domingo, setembro 29, 2024

CARNAVAL GRÊMIO SANTANENSE

Se você curte boas histórias com um toque de humor e personagens únicos, não pode deixar de conferir o "causo" Jerônimo e as Três Solteironas de Santanense! Sérgio Tarefa nos leva a uma madrugada de carnaval inesquecível, com personagens como três irmãs solteiras, que após uma noite frustrante no baile, acabam salvando o conhecido Jerônimo.

Sérgio Tarefa soube capturar muito bem os detalhes culturais e sociais desse universo da época, onde as expectativas das mulheres, as convenções sociais e a espontaneidade do carnaval se entrelaçavam em uma harmonia só — diversão!

Essa narrativa é um ótimo convite para refletir sobre os contrastes entre as aparências que tentamos manter e a realidade que inevitavelmente nos alcança hoje em dia. E também é uma homenagem aos causos simples, mas profundamente humanos, que fazem parte do nosso cotidiano. 

É uma história que certamente faz qualquer um sorrir e imaginar as cenas vívidas no pequeno Grêmio de Santanense nas décadas de 1980. A história é cheia de ironia e carisma, típica da escrita de Tarefa, com aquele toque pitoresco do cotidiano interiorano. Mas será que Jerônimo ficou agradecido por esse "resgate"? Só lendo para descobrir!


JERÔNIMO E AS "TREIS" SOLTEIRONAS DE SANTANENSE

         "Se a canoa não virar

Olê! Olê! Olá!

      Eu chego lá.........."

Quem passou em frente ao Grêmio de Santanense naquela madrugada de domingo de carnaval não deixaria de cair na folia. O pequeno espaço do Grêmio estava lotado até na tampa e, o calor era infernal, com o povão se espremendo, se esfregando e sacolejando em volta do pequeno salão, num coro só:

"Rema, rema, rema, remador

      Quero ver depressa o meu amor

       Se eu chegar depois do sol raiar

   Ela bota outro em meu lugar!

Se a canoa..................."

No palco o pequeno conjunto musical dava o que tinha para manter o rítmo e a empolgação das centenas de pessoas, a maioria fantasiadas, que cantarolavam salão afora.

- “Aposto que o nosso baile está mais animado que o do Automóvel Clube, Flor do Momo e União Operário, lá em Itaúna!” - Exclamou o Freitas enquanto tirava da boca por alguns instantes o seu trombone de vara.

 - “Carnaval igual a este do Grêmio não existe: o povo de Santanense sabe brincar!” - Retrucou o Dico do Alcindo, que não descuidava da marcação do seu surdo de primeira. Em volta da pista, assentadas em cadeiras encostadas nas paredes, ficavam as moças solteiras e descomprometidas, aguardando o convite dos rapazes para dançar. Na época uma moça só ia para o salão dançar, se fosse convidada por algum rapaz. Caso contrário tomava chá de cadeira a noite toda. E era um puxa e senta frenético. Um olhar, um piscar de olhos, um sorriso correspondido e lá ia a moça salão afora toda feliz, cair na folia, sempre sob o olhar atento e severo dos pais.

-“Já são quase duas horas da madrugada”- falou a Marluce, já impaciente, para a irmã caçula Mariluce”- e até agora não fomos convidadas para dançar! -Vamos brincar juntas no salão?”

-“De jeito nenhum!”- Resmungou a Meireluce, a mais velhas das três irmãs solteironas, que acompanhava atentamente a conversa das duas irmãs caçulas, uma com 37 e a outra com 39 anos de idade.

-“Onde já se viu duas donzelas saírem para o salão sem um par para acompanhá-las? -Vocês sabem como este povinho de Santanense é danado de falador, né!”

                 E o baile continuava noite a dentro com toda animação.

"Oh, jardineira por que estás tão triste?

Mas o que que foi que te aconteceu?

Foi a camélia que caiu do galho

Deu dois suspiros e depois morreu

Vem, jardineira..............."

 Com uma bendita chuva que começou a cair a partir das três horas da madrugada, o forte calor foi amenizado e, a animação aumentou no acanhado recinto do Grêmio de Santanense, empurrado pela harmonia do bom conjunto musical. Já começava a clarear o dia quando as três irmãs solteironas, Marluce, Mariluce e Meireluce, fantasiadas de Colombinas, se prepararam para se retirar invíctas do recinto do Grêmio, isto é, sem serem tiradas para dançar uma única vez.

- “Vamos embora deste lugar!” - Falou a Meireluce – “Foi até bom a gente não ser chamada para dançar e se misturar com este povinho daqui de santanense. Aqui eu não piso mais!” -Exclamou com o nariz empinado, tentando aparentar um ar de satisfação.

De sombrinhas em punho rumaram em direção à fazendinha que ficava à uns dois Km do centro do bairro, onde residiam. Quando passavam em frente à portaria da fábrica da Santanense, viram um vulto caído em meio a uma poça d’água. Condoídas e prestativas, mais do que depressa encaminharam em direção ao desconhecido, receosas que o mesmo se afogasse naquele lamaçal. Quando se aproximaram viram que se tratava do Jerônimo, conhecido pinguço do bairro que tinha duas características principais: beber todos os dias e nunca tomar banho. Com muito esforço e repulsa, devido o forte odor que exalava, conseguiram virá-lo e colocá-lo assentado no encosto do meio fio, com a cabeça apoiada no colo da Meiriluce, a mais velha das três irmãs.

-“Isto que é uma boa ação!”- Falou a Meireluce. “O pessoal do Grêmio deveria estar aqui para presenciar isto, e nos dar o valor que merecemos.”

Aos poucos, com ajuda de um lenço, foram tirando o barro grudado na barba do Jerônimo, bem como, limpando a baba que escorria pelo canto da sua imunda boca.

-“Coitadinho, se não fosse nós ele poderia ter morrido afogado!”-Exclamou a Marluce, sob os olhares de aprovação das duas irmãs mais velhas.

-“Quando ele acordar vai ficar muito agradecido e todos aqui no bairro ficarão sabendo! Aposto que até o Padre Luiz Turkenburg, Pároco da Paróquia do Coração de Jesus de Santanense, vai comentar no sermão da missa de logo mais”- complementou  a Mariluce já entusiasmada com o tamanho do seu ato de caridade.

