capela de São Francisco Xavier, freguesia de Cachoeira do Campo, Florência Cardoso de Camargo nasceu em 1719, na Fazenda Ribeirão do Gama, freguesia de São Sebastião (atual distrito de Bandeirantes, Mariana/MG). Era filha do bandeirante João Lopes de Camargo, um dos grandes desbravadores do interior mineiro.

Florência faleceu em 25 de setembro de 1800, sendo sepultada na Capela de Santana, em Santana do Rio São João Acima — local onde hoje se ergue a Igreja Matriz de Itaúna, símbolo da continuidade da fé e da memória da fundadora.


Seu inventário, arquivado no Instituto Histórico de Pitangui, teve sentença de partilha proferida em 22 de novembro de 1834. Entre os descendentes, destaca-se o Padre José Teixeira de Camargo, que em 1814 figurava como administrador e testamenteiro, reforçando a vocação religiosa que atravessou gerações.

A tradição local registra que, por volta da terceira década do século XVIII, Gabriel da Silva Pereira foi o responsável pela fundação do povoado da “Paragem do São João Acima” ao erguer um oratório. Esse gesto de fé, típico dos fundadores do período colonial, representou não apenas um ato devocional, mas o verdadeiro marco simbólico do nascimento do arraial. Em torno desse templo primitivo cresceram as casas, as lavras, as famílias e a fé — base sobre a qual se edificaria o futuro município de Itaúna/MG.

LEGADO HISTÓRICO

Gabriel da Silva Pereira recebeu o posto de Sargento-Mor, título dado a homens de reconhecido prestígio, posses e serviços à Coroa. Em 1724, já figura como irmão da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Cachoeira do Campo, fundada em 1716, o que confirma sua inserção no universo religioso e político da época.

Em 1741, já como morador de Cachoeira do Campo, Gabriel obteve uma sesmaria de meia légua em quadra no Paraopeba, em terras limítrofes às de Manoel Teixeira Sobreira, Manoel Pereira da Cruz, Domingos de São José e Silva e outros. A carta de concessão menciona que as medições foram feitas “fazendo pião em um pau grosso de gameleira”, descrição típica das demarcações coloniais do período.

Posteriormente, entre 1751 e 1754, recebeu outras duas sesmarias: uma nas cabeceiras do rio São João, termo de Pitangui, e outra na Paragem do Rio Pará, onde estabeleceu seus filhos e genros. Nessas terras, desenvolveram-se lavras de ouro, currais e roças, que se tornariam o embrião econômico e social do futuro arraial de Santana do Rio São João Acima.

Homem de ação, Gabriel participou de movimentos de defesa e ocupação da região. Em 1758, organizou uma expedição contra quilombolas, que ameaçavam os primeiros povoadores de Minas, partindo de Pitangui com conterrâneos portugueses como Antônio Rodrigues da Rocha, Domingos Gonçalves Viana, Antônio Dias Nogueira e Luiz da Silva, acompanhados de escravos e guias. O grupo combateu os quilombos entre os rios Lambari e São Francisco, garantindo a segurança das lavras e das fazendas e permitindo a posterior ocupação por mineradores e lavradores.

Esses feitos, reconhecidos pelas autoridades, levaram à concessão de novas sesmarias em retribuição aos serviços prestados à Coroa, consolidando o prestígio e a liderança de Gabriel no território que ajudava a moldar.

A atuação de Gabriel da Silva Pereira não se limitou a Itaúna. Fontes históricas apontam sua presença decisiva na formação do Espírito Santo do Itapecerica (atual Divinópolis). Segundo o historiador Flávio Flora, foi ele quem levou a imagem de São Francisco de Paula, vinda de Ouro Preto, para a nova capela construída em 1763, e incentivou o crescimento do povoado, já então vinculado às rotas entre Pitangui, Tamanduá e São João del-Rei.

A narrativa local preserva a lembrança de que o Juiz de Vintena Joaquim Pereira enviou seu filho, o Sargento-Mor Gabriel da Silva Pereira, à frente de camaradas e vizinhos, para fixar moradia e fundar o marco civilizatório na região — o que demonstra seu papel pioneiro também na expansão de outros núcleos do centro-oeste mineiro.

Na Revista do Arquivo Público Mineiro (1907, ano XIII, folha 77), consta a existência de uma Capela de São Vicente Ferrer, situada em sua fazenda, no alto do Morro do Gabriel, posteriormente substituída, em 1904, por uma capela de pedra erguida no mesmo local. Esse dado reforça a perenidade de sua influência e a memória devocional que o nome “Gabriel” manteve na paisagem local por mais de um século.

Durante o século XIX, os descendentes de Gabriel continuaram entre as famílias mais influentes da freguesia. Seus nomes aparecem em inventários, batismos e casamentos da comarca de Pitangui, confirmando sua presença constante no espaço social e religioso.
Com o passar do tempo, as gerações seguintes fundiram-se com outros troncos familiares, como os Rodrigues da Silva, Penido, Fonseca, Nogueira e Camargos, perpetuando a linhagem fundadora até o século XX.

Em 1761, Gabriel exercia o cargo de Presidente do Senado da Câmara de Pitangui, o que confirma seu reconhecimento político e econômico. Faleceu provavelmente em 1762, com cerca de setenta anos, deixando viúva Florência, que sobreviveria mais trinta e dois anos.

A trajetória de Gabriel da Silva Pereira representa o elo entre o bandeirismo paulista e a fixação luso-brasileira no interior de Minas. Sua vida reflete o tripé que moldou o território mineiro: a fé, o trabalho e a posse da terra.

Fundador, sertanista e devoto, ele não apenas desbravou as matas e as margens do rio São João, mas lançou os alicerces da comunidade que, séculos depois, daria origem à cidade de Itaúna — espaço de fé, memória e identidade. Seu nome permanece como símbolo da coragem e da esperança que ergueram, sobre a antiga picada dos desbravadores, o coração de uma cidade mineira.




Referências:

Elaboração e Pesquisa: Charles Aquino

 SILVA, Edward Rodrigues da. O bandeirante João Lopes de Camargo. Revista da ASBRAP – Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia, n. 20, p. 348–350, 2022. Disponível em: https://asbrap.org.br/artigos/rev20_art16.pdf  Acesso em: 28 out. 2025.

NOGUEIRA, Guaracy de Castro. Itaúna em Detalhes - Enciclopédia Ilustrada de Pesquisa. Edição: Jornal Folha do Povo, 2003, Fascículos, 6-9, 16-18.

DIOCESE DE DIVINÓPOLIS. Histórico da Paróquia de Sant’Ana – Itaúna. Diocese de Divinópolis, [s.d.]. Disponível em: https://diocesedivinopolis.org.br/historico-da-paroquia-de-santa-ana-itauna/  Acesso em: 28 out. 2025. 

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.