Se você curte
boas histórias com um toque de humor e personagens únicos, não pode deixar de
conferir o "causo" Jerônimo e as Três Solteironas de Santanense!
Sérgio Tarefa nos leva a uma madrugada de carnaval inesquecível, com
personagens como três irmãs solteiras, que após uma noite frustrante no baile,
acabam salvando o conhecido Jerônimo.
Sérgio Tarefa
soube capturar muito bem os detalhes culturais e sociais desse universo da
época, onde as expectativas das mulheres, as convenções sociais e a
espontaneidade do carnaval se entrelaçavam em uma harmonia só — diversão!
Essa narrativa é
um ótimo convite para refletir sobre os contrastes entre as aparências que
tentamos manter e a realidade que inevitavelmente nos alcança hoje em dia. E
também é uma homenagem aos causos simples, mas profundamente humanos, que fazem
parte do nosso cotidiano.
É uma história que certamente faz qualquer um sorrir
e imaginar as cenas vívidas no pequeno Grêmio de Santanense nas décadas de
1980. A história é
cheia de ironia e carisma, típica da escrita de Tarefa, com aquele toque
pitoresco do cotidiano interiorano. Mas será que Jerônimo
ficou agradecido por esse "resgate"? Só lendo para
descobrir!
JERÔNIMO E AS "TREIS" SOLTEIRONAS DE SANTANENSE
"Se a canoa não virar
Olê!
Olê! Olá!
Eu chego lá.........."
Quem passou em frente ao Grêmio
de Santanense naquela madrugada de domingo de carnaval não deixaria de cair na
folia. O pequeno espaço do Grêmio estava lotado até na tampa e, o calor era
infernal, com o povão se espremendo, se esfregando e sacolejando em volta do
pequeno salão, num coro só:
"Rema, rema, rema,
remador
Quero ver depressa
o meu amor
Se eu chegar
depois do sol raiar
Ela bota outro
em meu lugar!
Se a
canoa..................."
No palco o pequeno conjunto musical
dava o que tinha para manter o rítmo e a empolgação das centenas de pessoas, a
maioria fantasiadas, que cantarolavam salão afora.
- “Aposto que o nosso baile está mais
animado que o do Automóvel Clube, Flor do Momo e União Operário, lá em Itaúna!”
- Exclamou o Freitas enquanto tirava da boca por alguns instantes o seu
trombone de vara.
- “Carnaval igual a este do Grêmio
não existe: o povo de Santanense sabe brincar!” - Retrucou o Dico do Alcindo,
que não descuidava da marcação do seu surdo de primeira. Em volta da pista, assentadas
em cadeiras encostadas nas paredes, ficavam as moças solteiras e
descomprometidas, aguardando o convite dos rapazes para dançar. Na época uma
moça só ia para o salão dançar, se fosse convidada por algum rapaz. Caso
contrário tomava chá de cadeira a noite toda. E era um puxa e senta frenético. Um
olhar, um piscar de olhos, um sorriso correspondido e lá ia a moça salão afora
toda feliz, cair na folia, sempre sob o olhar atento e severo dos pais.
-“Já são quase duas horas da
madrugada”- falou a Marluce, já impaciente, para a irmã caçula Mariluce”- e até
agora não fomos convidadas para dançar! -Vamos brincar juntas no salão?”
-“De jeito nenhum!”- Resmungou a
Meireluce, a mais velhas das três irmãs solteironas, que acompanhava
atentamente a conversa das duas irmãs caçulas, uma com 37 e a outra com 39 anos
de idade.
-“Onde já se viu duas donzelas
saírem para o salão sem um par para acompanhá-las? -Vocês sabem como este
povinho de Santanense é danado de falador, né!”
E o
baile continuava noite a dentro com toda animação.
"Oh,
jardineira por que estás tão triste?
Mas o
que que foi que te aconteceu?
Foi a
camélia que caiu do galho
Deu dois suspiros e depois morreu
Vem, jardineira..............."
Com uma bendita chuva que
começou a cair a partir das três horas da madrugada, o forte calor foi
amenizado e, a animação aumentou no acanhado recinto do Grêmio de Santanense,
empurrado pela harmonia do bom conjunto musical. Já começava a clarear o dia
quando as três irmãs solteironas, Marluce, Mariluce e Meireluce, fantasiadas de
Colombinas, se prepararam para se retirar invíctas do recinto do Grêmio, isto
é, sem serem tiradas para dançar uma única vez.
- “Vamos embora deste lugar!”
- Falou a Meireluce – “Foi até bom a gente não ser chamada para dançar e se
misturar com este povinho daqui de santanense. Aqui eu não piso mais!” -Exclamou
com o nariz empinado, tentando aparentar um ar de satisfação.
De sombrinhas em punho rumaram
em direção à fazendinha que ficava à uns dois Km do centro do bairro, onde
residiam. Quando passavam em frente à portaria da fábrica da Santanense, viram
um vulto caído em meio a uma poça d’água. Condoídas e prestativas, mais do que
depressa encaminharam em direção ao desconhecido, receosas que o mesmo se
afogasse naquele lamaçal. Quando se aproximaram viram que se tratava do
Jerônimo, conhecido pinguço do bairro que tinha duas características
principais: beber todos os dias e nunca tomar banho. Com muito esforço e
repulsa, devido o forte odor que exalava, conseguiram virá-lo e colocá-lo
assentado no encosto do meio fio, com a cabeça apoiada no colo da Meiriluce, a
mais velha das três irmãs.
-“Isto que é uma boa ação!”-
Falou a Meireluce. “O pessoal do Grêmio deveria estar aqui para presenciar
isto, e nos dar o valor que merecemos.”
Aos poucos, com ajuda de um lenço, foram tirando o barro grudado na
barba do Jerônimo, bem como, limpando a baba que escorria pelo canto da sua
imunda boca.
-“Coitadinho, se não fosse nós
ele poderia ter morrido afogado!”-Exclamou a Marluce, sob os olhares de
aprovação das duas irmãs mais velhas.
-“Quando ele acordar vai
ficar muito agradecido e todos aqui no bairro ficarão sabendo! Aposto que até o
Padre Luiz Turkenburg, Pároco da Paróquia do Coração de Jesus de Santanense, vai
comentar no sermão da missa de logo mais”- complementou a Mariluce já entusiasmada com o tamanho do
seu ato de caridade.