Nisto, o Jerônimo começou a se mexer, resmungou algo incompreensível, abriu os olhos empapuçados de tanta cachaça, passou a mão imunda na barba suja de barro, olhou fixamente para as três sorridentes solteironas em sua volta, suas velhas conhecidas, e fulminou:

“Nossssaaaaa...! Qui isganação por causa de homi, sô!”...........................    



Referências:

Causo: Sérgio Tarefa

Organização e arte: Charles Aquino    

Letra: Marcha do Remador - Emilinha Borba

sábado, setembro 21, 2024

ARMAZÉM PREÇO JUSTO

Nas barrancas do bairro mais barranqueiro do município de Itaúna, o Armazém Preço Justo era o ponto de encontro de todo mundo. Quando digo todo mundo, estou falando de uma clientela pra lá de variada: tinha o cliente mais abastado, que gostava de exibir sua pose, e tinha o mais liso, que comprava fiado até não poder mais.

Mas o charme do armazém não era apenas o preço justo, e sim o seu dono, Vicentão, com aquele bigode bem aparado e lustroso que parecia mais uma obra de arte. Ele era o herói da freguesia, mesmo com quatro atendentes prontos para ajudar, todos queriam ser atendidos pelo bigodudo.

A filha de Vicentão, uma adolescente que já entendia mais da vida do que o pai, ajudava no armazém toda tarde. A mãe, quando não estava cuidando dos afazeres da casa, também dava uma mãozinha no balcão, porque o movimento por lá era intenso. Entre clientes, cobradores e vendedores, o armazém vivia cheio de gente – e cheia de histórias.

Num desses dias escaldantes de verão, Vicentão teve um daqueles almoços que ele tanto gostava: inhame com quiabo e angu. O homem estava de alma lavada e estômago cheio, até que a barriguinha começou a reclamar.

Vicentão foi tomado por uma dor abdominal tão forte que começou a suar frio. Era uma emergência! Não ia dar tempo de subir até sua casa, que ficava no andar de cima. A única opção era correr para o banheiro do armazém, aquele que ele evitava com todas as forças, porque era o reino das baratas e aranhas.

Mas, com o desespero batendo, não tinha outra escolha. Lá foi Vicentão, correndo pelo meio do armazém, segurando a barriga e a dignidade. Chegou no banheiro e, para seu azar, a lâmpada estava queimada. Sem opção, fechou a porta – porque ninguém merece ser flagrado numa situação dessas – e se sentou no vaso, pronto para a batalha.

O que deveria ser uma missão rápida de alívio se transformou em um verdadeiro filme de terror. As baratas começaram a se espalhar pelo chão, e Vicentão, mais preocupado com os insetos do que com o próprio "descarrego", ficou ali, agachado, em pânico. Para piorar, o rolo de papel higiênico, com o local escuro, caiu direto no vaso.

Enquanto isso, na parte da frente do armazém, os clientes continuavam chegando e perguntando pelo bigodudo. A filha, sem saber onde o pai estava, disse que ele estava "resolvendo um problema muito urgente". Mas o povo queria mesmo era falar com Vicentão. Sem opção, ela foi atrás dele e chegou no banheiro.

Do lado de fora, chamou: "Pai! Tá tudo bem aí?" E ouviu só um grito abafado: "Tô ocupado! Volta depois!" Desesperada, ela foi chamar a mãe, e as duas correram até o banheiro, achando que o homem estava passando mal.

Quando abriram a porta, a luz do dia invadiu o ambiente, e baratas tontas saíram por todos os lados. Lá estava Vicentão, agachado no vaso, gritando: “Cruiz credo! Não tenho nem tempo de esvaziar a barriga com essas baratas me cercando!” Não sabiam se riam ou se ajudavam o pobre homem, mas a cena era digna de chorar de tanto rir. As baratas fugiram, e Vicentão, assustado, saiu correndo atrás delas.

Além dessas aventuras no banheiro, o armazém era palco de encontros diários das figuras mais ilustres do bairro: Biluca e Tibim. Eles eram praticamente uma atração à parte. Biluca, sempre com sua garrafinha de pinga, aparecia todos os dias pedindo para encher. E Tibim, seu fiel escudeiro, acompanhava o amigo em todas as jornadas.

A dupla tinha um ritual curioso: quando bebiam, para não cair ou errar o caminho, saíam de braços dados, segurando um ao outro, e percorriam o bairro inteiro, cambaleando, até chegarem em casa. Era quase um espetáculo de comédia ao ar livre. O bairro todo já sabia que quando Biluca e Tibim passavam, era um sinal de que a tarde estava animada.

Certa vez, a filha de Vicentão, preocupada com o estado de Biluca, decidiu pregar uma peça. Quando ele apareceu para encher a garrafinha de pinga, ela misturou metade com água, pensando que ele nem notaria. "Hoje é por conta da casa, Biluca, não precisa pagar!", disse ela, tentando conter o riso. Biluca, com um sorriso de orelha a orelha, agradeceu e saiu de braços dados com Tibim. Mas, dez minutos depois, lá estava ele de volta ao armazém, cuspindo e fazendo careta: "Menina, isso aqui é suco? Eu quero é pinga, não refresco!"

Mas nem todos os fregueses eram tão engraçados quanto Biluca e Tibim.

Vicentão, com sua confiança inabalável nas pessoas, jamais acreditava que alguém pudesse enganá-lo. Isso até o dia em que apareceu um homem de cabelo brilhantinado, terno, gravata e um “jornal” debaixo do braço. Todo elegante, o sujeito vivia rondando o armazém sem nunca comprar nada. Vicentão, já desconfiado, um dia decidiu abordá-lo: "Encontrou o que procurava, amigo?" O sujeito, nervoso, tentou sair de fininho, mas, ao mexer no terno, deixou cair um saquinho de farinha de mandioca que estava escondido no bolso. Vicentão, sem perder a compostura, disse: Quer que eu embrulhe o saco de farinha ou o senhor vai comer aqui mesmo?

Outro caso memorável foi o cliente que sempre comprava fubá. Um dia, ao chegar no caixa, ele deu um espirro tão forte que deixou cair do calção uma barra de doce de leite e um saquinho de bicarbonato. O sujeito ficou tão pálido que saiu correndo, largando até a carteira no balcão. E o pior: o dinheiro da carteira nem dava para pagar o que ele tentou levar.

