Nas barrancas do
bairro mais barranqueiro do município de Itaúna, o Armazém Preço Justo era o
ponto de encontro de todo mundo. Quando digo todo mundo, estou falando de uma
clientela pra lá de variada: tinha o cliente mais abastado, que gostava de
exibir sua pose, e tinha o mais liso, que comprava fiado até não poder mais.
Mas o charme do
armazém não era apenas o preço justo, e sim o seu dono, Vicentão, com aquele
bigode bem aparado e lustroso que parecia mais uma obra de arte. Ele era o
herói da freguesia, mesmo com quatro atendentes prontos para ajudar, todos
queriam ser atendidos pelo bigodudo.
A filha de
Vicentão, uma adolescente que já entendia mais da vida do que o pai, ajudava no
armazém toda tarde. A mãe, quando não estava cuidando dos afazeres da casa,
também dava uma mãozinha no balcão, porque o movimento por lá era intenso.
Entre clientes, cobradores e vendedores, o armazém vivia cheio de gente – e
cheia de histórias.
Num desses dias
escaldantes de verão, Vicentão teve um daqueles almoços que ele tanto gostava:
inhame com quiabo e angu. O homem estava de alma lavada e estômago cheio, até
que a barriguinha começou a reclamar.
Vicentão foi
tomado por uma dor abdominal tão forte que começou a suar frio. Era uma
emergência! Não ia dar tempo de subir até sua casa, que ficava no andar de
cima. A única opção era correr para o banheiro do armazém, aquele que ele
evitava com todas as forças, porque era o reino das baratas e aranhas.
Mas, com o
desespero batendo, não tinha outra escolha. Lá foi Vicentão, correndo pelo meio
do armazém, segurando a barriga e a dignidade. Chegou no banheiro e, para seu
azar, a lâmpada estava queimada. Sem opção, fechou a porta – porque ninguém
merece ser flagrado numa situação dessas – e se sentou no vaso, pronto para a
batalha.
O que deveria ser
uma missão rápida de alívio se transformou em um verdadeiro filme de terror. As
baratas começaram a se espalhar pelo chão, e Vicentão, mais preocupado com os
insetos do que com o próprio "descarrego", ficou ali, agachado, em pânico.
Para piorar, o rolo de papel higiênico, com o local escuro, caiu direto no
vaso.
Enquanto isso, na parte da frente do armazém, os clientes continuavam chegando e perguntando pelo bigodudo. A filha, sem saber onde o pai estava, disse que ele estava "resolvendo um problema muito urgente". Mas o povo queria mesmo era falar com Vicentão. Sem opção, ela foi atrás dele e chegou no banheiro.
Do lado de fora,
chamou: "Pai! Tá tudo bem aí?" E ouviu só um grito abafado: "Tô
ocupado! Volta depois!" Desesperada, ela foi chamar a mãe, e as duas
correram até o banheiro, achando que o homem estava passando mal.
Quando abriram a
porta, a luz do dia invadiu o ambiente, e baratas tontas saíram por todos os
lados. Lá estava Vicentão, agachado no vaso, gritando: “Cruiz credo! Não tenho
nem tempo de esvaziar a barriga com essas baratas me cercando!” Não sabiam se
riam ou se ajudavam o pobre homem, mas a cena era digna de chorar de tanto rir.
As baratas fugiram, e Vicentão, assustado, saiu correndo atrás delas.
Além dessas
aventuras no banheiro, o armazém era palco de encontros diários das figuras
mais ilustres do bairro: Biluca e Tibim. Eles eram praticamente uma atração à
parte. Biluca, sempre com sua garrafinha de pinga, aparecia todos os dias
pedindo para encher. E Tibim, seu fiel escudeiro, acompanhava o amigo em todas
as jornadas.
A dupla tinha um
ritual curioso: quando bebiam, para não cair ou errar o caminho, saíam de
braços dados, segurando um ao outro, e percorriam o bairro inteiro,
cambaleando, até chegarem em casa. Era quase um espetáculo de comédia ao ar
livre. O bairro todo já sabia que quando Biluca e Tibim passavam, era um sinal
de que a tarde estava animada.
Certa vez, a
filha de Vicentão, preocupada com o estado de Biluca, decidiu pregar uma peça.
Quando ele apareceu para encher a garrafinha de pinga, ela misturou metade com
água, pensando que ele nem notaria. "Hoje é por conta da casa, Biluca, não
precisa pagar!", disse ela, tentando conter o riso. Biluca, com um sorriso
de orelha a orelha, agradeceu e saiu de braços dados com Tibim. Mas, dez
minutos depois, lá estava ele de volta ao armazém, cuspindo e fazendo careta:
"Menina, isso aqui é suco? Eu quero é pinga, não refresco!"
Mas nem todos os
fregueses eram tão engraçados quanto Biluca e Tibim.
Vicentão, com sua confiança inabalável nas pessoas, jamais acreditava que alguém pudesse enganá-lo. Isso até o dia em que apareceu um homem de cabelo brilhantinado, terno, gravata e um “jornal” debaixo do braço. Todo elegante, o sujeito vivia rondando o armazém sem nunca comprar nada. Vicentão, já desconfiado, um dia decidiu abordá-lo: "Encontrou o que procurava, amigo?" O sujeito, nervoso, tentou sair de fininho, mas, ao mexer no terno, deixou cair um saquinho de farinha de mandioca que estava escondido no bolso. Vicentão, sem perder a compostura, disse: Quer que eu embrulhe o saco de farinha ou o senhor vai comer aqui mesmo?
Outro caso
memorável foi o cliente que sempre comprava fubá. Um dia, ao chegar no caixa,
ele deu um espirro tão forte que deixou cair do calção uma barra de doce de
leite e um saquinho de bicarbonato. O sujeito ficou tão pálido que saiu
correndo, largando até a carteira no balcão. E o pior: o dinheiro da carteira
nem dava para pagar o que ele tentou levar.
Com o tempo, a
família de Vicentão percebeu que os prejuízos se acumulavam. Entre os que
levavam mercadorias sem pagar e os fiados nunca quitados, o armazém foi à
falência. A filha bem que avisava: "Pai, o senhor confia demais nas
pessoas!" Mas Vicentão, sempre de coração aberto, acreditava que, apesar
dos pequenos golpes, ainda existia muita gente boa.
O armazém pode
ter fechado as portas, mas Vicentão, com seu bigode ainda lustroso, continuava
a sorrir, porque, no fundo, ele sabia que, no balanço da vida, as pessoas boas
sempre superam as que nos decepcionam.
Confiar nas pessoas pode, às vezes, nos colocar em situações complicadas ou até hilárias, como Vicentão descobriu da pior – e mais engraçada – maneira. Mas, apesar das decepções, a verdade é que o mundo ainda está cheio de pessoas boas, que nos fazem sorrir e que estão ao nosso lado quando mais precisamos. Então, mesmo que a vida nos pregue algumas peças, nunca devemos deixar de acreditar que o bem sempre vence.
Causos e Memórias da barranqueira: Juliana Moreira
Roteiro e arte:
Charles Aquino
Santana do Rio São João Acima, hoje Itaúna: Pedra Negra