Nisto, o Jerônimo começou a
se mexer, resmungou algo incompreensível, abriu os olhos empapuçados de tanta
cachaça, passou a mão imunda na barba suja de barro, olhou fixamente para as três
sorridentes solteironas em sua volta, suas velhas conhecidas, e fulminou:
“Nossssaaaaa...! Qui isganação
por causa de homi, sô!”...........................
Nas barrancas do
bairro mais barranqueiro do município de Itaúna, o Armazém Preço Justo era o
ponto de encontro de todo mundo. Quando digo todo mundo, estou falando de uma
clientela pra lá de variada: tinha o cliente mais abastado, que gostava de
exibir sua pose, e tinha o mais liso, que comprava fiado até não poder mais.
Mas o charme do
armazém não era apenas o preço justo, e sim o seu dono, Vicentão, com aquele
bigode bem aparado e lustroso que parecia mais uma obra de arte. Ele era o
herói da freguesia, mesmo com quatro atendentes prontos para ajudar, todos
queriam ser atendidos pelo bigodudo.
A filha de
Vicentão, uma adolescente que já entendia mais da vida do que o pai, ajudava no
armazém toda tarde. A mãe, quando não estava cuidando dos afazeres da casa,
também dava uma mãozinha no balcão, porque o movimento por lá era intenso.
Entre clientes, cobradores e vendedores, o armazém vivia cheio de gente – e
cheia de histórias.
Num desses dias
escaldantes de verão, Vicentão teve um daqueles almoços que ele tanto gostava:
inhame com quiabo e angu. O homem estava de alma lavada e estômago cheio, até
que a barriguinha começou a reclamar.
Vicentão foi
tomado por uma dor abdominal tão forte que começou a suar frio. Era uma
emergência! Não ia dar tempo de subir até sua casa, que ficava no andar de
cima. A única opção era correr para o banheiro do armazém, aquele que ele
evitava com todas as forças, porque era o reino das baratas e aranhas.
Mas, com o
desespero batendo, não tinha outra escolha. Lá foi Vicentão, correndo pelo meio
do armazém, segurando a barriga e a dignidade. Chegou no banheiro e, para seu
azar, a lâmpada estava queimada. Sem opção, fechou a porta – porque ninguém
merece ser flagrado numa situação dessas – e se sentou no vaso, pronto para a
batalha.
O que deveria ser
uma missão rápida de alívio se transformou em um verdadeiro filme de terror. As
baratas começaram a se espalhar pelo chão, e Vicentão, mais preocupado com os
insetos do que com o próprio "descarrego", ficou ali, agachado, em pânico.
Para piorar, o rolo de papel higiênico, com o local escuro, caiu direto no
vaso.
Enquanto isso, na
parte da frente do armazém, os clientes continuavam chegando e perguntando pelo
bigodudo. A filha, sem saber onde o pai estava, disse que ele estava
"resolvendo um problema muito urgente". Mas o povo queria mesmo era
falar com Vicentão. Sem opção, ela foi atrás dele e chegou no banheiro.
Do lado de fora,
chamou: "Pai! Tá tudo bem aí?" E ouviu só um grito abafado: "Tô
ocupado! Volta depois!" Desesperada, ela foi chamar a mãe, e as duas
correram até o banheiro, achando que o homem estava passando mal.
Quando abriram a
porta, a luz do dia invadiu o ambiente, e baratas tontas saíram por todos os
lados. Lá estava Vicentão, agachado no vaso, gritando: “Cruiz credo! Não tenho
nem tempo de esvaziar a barriga com essas baratas me cercando!” Não sabiam se
riam ou se ajudavam o pobre homem, mas a cena era digna de chorar de tanto rir.
As baratas fugiram, e Vicentão, assustado, saiu correndo atrás delas.
Além dessas
aventuras no banheiro, o armazém era palco de encontros diários das figuras
mais ilustres do bairro: Biluca e Tibim. Eles eram praticamente uma atração à
parte. Biluca, sempre com sua garrafinha de pinga, aparecia todos os dias
pedindo para encher. E Tibim, seu fiel escudeiro, acompanhava o amigo em todas
as jornadas.
A dupla tinha um
ritual curioso: quando bebiam, para não cair ou errar o caminho, saíam de
braços dados, segurando um ao outro, e percorriam o bairro inteiro,
cambaleando, até chegarem em casa. Era quase um espetáculo de comédia ao ar
livre. O bairro todo já sabia que quando Biluca e Tibim passavam, era um sinal
de que a tarde estava animada.
Certa vez, a
filha de Vicentão, preocupada com o estado de Biluca, decidiu pregar uma peça.
Quando ele apareceu para encher a garrafinha de pinga, ela misturou metade com
água, pensando que ele nem notaria. "Hoje é por conta da casa, Biluca, não
precisa pagar!", disse ela, tentando conter o riso. Biluca, com um sorriso
de orelha a orelha, agradeceu e saiu de braços dados com Tibim. Mas, dez
minutos depois, lá estava ele de volta ao armazém, cuspindo e fazendo careta:
"Menina, isso aqui é suco? Eu quero é pinga, não refresco!"
Mas nem todos os
fregueses eram tão engraçados quanto Biluca e Tibim.
Vicentão, com sua
confiança inabalável nas pessoas, jamais acreditava que alguém pudesse
enganá-lo. Isso até o dia em que apareceu um homem de cabelo brilhantinado,
terno, gravata e um “jornal” debaixo do braço. Todo elegante, o sujeito vivia
rondando o armazém sem nunca comprar nada. Vicentão, já desconfiado, um dia decidiu
abordá-lo: "Encontrou o que procurava, amigo?" O sujeito, nervoso,
tentou sair de fininho, mas, ao mexer no terno, deixou cair um saquinho de
farinha de mandioca que estava escondido no bolso. Vicentão, sem perder a
compostura, disse: Quer que eu embrulhe o saco de farinha ou o senhor vai comer
aqui mesmo?