Com o tempo, a família de Vicentão percebeu que os prejuízos se acumulavam. Entre os que levavam mercadorias sem pagar e os fiados nunca quitados, o armazém foi à falência. A filha bem que avisava: "Pai, o senhor confia demais nas pessoas!" Mas Vicentão, sempre de coração aberto, acreditava que, apesar dos pequenos golpes, ainda existia muita gente boa.

O armazém pode ter fechado as portas, mas Vicentão, com seu bigode ainda lustroso, continuava a sorrir, porque, no fundo, ele sabia que, no balanço da vida, as pessoas boas sempre superam as que nos decepcionam.

Confiar nas pessoas pode, às vezes, nos colocar em situações complicadas ou até hilárias, como Vicentão descobriu da pior – e mais engraçada – maneira. Mas, apesar das decepções, a verdade é que o mundo ainda está cheio de pessoas boas, que nos fazem sorrir e que estão ao nosso lado quando mais precisamos. Então, mesmo que a vida nos pregue algumas peças, nunca devemos deixar de acreditar que o bem sempre vence.


Causos e Memórias da barranqueira: Juliana Moreira

Roteiro e arte: Charles Aquino

Santana do Rio São João Acima, hoje Itaúna: Pedra Negra 

terça-feira, setembro 17, 2024

CAFÉ DERRAMADO

Manhã de inverno incomumente quente. A previsão dizia que a mínima seria de 18º e a máxima de 32º, com o céu limpo e sem possibilidade de chuva. Eu me levantei e, como de costume, fui direto para a cozinha preparar meu próprio café — o cheiro fresco preencheu o ar. Com a xícara pela metade, ainda liberando aquele aroma característico, caminhei até a mesa onde estavam meus pertences e materiais de trabalho. Havia papéis, documentos e equipamentos espalhados. Sentei e, depois de um gole saboroso de café, o imprevisto aconteceu. Não sei exatamente como, mas esbarrei na xícara. O que parecia ser uma pequena quantidade de café se multiplicou de maneira absurda pela mesa.

Naquele instante, não consegui dizer nada. Apenas olhei, tentando processar a cena e me concentrar em salvar o que fosse mais importante. Com cuidado, comecei a separar cada item da mesa. Havia papéis antigos que ainda precisava ler para resolver pendências, os equipamentos eletrônicos que uso todos os dias no trabalho, e mais documentos que representavam compromissos futuros.

Conforme eu limpava tudo, algo curioso começou a acontecer. Percebi que, de algum modo, o caos daquele café derramado, ou melhor, entornado sobre a mesa representava muito mais do que apenas uma bagunça. Aqueles papéis antigos que estavam ali eram o passado, um passado que eu insistia em manter por perto, mesmo que já não tivesse utilidade. Os aparelhos eletrônicos e ferramentas de trabalho que molharam eram meu presente, o agora, aquilo que realmente importa e que eu preciso para funcionar. E os papéis de compromissos futuros estavam ali, aguardando serem organizados, assim como as tarefas e os planos que ainda preciso estruturar.

Enquanto secava cada um desses itens, notei que, de maneira simbólica, eu estava reorganizando minha vida. O passado, representado por aqueles documentos velhos, precisava ser eliminado. Não havia mais sentido em mantê-los ali, ocupando espaço. O presente, que estava logo ali diante de mim, exigia ação, cuidado e foco. E o futuro, embora incerto, era algo que eu precisava apenas planejar, sem ansiedade.

O que começou como uma simples manhã rotineira, com um pequeno acidente, acabou me levando a uma reflexão maior. Aquela confusão sobre a mesa me fez enxergar que, muitas vezes, eu carrego mais do que o necessário. E que, com um pouco de organização, posso simplificar minha vida. O passado já não precisava mais estar ali, o presente merecia minha atenção imediata, e o futuro, bem, ele só exigia que eu respirasse fundo e planejasse com calma. No final, com a mesa limpa e tudo em seu devido lugar, eu percebi que o derramamento do café não foi um desastre, mas uma oportunidade.

 

REFLEXÃO

Essa história do café derramado revela uma rica oportunidade para uma reflexão sobre a vida, o tempo e a forma como lidamos com o cotidiano. À primeira vista, o episódio pode parecer uma situação comum e corriqueira — um café derramado acidentalmente sobre uma mesa —, mas a narrativa vai muito além desse pequeno desastre matinal. A partir dessa simples ação, a história conduz para uma percepção mais profunda sobre o passado, o presente e o futuro.

O derramamento do café, que inicialmente causa uma reação de surpresa e inação, leva a um processo quase meditativo. Ao limpar os objetos, a atribuir a eles um significado simbólico: os papéis antigos representam o passado, os equipamentos de informática remetem ao presente, e os compromissos futuros, expressos em documentos a serem organizados, apontam para o futuro. Esse ato físico de limpeza se transforma em uma metáfora para o processo mental de reestruturação e clareza.

A reflexão que surge desse episódio cotidiano é poderosa: muitas vezes, a vida se derrama, espalhando-se de maneiras inesperadas. Nesses momentos, nossa reação inicial pode ser de frustração ou paralisia, mas o que realmente importa é como escolhemos agir em seguida. O café derramado força a se concentrar no que está diante de si, a organizar seus pensamentos e a redefinir as prioridades. Ao separar os objetos da mesa em ordem de importância temporal — passado, presente e futuro — se dá conta de algo fundamental: as coisas do passado precisam ser deixadas para trás, o presente exige ação, e o futuro demanda planejamento, mas sem a carga de ansiedade.

Essa reflexão nos convida a uma abordagem mais consciente e tranquila da vida. Muitas vezes, carregamos conosco problemas do passado que já deveriam ter sido resolvidos, ou nos preocupamos excessivamente com o futuro, o que gera estresse e ansiedade. A mensagem aqui é clara: devemos lidar com o passado apenas para aprender e deixar ir viver o presente com presença e atenção, e planejar o futuro sem pressa ou excesso de expectativa.

O "café entornado torna-se", assim, um lembrete simbólico de que a vida, apesar de seus acidentes e imprevistos, pode ser reorganizada com calma e clareza. O importante é estar presente no momento, sem se prender ao que passou ou temer o que está por vir. Às vezes, o caos, como um simples café derramado, nos oferece a oportunidade de parar, respirar e reorganizar nossa própria mesa mental.

