A escritora e
memorialista Iracema Fernandes dá significativa contribuição ao preservar e
detalhar a história dos “Nossos Cemitérios” em sua obra “Itaúna através dos
tempos”. Com uma escrita de fácil compreensão, mas repleta de preciosidades,
ela captura a essência e os aspectos mais íntimos do cotidiano da cidade. No
texto, a autora faz uma comparação entre “o cemitério velho e o novo” de
Itaúna, destacando aspectos históricos, arquitetônicos e sociais.
Em seu relato sobre os cemitérios do município, Fernandes pinta um quadro vívido do antigo cemitério, comumente chamado de “cemitério velho”, localizado próximo à Praça da Matriz (sendo este a segunda necrópole construída depois de 1853), onde cessaram os sepultamentos no primeiro cemitério, que se localizava no Adro da Capela no alto do Morro do Rosário. Através de suas palavras, somos transportados para um tempo em que o “cemitério velho” era rodeado por um sólido muro de pedras e marcado pela presença austera dos frades franciscanos capuchinhos — “barbôneos”.
Eles não apenas
pregavam e construíam cemitérios, mas também exerciam uma disciplina rígida — “Esses
padres eram muitos severos para pregar. Se o pecado contado em confissão fosse
pesado, eles batiam no penitente com o crucifixo que traziam, no peito”.
Fernandes
descreve com minúcia a “capela arredondada de piso de terra solta” (Capela de
São Miguel e Almas), os poucos mausoléus, e as separações dentro do cemitério,
onde pagãos e suicidas eram enterrados, como o Sr. Plácido Coutinho, um renomado
professor que cometeu suicídio dentro do cemitério em 1899 (grifo nosso — o
motivo deste ato, segundo “pareceristas” da época, foi pelo fato do professor ser
adepto do kardecismo organizando reuniões espíritas em sua residência). Protestantes
não eram enterrados ali, pois era “propriedade da igreja católica”, submetido
ao poder eclesiástico.
Fernandes
descreve ainda os encontros de famílias vizinhas nas escadas do cruzamento
principal, onde o humor e a devoção se entrelaçavam. A chegada de Donana,
esposa do Coronel Zacarias Ribeiro, com suas fervorosas orações, transformou
esses encontros em momentos de profunda espiritualidade e respeito. Donana
depois das orações do “Angelus e ladainha”, tirava o rosário para
invocar a Virgem da Conceição por todos seus familiares — “debulhava as 150
jaculatórias do rosário”.
Um detalhe
marcante era a sepultura do filho de Sidney Drumond, decorada com um retrato do
menino sorrindo e uma quadrinha gravada na lousa. Uma árvore de jurubeba
cresceu ao lado dessa sepultura, cujas flores lilás foram deixadas por serem
consideradas poéticas pelo saudoso pai.
Ao tratar do novo
cemitério (terceira necrópole do município), inaugurado em 1922, a escritora
destaca as mudanças na infraestrutura e nos costumes funerários. A primeira
pessoa enterrada, Anita Soares Nogueira, esposa do Dr. Lincoln Nogueira
Machado, chegou a Itaúna após um difícil traslado de Vitória, Espírito Santo,
em meio às celebrações pela visita do Rei Alberto da Bélgica.
É importante
destacar que a construção do novo cemitério em Itaúna marcou um passo
significativo na evolução social e religiosa da cidade, corrigindo práticas
anteriores de intolerância religiosa e promovendo um espaço mais inclusivo para
todos os cidadãos, independentemente de suas crenças.
Registra-se desde a Constituição
de 1891 que os cemitérios seriam de caráter secular. Esta disposição, apesar de
várias alterações e revogações até 1988, manteve-se inalterada e previa que os
cemitérios deveriam ter carácter laico e estar sob a administração da autoridade municipal. Também permitiu que grupos religiosos praticassem livremente
os seus rituais, desde que não violassem a moral e as leis públicas. A
implementação da Constituição Republicana apenas acentuou a situação já
desafiadora.
Os enterros eram
limitados às instalações da Igreja Católica, resultando na exclusão de
não-católicos, incluindo protestantes, pagãos e indivíduos que morriam por
suicídio. Esta prática era indicativa de um período caracterizado por uma
discriminação religiosa rigorosa, em que a ausência de atividades públicas e de
um cemitério adequado para indivíduos de diferentes religiões poderia ser
percebida como uma clara demonstração de intolerância e dominação naquela
época.
Com a construção
do novo cemitério, a situação mudou significativamente. Este novo espaço,
concebido como uma necrópole, permitiu que o poder público municipal assumisse
um papel mais ativo na gestão dos sepultamentos, assegurando que o local fosse
democraticamente laico. Este cemitério tornou-se um símbolo de progresso e
modernidade, proporcionando um local de descanso final digno e respeitoso para
todos os membros da comunidade, independentemente de suas afiliações
religiosas.
Iracema Fernandes
retrata habilmente esta mudança com descrições vívidas e comoventes,
sublinhando o significado desta transformação do ponto de vista cultural e
histórico. No seu retrato do intrincado processo de realocação da esposa do
prefeito, que se tornou a pessoa inaugural sepultada no recém-criado cemitério,
Fernandes dá grande ênfase ao novo significado deste espaço acessível e
inclusivo, simbolizando as mudanças sociais e políticas que foram ocorridos
naquela época.
A construção do
novo cemitério de Itaúna foi um marco crucial na democratização e laicização
dos espaços de sepultamento na cidade. Este avanço permitiu uma convivência
mais harmoniosa entre diferentes crenças e reafirmou o compromisso da
comunidade com a igualdade e o respeito a todos os seus membros. A obra de
Iracema Fernandes é uma janela para o passado, oferecendo uma compreensão rica
e detalhada da história local. Sua habilidade de capturar a simplicidade e a
profundidade dos eventos cotidianos faz de sua escrita uma fonte valiosa para
quem deseja conhecer a verdadeira essência dos habitantes do município.
A inclusão desde
os simples túmulos até os luxuosos mausoléus, simbolizando a contínua devoção
dos moradores, agora, todas as famílias, independentemente de suas crenças,
poderiam enterrar seus entes queridos com a dignidade que mereciam — “é lindo
ver tantas flores, tantas orações subindo, como incenso suave até Deus”. Em suma,
a escritora destaca a transformação dos costumes funerários e a evolução dos
cemitérios do arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima, hoje Itaúna, Minas Gerais,
sublinhando aspectos religiosos e culturais que marcaram a memória da cidade e
nos apresenta o novo cemitério que poderia ser justamente chamado "cidade dos mortos".
Veja mais: História narrada em áudio
Referencias:
Pesquisa,
arte, elaboração: Charles Aquino
Fotografia:
Tirada do mausoléu do Cemitério Central de Itaúna em 20/03/2019
Acervo imagem: Instituto
Cultural Maria de Castro Nogueira
Bibliografia: SOUSA, Iracema Fernandes de. Itaúna
através dos tempos, Ed. LEMI S.A., BH, 1984, págs. 32-33.
MOREIRA, Lúcio
Aparecido. As fontes do medo na educação: estudo de caso de uma Escola
construída onde existiu um cemitério. Belo Horizonte, 2013, p.23-26
FONSECA, Luís
Gonzaga, org.: Itaúna humana e pitoresca, 1961, p.83, 84.
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Câmera do
Deputados. Legislação Informatizada - Constituição de 1891 - Publicação
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