Outro caso
memorável foi o cliente que sempre comprava fubá. Um dia, ao chegar no caixa,
ele deu um espirro tão forte que deixou cair do calção uma barra de doce de
leite e um saquinho de bicarbonato. O sujeito ficou tão pálido que saiu
correndo, largando até a carteira no balcão. E o pior: o dinheiro da carteira
nem dava para pagar o que ele tentou levar.
Com o tempo, a
família de Vicentão percebeu que os prejuízos se acumulavam. Entre os que
levavam mercadorias sem pagar e os fiados nunca quitados, o armazém foi à
falência. A filha bem que avisava: "Pai, o senhor confia demais nas
pessoas!" Mas Vicentão, sempre de coração aberto, acreditava que, apesar
dos pequenos golpes, ainda existia muita gente boa.
O armazém pode
ter fechado as portas, mas Vicentão, com seu bigode ainda lustroso, continuava
a sorrir, porque, no fundo, ele sabia que, no balanço da vida, as pessoas boas
sempre superam as que nos decepcionam.
Confiar nas
pessoas pode, às vezes, nos colocar em situações complicadas ou até hilárias,
como Vicentão descobriu da pior – e mais engraçada – maneira. Mas, apesar das
decepções, a verdade é que o mundo ainda está cheio de pessoas boas, que nos
fazem sorrir e que estão ao nosso lado quando mais precisamos. Então, mesmo que
a vida nos pregue algumas peças, nunca devemos deixar de acreditar que o bem
sempre vence.
Causos e Memórias
da barranqueira: Juliana Moreira
Roteiro e arte:
Charles Aquino
Santana do Rio
São João Acima, hoje Itaúna: Pedra Negra
Manhã de inverno
incomumente quente. A previsão dizia que a mínima seria de 18º e a máxima de
32º, com o céu limpo e sem possibilidade de chuva. Eu me levantei e, como de
costume, fui direto para a cozinha preparar meu próprio café — o cheiro fresco
preencheu o ar. Com a xícara pela metade, ainda liberando aquele aroma
característico, caminhei até a mesa onde estavam meus pertences e materiais de
trabalho. Havia papéis, documentos e equipamentos espalhados. Sentei e, depois
de um gole saboroso de café, o imprevisto aconteceu. Não sei exatamente como,
mas esbarrei na xícara. O que parecia ser uma pequena quantidade de café se
multiplicou de maneira absurda pela mesa.
Naquele instante,
não consegui dizer nada. Apenas olhei, tentando processar a cena e me
concentrar em salvar o que fosse mais importante. Com cuidado, comecei a
separar cada item da mesa. Havia papéis antigos que ainda precisava ler para
resolver pendências, os equipamentos eletrônicos que uso todos os dias no
trabalho, e mais documentos que representavam compromissos futuros.
Conforme eu
limpava tudo, algo curioso começou a acontecer. Percebi que, de algum modo, o
caos daquele café derramado, ou melhor, entornado sobre a mesa representava
muito mais do que apenas uma bagunça. Aqueles papéis antigos que estavam ali
eram o passado, um passado que eu insistia em manter por perto, mesmo que já
não tivesse utilidade. Os aparelhos eletrônicos e ferramentas de trabalho que
molharam eram meu presente, o agora, aquilo que realmente importa e que eu
preciso para funcionar. E os papéis de compromissos futuros estavam ali,
aguardando serem organizados, assim como as tarefas e os planos que ainda
preciso estruturar.
Enquanto secava
cada um desses itens, notei que, de maneira simbólica, eu estava reorganizando
minha vida. O passado, representado por aqueles documentos velhos, precisava
ser eliminado. Não havia mais sentido em mantê-los ali, ocupando espaço. O
presente, que estava logo ali diante de mim, exigia ação, cuidado e foco. E o
futuro, embora incerto, era algo que eu precisava apenas planejar, sem
ansiedade.
O que começou
como uma simples manhã rotineira, com um pequeno acidente, acabou me levando a
uma reflexão maior. Aquela confusão sobre a mesa me fez enxergar que, muitas
vezes, eu carrego mais do que o necessário. E que, com um pouco de organização,
posso simplificar minha vida. O passado já não precisava mais estar ali, o
presente merecia minha atenção imediata, e o futuro, bem, ele só exigia que eu
respirasse fundo e planejasse com calma. No final, com a
mesa limpa e tudo em seu devido lugar, eu percebi que o derramamento do café
não foi um desastre, mas uma oportunidade.
REFLEXÃO
Essa história do
café derramado revela uma rica oportunidade para uma reflexão sobre a vida, o
tempo e a forma como lidamos com o cotidiano. À primeira vista, o episódio pode
parecer uma situação comum e corriqueira — um café derramado acidentalmente sobre
uma mesa —, mas a narrativa vai muito além desse pequeno desastre matinal. A
partir dessa simples ação, a história conduz para uma percepção mais profunda
sobre o passado, o presente e o futuro.
O derramamento do
café, que inicialmente causa uma reação de surpresa e inação, leva a um
processo quase meditativo. Ao limpar os objetos, a atribuir a eles um
significado simbólico: os papéis antigos representam o passado, os equipamentos
de informática remetem ao presente, e os compromissos futuros, expressos em
documentos a serem organizados, apontam para o futuro. Esse ato físico de limpeza
se transforma em uma metáfora para o processo mental de reestruturação e
clareza.
A reflexão que
surge desse episódio cotidiano é poderosa: muitas vezes, a vida se derrama,
espalhando-se de maneiras inesperadas. Nesses momentos, nossa reação inicial
pode ser de frustração ou paralisia, mas o que realmente importa é como
escolhemos agir em seguida. O café derramado força a se concentrar no que está
diante de si, a organizar seus pensamentos e a redefinir as prioridades. Ao
separar os objetos da mesa em ordem de importância temporal — passado, presente
e futuro — se dá conta de algo fundamental: as coisas do passado precisam ser
deixadas para trás, o presente exige ação, e o futuro demanda planejamento, mas
sem a carga de ansiedade.
Essa reflexão nos
convida a uma abordagem mais consciente e tranquila da vida. Muitas vezes,
carregamos conosco problemas do passado que já deveriam ter sido resolvidos, ou
nos preocupamos excessivamente com o futuro, o que gera estresse e ansiedade. A
mensagem aqui é clara: devemos lidar com o passado apenas para aprender e
deixar ir viver o presente com presença e atenção, e planejar o futuro sem
pressa ou excesso de expectativa.