Charles Aquino

Veja a narrativa em vídeo!Imperdível! 

sábado, setembro 14, 2024

TIÃO DEDÃO

... crack da seleção de Itatiaiuçu

Quando eles chegaram, o time adversário já estava batendo bola no campo de terra batida. O vento forte levantava uma poeira de terra vermelha que grudava nas narinas, provocando uma série de espirros entre os jogadores do time visitante, que com os olhos semi-serrados, devido ao vento empoeirado, procuravam tomar pé da situação naquele pequeno lugarejo próximo a Itaúna.

Era uma manhã de Domingo e as adversidades do campo, até então estranhas aos jogadores, eram na opinião de todos o pior adversário. Invicto há quinze jogos os jogadores do escrete da Lagoinha estavam mais do que preparados para enfrentar a temida seleção de Itatiaiuçu cujas previsões eram de um jogo difícil e de resultado imprevisível. 

A torcida, formada em sua maioria por homens e crianças com uma ou outra sombrinha colorida, se misturando à multidão, já tomava quase todas as laterais do acanhado campo de terra.

“Hoje o campo vai lotá – sussurrou o Vicentão para o Maurino da Barragem”

“Eu gosto é assim- interveio o ponta Bution que próximo aos dois amigos, escutava toda a conversa. Pequenino e veloz, o ponta cuja fama já se espalhava por toda a redondeza, era uma das atrações do jogo. E ao som do apito do Juiz, em meio a um barulhento foguetório tem início a aguardada partida e o ataque do escrete da lagoinha formado pelo Dico da rede, Zé Barbeiro e o endiabrado Bution infernizava a defesa adversária. No final do primeiro tempo o placar indicava 4x0 para a seleção da Lagoinha e o Vicentão e sua turma comemoravam a homérica goleada devorando um balaio de laranja Pingo d’água na beira do acanhado campinho coberto de terra vermelha.

“Hoje nós vamos enfiar uns oito gols nestes pés vermelhos de Itatiaiuçu – vangloriava o Gaguinho Padeiro, grande goleiro do escrete da Lagoinha, mas que quase não fora exigido na partida em função do fraco ataque do time local.

No início do segundo tempo os jogadores e a pequena torcida do time Itaunense foram surpreendidos pelos gritos da torcida local quando o técnico da seleção de Itatiaiuçu fez a primeira substituição.

“ Tião Dedão, Tião Dedão, Tião Dedão..... - gritava em coro a fanática torcida em volta do campo de terra vermelha, ao mesmo tempo que um jogador, aparentando ter uns 38 para 40 anos, meio desengonçado entrou em campo, ao sinal do árbitro.

“ Uaí, isto num tá parecendo jogador de futebol não – exclamou o Donda, proprietário do Bar do Donda lá na Lagoinha , onde os jogadores se reuniam antes e após as partidas de futebol de Domingo.

 “Óia, ele corre é de costa, seu Donda- interveio o Maurino da Barragem num acesso de riso. E só foi o Maurino acabar de falar que o jogador desengonçado partiu em velocidade e de costas para a área do escrete da Lagoinha, que ao receber o cruzamento na altura da grande área carcou um bicudo na bola, que ao invés de ir para frente foi para trás estourando no travessão do assustado goleiro Gaguinho Padeiro.

“Jesus, Maria, José, o homi chuta é para trás – exclamou o lateral Dico da Rede para o assustado Vicentão ao mesmo tempo que a torcida a pleno pulmões gritava o nome do seu ídolo: Tião Dedão, Tião Dedão, Tião Dedão, Tião Dedão..................

Imediatamente todos os olhares dos jogadores Itaunenses se concentraram no pé do crack de Itatiaiuçu e surpresos viram o saliente dedão do pé direito do desengonçado atacante rebitado para cima, através de um buraco no couro da velha e surrada chuteira

“ Desde minino que o iscumungado é assim. É de nascença – explicou um senhor magrelo e de bigode fino, torcedor do time local, para a atenta e assustada torcida Itaunense.

“ Ele tem os quatro dedos do pé direito pra frente e o dedão arrebitado pro céu. Por isto é que ele joga de marcha-ré – complementou num sorriso desdentado.

“Como ele é o mais velho do time, só joga no segundo tempo- complementou o seu colega de lado um baixinho careca e sorridente. Na defesa o Vicentão com seus 92Kg de puro músculo e o lateral Quilos-Peixe faziam de tudo para parar o perigoso atacante, o que era quase impossível para alguém que jogava de costas, chutava para trás e corria de marcha-ré.

“Segura o homi Vicentão senão a vaca vai pro brejo – gritava desesperado o Antônio Jiló, quando em uma de suas perigosas descidas o Tião Dedão, de costas, marcava o terceiro gol do time local.

Faltando poucos segundos para terminar a partida, o placar indicava 4x3 a favor do escrete da Lagoinha quando a bola foi cruzada para o Tião que da entrada da grande área, mesmo marcado por cinco adversários e de costas, enfiou o dedão na redonda. O que se viu a seguir foi a multidão invadir o campo e aos gritos de Tião Dedão, Tião Dedão, Tião Dedão, carregar nos ombros o seu ídolo.Próximo ao gol, e ainda inconformados por deixar escapar uma vitória tão certa, os jogadores da Lagoinha ainda puderam ver em meio a eufórica torcida, o crack da seleção de Itatiaiuçu sendo carregado, bem como, o seu saliente dedão, ainda sujo de terra vermelha, escapando pelo buraco da velha e surrada chuteira de couro...       


Causos do Sérgio Tarefa

Organização e arte: Charles Aquino 

quinta-feira, setembro 12, 2024

DESEJO DE EMANCIPAÇÃO

O desejo de emancipação do arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima, hoje, município de Itaúna, Minas Gerais, percorreu um longo e árduo caminho, marcado por diversas tentativas ao longo dos anos, que culminaram em seu sucesso no início do século XX. A trajetória rumo à emancipação municipal pode ser dividida em diversos marcos significativos ao longo das décadas, com destaque para os anos de 1856, 1874, 1877, 1879, 1890, 1901 e 1902.

1856 — Primeiras Sementes do Desejo de Emancipação: Neste ano surgiram as primeiras discussões sobre a necessidade de emancipação do distrito de Sant’Ana do São João Acima, que então pertencia ao município de Pará de Minas. Esse período foi caracterizado pelo início das articulações políticas locais, onde lideranças começaram a reconhecer a importância de se ter uma administração própria para atender às demandas crescentes da região. Contudo, a falta de estrutura política e a pouca influência dos líderes locais na política provincial impediram que os esforços resultassem em sucesso imediato.