O "café entornado torna-se", assim, um lembrete simbólico de que a vida, apesar de seus acidentes
e imprevistos, pode ser reorganizada com calma e clareza. O importante é estar
presente no momento, sem se prender ao que passou ou temer o que está por vir. Às
vezes, o caos, como um simples café derramado, nos oferece a oportunidade de
parar, respirar e reorganizar nossa própria mesa mental.
Quando eles
chegaram, o time adversário já estava batendo bola no campo de terra batida. O
vento forte levantava uma poeira de terra vermelha que grudava nas narinas,
provocando uma série de espirros entre os jogadores do time visitante, que com
os olhos semi-serrados, devido ao vento empoeirado, procuravam tomar pé da
situação naquele pequeno lugarejo próximo a Itaúna.
Era uma manhã de
Domingo e as adversidades do campo, até então estranhas aos jogadores, eram na
opinião de todos o pior adversário. Invicto há quinze jogos os jogadores do
escrete da Lagoinha estavam mais do que preparados para enfrentar a temida
seleção de Itatiaiuçu cujas previsões eram de um jogo difícil e de resultado
imprevisível.
A torcida, formada em sua maioria por homens e crianças com uma
ou outra sombrinha colorida, se misturando à multidão, já tomava quase todas as
laterais do acanhado campo de terra.
“Hoje o campo
vai lotá – sussurrou o Vicentão para o Maurino da Barragem”
“Eu gosto é
assim- interveio o ponta Bution que próximo aos dois amigos, escutava toda a
conversa. Pequenino e veloz, o ponta cuja fama já se espalhava por toda a
redondeza, era uma das atrações do jogo. E ao som do apito do Juiz, em meio a
um barulhento foguetório tem início a aguardada partida e o ataque do escrete
da lagoinha formado pelo Dico da rede, Zé Barbeiro e o endiabrado Bution
infernizava a defesa adversária. No final do primeiro tempo o placar indicava 4x0
para a seleção da Lagoinha e o Vicentão e sua turma comemoravam a homérica goleada
devorando um balaio de laranja Pingo d’água na beira do acanhado campinho
coberto de terra vermelha.
“Hoje nós vamos
enfiar uns oito gols nestes pés vermelhos de Itatiaiuçu – vangloriava o
Gaguinho Padeiro, grande goleiro do escrete da Lagoinha, mas que quase não fora
exigido na partida em função do fraco ataque do time local.
No início do
segundo tempo os jogadores e a pequena torcida do time Itaunense foram
surpreendidos pelos gritos da torcida local quando o técnico da seleção de
Itatiaiuçu fez a primeira substituição.
“ Tião Dedão,
Tião Dedão, Tião Dedão..... - gritava em coro a fanática torcida em volta do campo
de terra vermelha, ao mesmo tempo que um jogador, aparentando ter uns 38 para
40 anos, meio desengonçado entrou em campo, ao sinal do árbitro.
“ Uaí, isto num
tá parecendo jogador de futebol não – exclamou o Donda, proprietário do Bar do
Donda lá na Lagoinha , onde os jogadores se reuniam antes e após as partidas de
futebol de Domingo.
“Óia, ele corre é de costa, seu Donda- interveio
o Maurino da Barragem num acesso de riso. E só foi o Maurino acabar de falar
que o jogador desengonçado partiu em velocidade e de costas para a área do
escrete da Lagoinha, que ao receber o cruzamento na altura da grande área
carcou um bicudo na bola, que ao invés de ir para frente foi para trás
estourando no travessão do assustado goleiro Gaguinho Padeiro.
“Jesus, Maria,
José, o homi chuta é para trás – exclamou o lateral Dico da Rede para o
assustado Vicentão ao mesmo tempo que a torcida a pleno pulmões gritava o nome
do seu ídolo: Tião Dedão, Tião Dedão, Tião Dedão, Tião Dedão..................
Imediatamente
todos os olhares dos jogadores Itaunenses se concentraram no pé do crack de
Itatiaiuçu e surpresos viram o saliente dedão do pé direito do desengonçado
atacante rebitado para cima, através de um buraco no couro da velha e surrada
chuteira
“ Desde minino
que o iscumungado é assim. É de nascença – explicou um senhor magrelo e de
bigode fino, torcedor do time local, para a atenta e assustada torcida
Itaunense.
“ Ele tem os
quatro dedos do pé direito pra frente e o dedão arrebitado pro céu. Por isto é
que ele joga de marcha-ré – complementou num sorriso desdentado.
“Como ele é o
mais velho do time, só joga no segundo tempo- complementou o seu colega de lado
um baixinho careca e sorridente. Na defesa o Vicentão com seus 92Kg de puro
músculo e o lateral Quilos-Peixe faziam de tudo para parar o perigoso atacante,
o que era quase impossível para alguém que jogava de costas, chutava para trás
e corria de marcha-ré.
“Segura o homi Vicentão
senão a vaca vai pro brejo – gritava desesperado o Antônio Jiló, quando em uma
de suas perigosas descidas o Tião Dedão, de costas, marcava o terceiro gol do
time local.
Faltando poucos
segundos para terminar a partida, o placar indicava 4x3 a favor do escrete da
Lagoinha quando a bola foi cruzada para o Tião que da entrada da grande área,
mesmo marcado por cinco adversários e de costas, enfiou o dedão na redonda. O
que se viu a seguir foi a multidão invadir o campo e aos gritos de Tião Dedão,
Tião Dedão, Tião Dedão, carregar nos ombros o seu ídolo.Próximo ao gol, e ainda
inconformados por deixar escapar uma vitória tão certa, os jogadores da
Lagoinha ainda puderam ver em meio a eufórica torcida, o crack da seleção de
Itatiaiuçu sendo carregado, bem como, o seu saliente dedão, ainda sujo de terra
vermelha, escapando pelo buraco da velha e surrada chuteira de couro...
O desejo de
emancipação do arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima, hoje, município de
Itaúna, Minas Gerais, percorreu um longo e árduo caminho, marcado por diversas
tentativas ao longo dos anos, que culminaram em seu sucesso no início do século
XX. A trajetória rumo à emancipação municipal pode ser dividida em diversos
marcos significativos ao longo das décadas, com destaque para os anos de 1856,
1874, 1877, 1879, 1890, 1901 e 1902.
1856
— Primeiras Sementes do Desejo de Emancipação:Neste ano surgiram as
primeiras discussões sobre a necessidade de emancipação do distrito de Sant’Ana
do São João Acima, que então pertencia ao município de Pará de Minas. Esse
período foi caracterizado pelo início das articulações políticas locais, onde
lideranças começaram a reconhecer a importância de se ter uma administração
própria para atender às demandas crescentes da região. Contudo, a falta de
estrutura política e a pouca influência dos líderes locais na política
provincial impediram que os esforços resultassem em sucesso imediato.
1874
— Reforço no Movimento Emancipacionista: Neste período, novas movimentações
foram feitas para impulsionar a emancipação. O crescimento econômico da região,
com a agricultura e a pecuária se expandindo, criou um cenário propício para a
renovação das tentativas de separação. Porém, mais uma vez, as barreiras
políticas e a resistência de figuras influentes no município de Pará de Minas
frustraram os esforços dos emancipacionistas.
1877
— Persistência nas tentativas:A
perseverança das lideranças locais foi novamente testada em 1877, quando se
intensificaram os movimentos políticos em prol da emancipação. Nessa época,
figuras influentes do arraial de Santana começaram a se destacar na luta,
promovendo reuniões e debates entre os habitantes locais. Apesar das
dificuldades, a mobilização popular cresceu, plantando as bases para as futuras
tentativas.
1879 —
Avanços Políticos: Dois anos depois, as discussões sobre a emancipação
ganharam mais força. As dificuldades vividas pela população local, que
enfrentava longas distâncias para resolver questões administrativas em Pará de
Minas, tornaram a emancipação um clamor popular. A pressão exercida pelos
moradores e líderes locais, intensificou-se, ainda que os resultados práticos
só fossem aparecer anos depois.
1890 — Ventos
Republicanos: Ainda em 1890,
aproveitando os "ventos republicanos", os líderes de Sant’Ana do Rio
São João Acima intensificaram seus esforços pela emancipação do município. Antes
mesmo da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o arraial de
Sant’Ana já demonstrava um forte alinhamento com os ideais republicanos. Um
marco desse pioneirismo foi a fundação do Clube Republicano 21 de Abril, em
1889, sendo um dos primeiros movimentos republicanos em Minas Gerais. Liderado
por figuras proeminentes da região, o clube foi fundamental para mobilizar a
população em torno das ideias republicanas. No entanto, a instabilidade
política do novo regime dificultou a aprovação das demandas locais, tornando o
processo mais desafiador do que o esperado.
1902
— Consolidação da Emancipação: Em 2 de janeiro de 1902, a emancipação de
Itaúna foi consolidada com a instalação da Câmara Municipal. A nomeação do Dr. Augusto Gonçalves de Souza Moreira como o primeiro prefeito marcou o início da
administração municipal própria, estabelecendo as bases políticas e
administrativas do novo município. Seu papel foi fundamental não apenas na
gestão inicial, mas também no fortalecimento das bases, contribuindo significativamente
para o desenvolvimento do município.
Longa Jornada:
A história da emancipação de Itaúna é marcada por uma longa jornada de
pertencimento a diferentes municípios, refletindo as transformações políticas e
administrativas que moldaram a região ao longo de décadas. Antes de alcançar
sua autonomia, a área que hoje compreende o município de Itaúna passou por
várias mudanças de jurisdição, pertencendo a diferentes municípios em momentos
distintos: Sabará: 1711, Pitangui: 1715, Bonfim: 1847, Pará de Minas: 1848, Pitangui: 1850,
Pará de Minas: 1858, Pitangui: 1872, Pará de Minas: 1874 e finalmente, em 1901,
Itaúna se tornou um município autônomo.
Inicialmente, em
1711, a área fazia parte do município de Sabará, um dos primeiros centros
administrativos da Capitania de Minas Gerais. Poucos anos depois, em 1715,
Itaúna foi incorporada ao vasto território de Pitangui, que na época era um dos
principais núcleos urbanos da região. Pitangui manteve sua influência sobre a
área até a metade do século XIX.
Em 3 de abril de 1847, por meio da Lei nº 334, a Paróquia de Santana de São João Acima foi incorporada ao Município de Bonfim. Com o passar do tempo e o desenvolvimento
econômico da região, a necessidade de uma administração mais próxima se fez
sentir, em 1848, Itaúna foi desmembrada e passou a pertencer a
Pará de Minas. Este vínculo durou por alguns anos, mas em 1850, o território de
Itaúna voltou a ser parte de Pitangui, refletindo as mudanças nas delimitações
municipais que ocorriam na época.
Novamente, em
1858, Itaúna foi incorporada ao município de Pará de Minas, onde permaneceu até
1872, quando mais uma vez voltou a integrar Pitangui. Essas constantes mudanças
de jurisdição foram um reflexo das complexas dinâmicas políticas e econômicas
que caracterizavam a região naquele período. Finalmente, em 1874, Itaúna foi
novamente colocada sob a administração de Pará de Minas.
Já em 1901, após
sua emancipação pela Lei nº 319, a vila de Itaúna começou a se consolidar como um importante
centro regional. O progresso da vila foi reconhecido pelo governo do Estado de
Minas Gerais, e esse reconhecimento foi oficializado pela Lei nº 663, de 18 de
setembro de 1915, que alterou a divisão judiciária do estado e conferiu à vila
de Itaúna o status de cidade. Em 24 de janeiro de 1925, pela Lei nº 879, Itaúna
foi elevada à categoria de comarca.
Esse processo de
evolução administrativa reflete o crescimento e a importância que o município
adquiriu ao longo do tempo, impulsionado pelo desejo de suas lideranças e pela
perseverança de seu povo em alcançar autonomia e desenvolvimento. A elevação do
antigo arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima, hoje Itaúna, à condição de
cidade e comarca marcou o início de uma nova era, consolidando o município como
um polo regional de progresso e prosperidade.