1874 — Reforço no Movimento Emancipacionista: Neste período, novas movimentações foram feitas para impulsionar a emancipação. O crescimento econômico da região, com a agricultura e a pecuária se expandindo, criou um cenário propício para a renovação das tentativas de separação. Porém, mais uma vez, as barreiras políticas e a resistência de figuras influentes no município de Pará de Minas frustraram os esforços dos emancipacionistas.

1877 — Persistência nas tentativas:  A perseverança das lideranças locais foi novamente testada em 1877, quando se intensificaram os movimentos políticos em prol da emancipação. Nessa época, figuras influentes do arraial de Santana começaram a se destacar na luta, promovendo reuniões e debates entre os habitantes locais. Apesar das dificuldades, a mobilização popular cresceu, plantando as bases para as futuras tentativas.

1879 — Avanços Políticos: Dois anos depois, as discussões sobre a emancipação ganharam mais força. As dificuldades vividas pela população local, que enfrentava longas distâncias para resolver questões administrativas em Pará de Minas, tornaram a emancipação um clamor popular. A pressão exercida pelos moradores e líderes locais, intensificou-se, ainda que os resultados práticos só fossem aparecer anos depois.

1890 — Ventos Republicanos:  Ainda em 1890, aproveitando os "ventos republicanos", os líderes de Sant’Ana do Rio São João Acima intensificaram seus esforços pela emancipação do município. Antes mesmo da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o arraial de Sant’Ana já demonstrava um forte alinhamento com os ideais republicanos. Um marco desse pioneirismo foi a fundação do Clube Republicano 21 de Abril, em 1889, sendo um dos primeiros movimentos republicanos em Minas Gerais. Liderado por figuras proeminentes da região, o clube foi fundamental para mobilizar a população em torno das ideias republicanas. No entanto, a instabilidade política do novo regime dificultou a aprovação das demandas locais, tornando o processo mais desafiador do que o esperado.


1901 — Progresso e Conquista da Emancipação Política: Após décadas de tentativas frustradas, a tão esperada emancipação de Itaúna finalmente se concretizou em 16 de setembro de 1901. Nesse contexto, lideranças locais de destaque, como Josias Nogueira Machado, Major Senócrit Nogueira, Dr. Augusto Gonçalves de Souza Moreira e Padre Antônio Maximiano de Campos, intensificaram seus esforços, conseguindo com sucesso a autonomia política da região.

1902 — Consolidação da Emancipação: Em 2 de janeiro de 1902, a emancipação de Itaúna foi consolidada com a instalação da Câmara Municipal. A nomeação do Dr. Augusto Gonçalves de Souza Moreira como o primeiro prefeito marcou o início da administração municipal própria, estabelecendo as bases políticas e administrativas do novo município. Seu papel foi fundamental não apenas na gestão inicial, mas também no fortalecimento das bases, contribuindo significativamente para o desenvolvimento do município.

Longa Jornada: A história da emancipação de Itaúna é marcada por uma longa jornada de pertencimento a diferentes municípios, refletindo as transformações políticas e administrativas que moldaram a região ao longo de décadas. Antes de alcançar sua autonomia, a área que hoje compreende o município de Itaúna passou por várias mudanças de jurisdição, pertencendo a diferentes municípios em momentos distintos: Sabará: 1711, Pitangui: 1715, Bonfim: 1847, Pará de Minas: 1848, Pitangui: 1850, Pará de Minas: 1858, Pitangui: 1872, Pará de Minas: 1874 e finalmente, em 1901, Itaúna se tornou um município autônomo.

Inicialmente, em 1711, a área fazia parte do município de Sabará, um dos primeiros centros administrativos da Capitania de Minas Gerais. Poucos anos depois, em 1715, Itaúna foi incorporada ao vasto território de Pitangui, que na época era um dos principais núcleos urbanos da região. Pitangui manteve sua influência sobre a área até a metade do século XIX. 

Em 3 de abril de 1847, por meio da Lei nº 334, a Paróquia de Santana de São João Acima foi incorporada ao Município de Bonfim. Com o passar do tempo e o desenvolvimento econômico da região, a necessidade de uma administração mais próxima se fez sentir, em 1848, Itaúna foi desmembrada e passou a pertencer a Pará de Minas. Este vínculo durou por alguns anos, mas em 1850, o território de Itaúna voltou a ser parte de Pitangui, refletindo as mudanças nas delimitações municipais que ocorriam na época.

Novamente, em 1858, Itaúna foi incorporada ao município de Pará de Minas, onde permaneceu até 1872, quando mais uma vez voltou a integrar Pitangui. Essas constantes mudanças de jurisdição foram um reflexo das complexas dinâmicas políticas e econômicas que caracterizavam a região naquele período. Finalmente, em 1874, Itaúna foi novamente colocada sob a administração de Pará de Minas.

Já em 1901, após sua emancipação pela Lei nº 319, a vila de Itaúna começou a se consolidar como um importante centro regional. O progresso da vila foi reconhecido pelo governo do Estado de Minas Gerais, e esse reconhecimento foi oficializado pela Lei nº 663, de 18 de setembro de 1915, que alterou a divisão judiciária do estado e conferiu à vila de Itaúna o status de cidade. Em 24 de janeiro de 1925, pela Lei nº 879, Itaúna foi elevada à categoria de comarca.

Esse processo de evolução administrativa reflete o crescimento e a importância que o município adquiriu ao longo do tempo, impulsionado pelo desejo de suas lideranças e pela perseverança de seu povo em alcançar autonomia e desenvolvimento. A elevação do antigo arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima, hoje Itaúna, à condição de cidade e comarca marcou o início de uma nova era, consolidando o município como um polo regional de progresso e prosperidade.


Disponível em:

REFERÊNCIAS:

Organização, pesquisa, roteiro e arte: Historiador Charles Aquino

Acervo: Instituto Cultural Maria Castro Nogueira – Guaracy de Castro Nogueira (In Memoriam)

APM — Arquivo Público Mineiro — Fundo Assembleia Legislativa Provincial 1835-1891 — Cx. 40

Coleção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais 1915, pg. 32, 41.

FILHO, João Dornas. Efemérides Itaunenses, Coleção Vila Rica, 1951, págs. 111, 112, 113, 166, 179, 206, 207, 208.