SOUZA, Miguel
Augusto Gonçalves de. História de Itaúna, BH, Ed. Littera Maciel Ltda, 1986, p.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Memória do Judiciário Mineiro. Comarcas de Minas. Organizadores: Desembargador Lúcio Urbano Silva Martins e Rosane Vianna Soares. Coordenação: Andréa Vanessa da Costa Val. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2016. v. I, p. 576-578.
O poema
"Canção para Itaúna", de Maria Lúcia Mendes, é uma expressão clara do
amor profundo que a poeta nutre por sua terra natal, Itaúna, celebrando suas
paisagens, história e cultura.
Através de versos que evocam imagens como
"terra dos quintais maduros" e "crepúsculo no Bonfim",
Maria Lúcia nos transporta para uma Itaúna rica em memórias e significados.
As
referências ao Rosário e ao Bonfim revelam uma conexão espiritual com a cidade,
onde o sagrado e o cotidiano se entrelaçam.
No verso "A
seiva minando do chão bruto", a poeta sugere a força e a riqueza de
Itaúna, tanto em termos naturais quanto humanos. O minério e os teares
simbolizam o trabalho e a história industrial da cidade, enquanto o "riso
e suor" remetem ao esforço coletivo de seus habitantes ao longo do tempo.
Ao
declarar "amo tuas virtudes, teus pecados", Maria Lúcia nos mostra
uma relação sincera e completa com Itaúna, reconhecendo tanto os aspectos
positivos quanto os desafios da cidade.
O poema culmina
com a afirmação "Sou tua filha, a pedra negra eu beijo", uma metáfora
poderosa que remete às raízes históricas de Itaúna, antigamente conhecida como
Santana do Rio São João Acima, associada à famosa "Pedra Negra".
Esse
poema, apresentado como uma homenagem em comemoração à emancipação de Itaúna em
16 de setembro, nos
brinda, assim, com uma celebração poética que reforça o orgulho e a ligação
afetiva com a cidade.
CANÇÃO PARA
ITAÚNA
Eu te amo, terra
dos quintais maduros
Do Rosário na
laje, onde pastam sonhos ...
Crepúsculo no
Bonfim, como não vê-los ?
A seiva minando
do chão bruto
É minério que
engendras, são teares
Riso e suor no
tempo emoldurados.
A tempo de viçar
toa uma história
Terra que se
soprou ventos viários
Fome, razão,
cicatriz, desejo
Amo tuas
virtudes, teus pecados
Sou tua filha, a
pedra negra eu beijo.
Prepare-se para uma viagem emocionante no tempo e no coração! Agora, essa experiência está disponível também em vídeo! Não perca essa oportunidade imperdível de celebrar a essência de Itaúna de uma forma única e tocante. Venha viver essa poesia com a gente!"
Poema: Escritora
Maria Lúcia Mendes
Organização e
arte: Charles Aquino.
Santana do Rio
São João Acima, hoje Itaúna, Minas Gerais: Pedra Negra.
A obra do historiador itaunense João
Dornas Filho oferece um retrato incisivo dos conflitos ideológicos que marcaram
o Brasil em 1831, particularmente no contexto da abdicação de D. Pedro I.
Através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”, o autor consegue explorar
temas profundos como o embate entre tradição e modernidade, a hipocrisia
política e religiosa, e a divisão interna entre os brasileiros. O uso de uma
linguagem popular em forma de versos reforça a crítica social, tornando o texto
um importante documento histórico e literário, que ajuda a entender as
complexidades do período pós-independência no Brasil.
A análise do
texto "A Abdicação e a Musa Popular em 1831", de João Dornas Filho,
revela uma rica crítica social e política do Brasil no contexto da abdicação de
D. Pedro I, “após o 7 de abril”. A obra utiliza uma forma popular, o diálogo em
versos entre dois personagens — o “Corcunda” e o “Patriota” —, representando
facções opostas da época: os “corcundas”, que defendiam o retorno do imperador,
e os “patriotas”, que lutavam pela independência e pela formação de uma
república.
O texto está
inserido em um período de instabilidade política no Brasil, onde dois partidos
principais surgem com visões antagônicas sobre o futuro do país. De um lado, os
“corcundas”, nome pejorativo dado aos defensores da monarquia e da volta de D.
Pedro I, e de outro, os “patriotas”, que defendiam a continuidade da
independência e o afastamento da figura imperial. A luta ideológica desses dois
grupos é retratada de forma alegórica, com um “Corcunda” e um “Patriota”
debatendo sobre os valores que acreditam ser corretos para a nação.
O “Corcunda”
representa a defesa do status quo, com uma visão conservadora e
centralizadora, muitas vezes associada ao despotismo. Ele se mostra fiel a um
ideal de monarquia como instituição sacralizada e vinculada ao direito divino,
como se observa na referência ao rei Davi, comparando D. Pedro I a uma “figura
ungida por Deus”. Ao longo do diálogo, ele usa a tradição e a fé como
argumentos para justificar a necessidade de um governo monárquico forte,
resistente às mudanças propostas pelos patriotas.
O “Patriota”, por
sua vez, simboliza a contestação dessa ordem e a busca por novas soluções,
questionando o valor da monarquia e defendendo o progresso republicano. Ele
desdenha o romantismo de seu oponente, associando os "corcundas" a figuras
ultrapassadas e obsoletas, comparando o rei Davi a um "pobre coitado"
e criticando o que considera ser uma era de tiranos.
Dornas Filho usa
a “musa popular” para refletir a opinião pública da época. Ao recorrer a versos
e formas de expressão acessíveis, ele traz para o texto a voz do povo, que, de
maneira crítica, usava essas representações para satirizar a situação política
do país. Esse recurso literário é valioso, pois preserva as nuances das
opiniões populares, muitas vezes marginalizadas pela história oficial. A
utilização de um formato popular torna o texto mais próximo das práticas
culturais de resistência e debate que aconteciam fora dos círculos do poder.
Dornas ressalta a
definição de “Corcunda” da época, conforme descrita no dicionário “Carcundático”
ou na explicação das expressões dos “Carcundas” por José Joaquim Lopes de Lima,
de 1821, informando que: “Homem que, feito, e satisfeito com a carga do despotismo,
se curva, como o dromedário, para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o
indelével ferrete do servilismo, tem contraído o hábito de não erguer mais a
cabeça, recheada das estonteantes ideias de uma sórdida cobiça.”