Itaúna em Detalhes - Enciclopédia Ilustrada de Pesquisa, 2003, NOGUEIRA, Guaracy de Castro [et al], pg. 20, 21.

Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1879, nº 324

O Bom Senso, 30 de abril de 1856, nº 406

O Estado de Minas Gerais, Ouro Preto, 11 de outubro de 1890, nº 94, 105

O Estado de Minas Gerais, Ouro Preto, 3 de outubro de 1893, nº 298

Revista Acaiaça nº 56, org. Celso Brant, 1952, p. 72, 73, 74.

Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais - Ano 1901 - pág. 26.

Prefeitura Municipal de Itaúna História de Itaúna XIX e XX

SOUZA, Miguel Augusto Gonçalves de. História de Itaúna, BH, Ed. Littera Maciel Ltda, 1986, p.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Memória do Judiciário Mineiro. Comarcas de Minas. Organizadores: Desembargador Lúcio Urbano Silva Martins e Rosane Vianna Soares. Coordenação: Andréa Vanessa da Costa Val. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2016. v. I, p. 576-578. 

quarta-feira, setembro 11, 2024

CANÇÃO PARA ITAÚNA

O poema "Canção para Itaúna", de Maria Lúcia Mendes, é uma expressão clara do amor profundo que a poeta nutre por sua terra natal, Itaúna, celebrando suas paisagens, história e cultura. 
Através de versos que evocam imagens como "terra dos quintais maduros" e "crepúsculo no Bonfim", Maria Lúcia nos transporta para uma Itaúna rica em memórias e significados. 
As referências ao Rosário e ao Bonfim revelam uma conexão espiritual com a cidade, onde o sagrado e o cotidiano se entrelaçam.
No verso "A seiva minando do chão bruto", a poeta sugere a força e a riqueza de Itaúna, tanto em termos naturais quanto humanos. O minério e os teares simbolizam o trabalho e a história industrial da cidade, enquanto o "riso e suor" remetem ao esforço coletivo de seus habitantes ao longo do tempo. 
Ao declarar "amo tuas virtudes, teus pecados", Maria Lúcia nos mostra uma relação sincera e completa com Itaúna, reconhecendo tanto os aspectos positivos quanto os desafios da cidade.

O poema culmina com a afirmação "Sou tua filha, a pedra negra eu beijo", uma metáfora poderosa que remete às raízes históricas de Itaúna, antigamente conhecida como Santana do Rio São João Acima, associada à famosa "Pedra Negra". 

Esse poema, apresentado como uma homenagem em comemoração à emancipação de Itaúna em 16 de setembro, nos brinda, assim, com uma celebração poética que reforça o orgulho e a ligação afetiva com a cidade.


CANÇÃO PARA ITAÚNA

Eu te amo, terra dos quintais maduros

Do Rosário na laje, onde pastam sonhos ...

Crepúsculo no Bonfim, como não vê-los ?

A seiva minando do chão bruto

É minério que engendras, são teares

Riso e suor no tempo emoldurados.

A tempo de viçar toa uma história

Terra que se soprou ventos viários

Fome, razão, cicatriz, desejo

Amo tuas virtudes, teus pecados

Sou tua filha, a pedra negra eu beijo.


Prepare-se para uma viagem emocionante no tempo e no coração!  Agora, essa experiência está disponível também em vídeo! Não perca essa oportunidade imperdível de celebrar a essência de Itaúna de uma forma única e tocante. Venha viver essa poesia com a gente!"


Poema: Escritora Maria Lúcia Mendes 

Organização e arte: Charles Aquino. 

Santana do Rio São João Acima, hoje Itaúna, Minas Gerais: Pedra Negra.

domingo, setembro 08, 2024

CORCUNDAS X PATRIOTAS

A obra do historiador itaunense João Dornas Filho oferece um retrato incisivo dos conflitos ideológicos que marcaram o Brasil em 1831, particularmente no contexto da abdicação de D. Pedro I. Através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”, o autor consegue explorar temas profundos como o embate entre tradição e modernidade, a hipocrisia política e religiosa, e a divisão interna entre os brasileiros. O uso de uma linguagem popular em forma de versos reforça a crítica social, tornando o texto um importante documento histórico e literário, que ajuda a entender as complexidades do período pós-independência no Brasil.

A análise do texto "A Abdicação e a Musa Popular em 1831", de João Dornas Filho, revela uma rica crítica social e política do Brasil no contexto da abdicação de D. Pedro I, “após o 7 de abril”. A obra utiliza uma forma popular, o diálogo em versos entre dois personagens — o “Corcunda” e o “Patriota” —, representando facções opostas da época: os “corcundas”, que defendiam o retorno do imperador, e os “patriotas”, que lutavam pela independência e pela formação de uma república.

O texto está inserido em um período de instabilidade política no Brasil, onde dois partidos principais surgem com visões antagônicas sobre o futuro do país. De um lado, os “corcundas”, nome pejorativo dado aos defensores da monarquia e da volta de D. Pedro I, e de outro, os “patriotas”, que defendiam a continuidade da independência e o afastamento da figura imperial. A luta ideológica desses dois grupos é retratada de forma alegórica, com um “Corcunda” e um “Patriota” debatendo sobre os valores que acreditam ser corretos para a nação.

O “Corcunda” representa a defesa do status quo, com uma visão conservadora e centralizadora, muitas vezes associada ao despotismo. Ele se mostra fiel a um ideal de monarquia como instituição sacralizada e vinculada ao direito divino, como se observa na referência ao rei Davi, comparando D. Pedro I a uma “figura ungida por Deus”. Ao longo do diálogo, ele usa a tradição e a fé como argumentos para justificar a necessidade de um governo monárquico forte, resistente às mudanças propostas pelos patriotas.

O “Patriota”, por sua vez, simboliza a contestação dessa ordem e a busca por novas soluções, questionando o valor da monarquia e defendendo o progresso republicano. Ele desdenha o romantismo de seu oponente, associando os "corcundas" a figuras ultrapassadas e obsoletas, comparando o rei Davi a um "pobre coitado" e criticando o que considera ser uma era de tiranos.

Dornas Filho usa a “musa popular” para refletir a opinião pública da época. Ao recorrer a versos e formas de expressão acessíveis, ele traz para o texto a voz do povo, que, de maneira crítica, usava essas representações para satirizar a situação política do país. Esse recurso literário é valioso, pois preserva as nuances das opiniões populares, muitas vezes marginalizadas pela história oficial. A utilização de um formato popular torna o texto mais próximo das práticas culturais de resistência e debate que aconteciam fora dos círculos do poder. 