Temas
Principais através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”
O diálogo entre o
“Corcunda” e o “Patriota” reflete uma disputa entre a manutenção das estruturas
tradicionais e a busca por novas formas de governo. A argumentação do “Corcunda”
se baseia na preservação da ordem monárquica, enquanto o “Patriota” anseia por
uma transformação que rompa com os resquícios coloniais. Um tema recorrente é a
desunião entre os próprios brasileiros. O “Patriota” acusa o “Corcunda” dissipar e perseguir seus próprios compatriotas, com a metáfora de lobos
que devoram cordeiros. Isso ilustra a violência e a repressão que acompanhou os
conflitos internos do Brasil nesse período, refletindo as dificuldades de
consolidação da independência.
A religião é um
tema subjacente nas falas do “Corcunda”, que constantemente evoca Deus para
justificar suas posições. O “Patriota”, no entanto, desmascara a hipocrisia
dessas argumentações, associando-as à defesa de interesses egoístas. A
referência ao rei Davi é um exemplo dessa desconstrução: o “Patriota” lembra
que, embora ungido por Deus, era um simples pastor, questionando a idealização
da figura monárquica.
O diálogo também
revela as tensões sociais latentes no Brasil do século XIX, com o “Patriota”
denunciando a opressão exercida pelos poderosos sobre os mais fracos,
simbolizada na metáfora dos lobos. As menções a "carbonários" e
"pedreiros" por parte do “Corcunda” indicam uma crítica às forças
revolucionárias e republicanas que estavam ganhando força naquele período. Esse
texto é uma crítica expressa em tom sarcástico e satírico contra os movimentos
políticos e sociais que desafiaram a monarquia e a Igreja Católica em Portugal,
especialmente durante o período de D. João VI, rei de Portugal, que governou
durante um período tumultuado marcado por tensões entre monarquistas e
liberais.
O Movimentos
Liberais dos “pedreiros” e “carbonários” mencionados são referências aos maçons,
grupos secretos que eram vistos como subversivos pelos monarquistas e
católicos, pois defendiam ideias liberais e republicanas. O autor critica a
Constituição e a anarquia, associando-as à desordem e à falta de moralidade, em
contraste com a ordem e a religiosidade defendidas pelos monarquistas.
Os opositores são
retratados como inimigos da religião, que “não querem saber de missa” e “mofam
de tudo o que diz o novo Testamento”. Isso sugere que o autor vê os liberais
como anticristãos — descrença religiosa. Os “infames patriotas” são acusados de
desrespeitar a nobreza e as tradições, o que para o autor é um sinal de
decadência moral. O texto exalta a família real, particularmente D. João VI,
como “pio e santo”, e expressa a visão de que a monarquia foi instituída por
Deus para governar com justiça e piedade. O autor valoriza a nobreza de sangue
e de comportamento, criticando a falta de respeito que os “patriotas” têm por
essas tradições. No entanto, ao longo do texto, fica evidente que, apesar desse
reconhecimento, ele continua comprometido com a defesa de uma ordem antiga, com
medo das mudanças representadas pelos “patriotas”.
O texto utiliza
estereótipos para ridicularizar os liberais, pintando-os como ímpios,
desorganizados e inimigos da ordem social. O trecho, que fala sobre estar
“contente de ver tudo acabado”, sugere uma ironia amarga, possivelmente
expressando uma frustração pela situação política. O texto reflete o pensamento
conservador e monarquista da época, defendendo a tradição, a religiosidade, e a
hierarquia social, enquanto critica os movimentos liberais que ameaçavam essas
estruturas. É um exemplo da retórica polarizadora e do conflito ideológico que
marcou o período. O texto segue com ambos discutindo o estado político e social
do Brasil no período pós-abdicação de D. Pedro I, refletindo sobre traições,
revoltas e o destino do país.
A retórica
satírica e polarizadora revela o conflito ideológico da época. O “Patriota” usa
uma linguagem crítica e sarcástica para ridicularizar a monarquia e expor as
injustiças sociais, enquanto o “Corcunda” tenta justificar suas crenças com
argumentos religiosos, eventualmente se resignando diante das críticas.
Os textos de que
fazem parte esse diálogo refletem as tensões políticas e sociais do Brasil
pós-abdicação de D. Pedro I, marcadas pela disputa entre conservadores e
liberais. O uso de trocadilhos, rimas e figuras de linguagem sugere que esses
textos foram pensados para um público popular, talvez circulando em panfletos
ou discussões públicas, com o objetivo de difundir ideias e criticar o status
quo.
Esses diálogos,
ao incorporar personagens simbolicamente nomeados como “Patriota” e “Corcunda”,
personificam o embate entre os defensores da monarquia e os partidários de uma
sociedade mais igualitária. A crítica ao regime monárquico e à hierarquia social
é clara, e a narrativa expõe as injustiças e a opressão das classes mais
baixas.
O uso de figuras
bíblicas e metáforas religiosas pelos dois personagens reflete a importância da
religião nos debates políticos da época, e a linguagem acessível e popular
sugere um apelo direto ao público. Esses textos, marcados pela sátira e pela
crítica política, são testemunhos das lutas simbólicas que precederam as
mudanças sociais no Brasil do século XIX.
A
ABDICAÇÃO E A MUSA POPULAR EM 1831
CORCUNDA X PATRIOTA
Por
João Dornas Filho
“Logo após o 7
de abril, a política brasileira entrava em ebulição tumultuosa, devida ao
aparecimento de dois partidos que pugnavam, cada qual com mais calor e
veemência, pela vitória das suas ideias. Eram os “corcundas”, que se batiam
pela volta de D. Pedro I, e os “patriotas”, figadalmente adversários desta
solução, não repugnando alargar os seus princípios até à implantação da
república. Dessa época tormentosa da nossa história ficaram inúmeros documentos
em que aparece a “musa popular” criticando os homens e os fatos, como este
curioso diálogo entre dois adversários:”
CORCUNDA —
Deus lhe guarde, meu senhor.
PATRIOTA —
Venha com Deus, cavalheiro,
venha logo me
dizendo
se é
"corcunda" ou "brasileiro".
Vejo-lhe bem
divisado
na cabeça um
grande galho,
bem me parece
ser
da vazante o
espantalho.
CORCUNDA —
Sim, senhor, eu sou corcunda
e morro pelo meu
rei;
esta divisa que
trago
é da sua real
lei;
se o senhor é
patriota,
provisório
cidadão,
se fala contra o
meu rei,
é judeu, não é
cristão.
E com isto já me
vou,
não quero mais
esperar.
O senhor é
jacobino
pelo modo de
falar.
PATRIOTA —
Dê-me atenção, senhor,
não se faça
esforicido;
um homem
apaixonado
não dá prova de
entendido.
Eu conheço o seu
caráter,
não é de tolo e
vário,
mostra ser de um
pensante
ou de um
escriturário.
Faça-me a honra
apear,
venha me dar um
clarão;
só o senhor pode
dizer-me
o que é a
constituição,
e também da
independência
de D. Pedro
imperador:
tudo me explique
agora,
eu lhe peço por
favor.
CORCUNDA —
Se o senhor fala-me sério,
se não é
adulação,
eu lhe direi de
que consta
a nova
constituição.
PATRIOTA —
O senhor creia em mim,
muito sério lhe
falo;
eu sou um homem
néscio,
não sei onde
canta o galo.
CORCUNDA —
Estes malvados pedreiros,
carbonários da
nação,
que por serem
carvalhistas
detestam serem
cristãos,
nem querem ter
rei nem roque,
e menos
religião,
por isso
desprezaram
o nosso rei D.
João.
A lei deles é
anarquia
da tal
constituição,
cativando desumanos
sem ter quem lhes
vá à mão;
não querem saber
de missa,
menos do
sacramento,
mofam de tudo o
que diz
o novo
Testamento.
Veja, pois, por
que rigor
chamam a nós
marinheiros,
arrocham de pau e
peia,
morram todos ao
chumbeiro.
Uns homens nobres
em tudo,
no sangue e no
proceder,
de famílias ilustradas,
muitos deles veem
a ser
filhos de duques,
marqueses,
de condes e de
morgados.
Dos infames
patriotas
têm sido
desfeiteados...
Estas feras de
ora avante
só em si maldade
encerram,
desprezam o nosso
rei,
que Deus nos deu
na terra,
um homem pio e
santo,
um refúgio e
esperança,
o nosso D. João
Sexto,
filho da Real
Bragança.
Esta família ilustrada
que o mesmo Deus
destinou
pra seus filhos
governarem,
serem de nós supriu...
Mas agora estou
contente
de ver tudo
acabado,
uns mortos e
outros presos.
Adeus, tenha
saúde,
creia nisso que
lhe digo,
fuja dos
patriotas,
que são nossos
inimigos.
Já estão se
acabando
as malditas
rebeliões,
ficando só no
Brasil
a fé pura de
cristões.
PATRIOTA —
Tratemos da independência.
CORCUNDA —
Isso é um passo muito errante,
Dom Pedro no
Brasil
não pode ser
imperante.
PATRIOTA —
Porque? Ele não é Bragança?
CORCUNDA —
Se o rei ainda é vivo,
não pode haver
herança.
PATRIOTA — Já
não posso, seu corcunda,
suas loucuras
calar;
quer por gosto,
quer por força,
ouça-me agora a
falar.
Diga-me, homem
sem brio,
amante do
cativeiro,
somos terra,
somos gados
que D. Pedro seja
herdeiro?
Quando Deus
formou o mundo,
qual foi o rei
que deixou?
Não deixou só um
Adão
de todos
progenitor?
Deste mesmo Adão
não fez
Deus do céu por
seu mando
uma mulher para
ele
produzir o gênero
humano?
Desses pobres
camponeses
produziu todas
nações,
algum dia eles
tiveram
fidalguia ou
brasões?
Onde foi Bragança
haver
esse sangue
ilustrado?
Só se foi por
outro Adão
que por Deus não
foi deixado;
só dessa
descendência
de gentes que
Deus não fez
saiu toda a
jerarquia,
condes, duques e
marquês.
Abre os olhos,
homem tolo,
adora o Deus
verdadeiro,
aquele que por
nós morreu
como inocente
cordeiro.
Se um rei é tão
real,
como adular a D.
João,
é baixeza no
morrer
se formar em
podridão.
Ressuscitar aos
três dias
assim como
ressuscitou
o rei filho de
Maria.
CORCUNDA — Eu
já digo o rei Davi,
que o mesmo Deus
consagrou.
PATRIOTA —
Isto eu não duvido,
e também por isto
estou;
mas quem era o
rei Davi?
Era um pobre
coitado,
era um simples
pastorzinho
do rebanho do seu
gado.
Que é do nosso
rei Davi?
Agora só há
tiranos,
dissolutos,
incivis,
de vaidades
profanos.
CORCUNDA —
Já é tarde, vou andando,
tenha mão, seu
papagaio.
Você diz: cadê as
tropas
do coitado do
Pinheiro?
É certo que lá
andei,
e que dele sou
soldado...
PATRIOTA —
Perseguiste os teus patrícios
como lobos
defamados;
nas casas que
cercaste
também, forte
carniceiro,
ajudaste a tirar
vida, honra e
dinheiro;
ajudaste a matar
teus irmãos,
mansos cordeiros.
Que desgraça, seu
corcunda,
entre os mesmos
brasileiros!
Desprezar os seus
irmãos,
como lobos
carniceiros.
Esta injustiça,
seu corcunda,
reclamam os céus
inteiros...
CORCUNDA —
Meu amigo, estou certo
do quanto me tem
narrado,
já me pesa de ter
sido
dos meus irmãos o
malvado.
Roto o véu do
engano,
nova vida eu
terei,
constante
patriota serei;
podem contar
comigo:
— Defender a
nossa pátria
e morra o nosso
inimigo!
“Na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro existem centenas de folhetos que guardam a vasta
produção de versos como estes, denunciadores do ardor das paixões que
crepitaram durante todo aquele movimentado decênio da nossa História”.
Organização,
arte, pesquisa e análise: Charles Aquino
FILHO, João
Dornas: A abdicação e a musa popular em 1831 — CULTURA POLÍTICA — Revista
mensal de estudos brasileiros. - INVENTÁRIO - BN - Rio de Janeiro, Ano IV Nº
41- Junho de 1944 , p.155-159.