Dornas ressalta a definição de “Corcunda” da época, conforme descrita no dicionário “Carcundático” ou na explicação das expressões dos “Carcundas” por José Joaquim Lopes de Lima, de 1821, informando que: “Homem que, feito, e satisfeito com a carga do despotismo, se curva, como o dromedário, para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o indelével ferrete do servilismo, tem contraído o hábito de não erguer mais a cabeça, recheada das estonteantes ideias de uma sórdida cobiça.”   

 

Temas Principais através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”

O diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota” reflete uma disputa entre a manutenção das estruturas tradicionais e a busca por novas formas de governo. A argumentação do “Corcunda” se baseia na preservação da ordem monárquica, enquanto o “Patriota” anseia por uma transformação que rompa com os resquícios coloniais. Um tema recorrente é a desunião entre os próprios brasileiros. O “Patriota” acusa o “Corcunda” dissipar e perseguir seus próprios compatriotas, com a metáfora de lobos que devoram cordeiros. Isso ilustra a violência e a repressão que acompanhou os conflitos internos do Brasil nesse período, refletindo as dificuldades de consolidação da independência.

A religião é um tema subjacente nas falas do “Corcunda”, que constantemente evoca Deus para justificar suas posições. O “Patriota”, no entanto, desmascara a hipocrisia dessas argumentações, associando-as à defesa de interesses egoístas. A referência ao rei Davi é um exemplo dessa desconstrução: o “Patriota” lembra que, embora ungido por Deus, era um simples pastor, questionando a idealização da figura monárquica.

O diálogo também revela as tensões sociais latentes no Brasil do século XIX, com o “Patriota” denunciando a opressão exercida pelos poderosos sobre os mais fracos, simbolizada na metáfora dos lobos. As menções a "carbonários" e "pedreiros" por parte do “Corcunda” indicam uma crítica às forças revolucionárias e republicanas que estavam ganhando força naquele período. Esse texto é uma crítica expressa em tom sarcástico e satírico contra os movimentos políticos e sociais que desafiaram a monarquia e a Igreja Católica em Portugal, especialmente durante o período de D. João VI, rei de Portugal, que governou durante um período tumultuado marcado por tensões entre monarquistas e liberais.

O Movimentos Liberais dos “pedreiros” e “carbonários” mencionados são referências aos maçons, grupos secretos que eram vistos como subversivos pelos monarquistas e católicos, pois defendiam ideias liberais e republicanas. O autor critica a Constituição e a anarquia, associando-as à desordem e à falta de moralidade, em contraste com a ordem e a religiosidade defendidas pelos monarquistas.

Os opositores são retratados como inimigos da religião, que “não querem saber de missa” e “mofam de tudo o que diz o novo Testamento”. Isso sugere que o autor vê os liberais como anticristãos — descrença religiosa. Os “infames patriotas” são acusados de desrespeitar a nobreza e as tradições, o que para o autor é um sinal de decadência moral. O texto exalta a família real, particularmente D. João VI, como “pio e santo”, e expressa a visão de que a monarquia foi instituída por Deus para governar com justiça e piedade. O autor valoriza a nobreza de sangue e de comportamento, criticando a falta de respeito que os “patriotas” têm por essas tradições. No entanto, ao longo do texto, fica evidente que, apesar desse reconhecimento, ele continua comprometido com a defesa de uma ordem antiga, com medo das mudanças representadas pelos “patriotas”.

O texto utiliza estereótipos para ridicularizar os liberais, pintando-os como ímpios, desorganizados e inimigos da ordem social. O trecho, que fala sobre estar “contente de ver tudo acabado”, sugere uma ironia amarga, possivelmente expressando uma frustração pela situação política. O texto reflete o pensamento conservador e monarquista da época, defendendo a tradição, a religiosidade, e a hierarquia social, enquanto critica os movimentos liberais que ameaçavam essas estruturas. É um exemplo da retórica polarizadora e do conflito ideológico que marcou o período. O texto segue com ambos discutindo o estado político e social do Brasil no período pós-abdicação de D. Pedro I, refletindo sobre traições, revoltas e o destino do país.

A retórica satírica e polarizadora revela o conflito ideológico da época. O “Patriota” usa uma linguagem crítica e sarcástica para ridicularizar a monarquia e expor as injustiças sociais, enquanto o “Corcunda” tenta justificar suas crenças com argumentos religiosos, eventualmente se resignando diante das críticas.

Os textos de que fazem parte esse diálogo refletem as tensões políticas e sociais do Brasil pós-abdicação de D. Pedro I, marcadas pela disputa entre conservadores e liberais. O uso de trocadilhos, rimas e figuras de linguagem sugere que esses textos foram pensados para um público popular, talvez circulando em panfletos ou discussões públicas, com o objetivo de difundir ideias e criticar o status quo.

Esses diálogos, ao incorporar personagens simbolicamente nomeados como “Patriota” e “Corcunda”, personificam o embate entre os defensores da monarquia e os partidários de uma sociedade mais igualitária. A crítica ao regime monárquico e à hierarquia social é clara, e a narrativa expõe as injustiças e a opressão das classes mais baixas.

O uso de figuras bíblicas e metáforas religiosas pelos dois personagens reflete a importância da religião nos debates políticos da época, e a linguagem acessível e popular sugere um apelo direto ao público. Esses textos, marcados pela sátira e pela crítica política, são testemunhos das lutas simbólicas que precederam as mudanças sociais no Brasil do século XIX.

 

A ABDICAÇÃO E A MUSA POPULAR EM 1831

CORCUNDA X PATRIOTA

Por João Dornas Filho

 “Logo após o 7 de abril, a política brasileira entrava em ebulição tumultuosa, devida ao aparecimento de dois partidos que pugnavam, cada qual com mais calor e veemência, pela vitória das suas ideias. Eram os “corcundas”, que se batiam pela volta de D. Pedro I, e os “patriotas”, figadalmente adversários desta solução, não repugnando alargar os seus princípios até à implantação da república. Dessa época tormentosa da nossa história ficaram inúmeros documentos em que aparece a “musa popular” criticando os homens e os fatos, como este curioso diálogo entre dois adversários:”

 

CORCUNDA — Deus lhe guarde, meu senhor. 

 

PATRIOTA — Venha com Deus, cavalheiro, 

venha logo me dizendo 

se é "corcunda" ou "brasileiro". 

Vejo-lhe bem divisado 

na cabeça um grande galho, 

bem me parece ser 

da vazante o espantalho.

 

CORCUNDA — Sim, senhor, eu sou corcunda 

e morro pelo meu rei; 

esta divisa que trago 

é da sua real lei; 

se o senhor é patriota, 

provisório cidadão, 

se fala contra o meu rei, 

é judeu, não é cristão. 

E com isto já me vou, 

não quero mais esperar. 

O senhor é jacobino 

pelo modo de falar.

 

PATRIOTA — Dê-me atenção, senhor, 

não se faça esforicido; 

um homem apaixonado 

não dá prova de entendido. 

Eu conheço o seu caráter, 

não é de tolo e vário, 

mostra ser de um pensante 

ou de um escriturário. 

Faça-me a honra apear, 

venha me dar um clarão; 

só o senhor pode dizer-me 

o que é a constituição, 

e também da independência 

de D. Pedro imperador: 

tudo me explique agora, 

eu lhe peço por favor.

 

CORCUNDA — Se o senhor fala-me sério, 

se não é adulação, 

eu lhe direi de que consta 

a nova constituição.

 

PATRIOTA — O senhor creia em mim, 

muito sério lhe falo; 

eu sou um homem néscio, 

não sei onde canta o galo.

 

CORCUNDA — Estes malvados pedreiros, 

carbonários da nação, 

que por serem carvalhistas 

detestam serem cristãos, 

nem querem ter rei nem roque, 

e menos religião, 

por isso desprezaram 

o nosso rei D. João.

A lei deles é anarquia

da tal constituição,

cativando desumanos

sem ter quem lhes vá à mão;

não querem saber de missa,

menos do sacramento,

mofam de tudo o que diz

o novo Testamento.

Veja, pois, por que rigor

chamam a nós marinheiros,

arrocham de pau e peia,

morram todos ao chumbeiro.

Uns homens nobres em tudo,

no sangue e no proceder,

de famílias ilustradas,

muitos deles veem a ser

filhos de duques, marqueses,

de condes e de morgados.

Dos infames patriotas

têm sido desfeiteados...

Estas feras de ora avante

só em si maldade encerram,

desprezam o nosso rei,

que Deus nos deu na terra,

um homem pio e santo,

um refúgio e esperança,

o nosso D. João Sexto,

filho da Real Bragança.

Esta família ilustrada

que o mesmo Deus destinou

pra seus filhos governarem,

serem de nós supriu...

Mas agora estou contente

de ver tudo acabado,

uns mortos e outros presos.

Adeus, tenha saúde,

creia nisso que lhe digo,

fuja dos patriotas,

que são nossos inimigos.

Já estão se acabando

as malditas rebeliões,

ficando só no Brasil

a fé pura de cristões.

 

PATRIOTA — Tratemos da independência. 

 

CORCUNDA — Isso é um passo muito errante, 

Dom Pedro no Brasil 

não pode ser imperante.

 

PATRIOTA — Porque? Ele não é Bragança?

 

CORCUNDA — Se o rei ainda é vivo,

não pode haver herança.

 

PATRIOTA — Já não posso, seu corcunda, 

suas loucuras calar; 

quer por gosto, quer por força, 

ouça-me agora a falar. 

Diga-me, homem sem brio, 

amante do cativeiro, 

somos terra, somos gados 

que D. Pedro seja herdeiro? 

Quando Deus formou o mundo, 

qual foi o rei que deixou? 

Não deixou só um Adão 

de todos progenitor? 

Deste mesmo Adão não fez 

Deus do céu por seu mando 

uma mulher para ele 

produzir o gênero humano? 

Desses pobres camponeses 

produziu todas nações, 

algum dia eles tiveram 

fidalguia ou brasões? 

Onde foi Bragança haver 

esse sangue ilustrado? 

Só se foi por outro Adão 

que por Deus não foi deixado; 

só dessa descendência 

de gentes que Deus não fez 

saiu toda a jerarquia, 

condes, duques e marquês. 

Abre os olhos, homem tolo, 

adora o Deus verdadeiro, 

aquele que por nós morreu 

como inocente cordeiro. 

Se um rei é tão real, 

como adular a D. João, 

é baixeza no morrer 

se formar em podridão. 

Ressuscitar aos três dias 

assim como ressuscitou 

o rei filho de Maria.

 

CORCUNDA — Eu já digo o rei Davi, 

que o mesmo Deus consagrou.

 

PATRIOTA — Isto eu não duvido, 

e também por isto estou; 

mas quem era o rei Davi? 

Era um pobre coitado, 

era um simples pastorzinho 

do rebanho do seu gado. 

Que é do nosso rei Davi? 

Agora só há tiranos, 

dissolutos, incivis, 

de vaidades profanos.

 

CORCUNDA — Já é tarde, vou andando,

tenha mão, seu papagaio.

Você diz: cadê as tropas

do coitado do Pinheiro?

É certo que lá andei,

e que dele sou soldado...

 

PATRIOTA — Perseguiste os teus patrícios

como lobos defamados;

nas casas que cercaste

também, forte carniceiro,

ajudaste a tirar

vida, honra e dinheiro;

ajudaste a matar

teus irmãos, mansos cordeiros.

Que desgraça, seu corcunda,

entre os mesmos brasileiros!

Desprezar os seus irmãos,

como lobos carniceiros.

Esta injustiça, seu corcunda,

reclamam os céus inteiros...

 

CORCUNDA — Meu amigo, estou certo

do quanto me tem narrado,

já me pesa de ter sido

dos meus irmãos o malvado.

Roto o véu do engano,

nova vida eu terei,

constante patriota serei;

podem contar comigo:

— Defender a nossa pátria

e morra o nosso inimigo!

 

“Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro existem centenas de folhetos que guardam a vasta produção de versos como estes, denunciadores do ardor das paixões que crepitaram durante todo aquele movimentado decênio da nossa História”.

Referência:

Organização, arte, pesquisa e análise: Charles Aquino

FILHO, João Dornas: A abdicação e a musa popular em 1831 — CULTURA POLÍTICA — Revista mensal de estudos brasileiros. - INVENTÁRIO - BN - Rio de Janeiro, Ano IV  Nº 41- Junho de 1944 , p.155-159.