domingo, setembro 08, 2024

CORCUNDAS X PATRIOTAS

A obra do historiador itaunense João Dornas Filho oferece um retrato incisivo dos conflitos ideológicos que marcaram o Brasil em 1831, particularmente no contexto da abdicação de D. Pedro I. Através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”, o autor consegue explorar temas profundos como o embate entre tradição e modernidade, a hipocrisia política e religiosa, e a divisão interna entre os brasileiros. O uso de uma linguagem popular em forma de versos reforça a crítica social, tornando o texto um importante documento histórico e literário, que ajuda a entender as complexidades do período pós-independência no Brasil.

A análise do texto "A Abdicação e a Musa Popular em 1831", de João Dornas Filho, revela uma rica crítica social e política do Brasil no contexto da abdicação de D. Pedro I, “após o 7 de abril”. A obra utiliza uma forma popular, o diálogo em versos entre dois personagens — o “Corcunda” e o “Patriota” —, representando facções opostas da época: os “corcundas”, que defendiam o retorno do imperador, e os “patriotas”, que lutavam pela independência e pela formação de uma república.

O texto está inserido em um período de instabilidade política no Brasil, onde dois partidos principais surgem com visões antagônicas sobre o futuro do país. De um lado, os “corcundas”, nome pejorativo dado aos defensores da monarquia e da volta de D. Pedro I, e de outro, os “patriotas”, que defendiam a continuidade da independência e o afastamento da figura imperial. A luta ideológica desses dois grupos é retratada de forma alegórica, com um “Corcunda” e um “Patriota” debatendo sobre os valores que acreditam ser corretos para a nação.

O “Corcunda” representa a defesa do status quo, com uma visão conservadora e centralizadora, muitas vezes associada ao despotismo. Ele se mostra fiel a um ideal de monarquia como instituição sacralizada e vinculada ao direito divino, como se observa na referência ao rei Davi, comparando D. Pedro I a uma “figura ungida por Deus”. Ao longo do diálogo, ele usa a tradição e a fé como argumentos para justificar a necessidade de um governo monárquico forte, resistente às mudanças propostas pelos patriotas.

O “Patriota”, por sua vez, simboliza a contestação dessa ordem e a busca por novas soluções, questionando o valor da monarquia e defendendo o progresso republicano. Ele desdenha o romantismo de seu oponente, associando os "corcundas" a figuras ultrapassadas e obsoletas, comparando o rei Davi a um "pobre coitado" e criticando o que considera ser uma era de tiranos.

Dornas Filho usa a “musa popular” para refletir a opinião pública da época. Ao recorrer a versos e formas de expressão acessíveis, ele traz para o texto a voz do povo, que, de maneira crítica, usava essas representações para satirizar a situação política do país. Esse recurso literário é valioso, pois preserva as nuances das opiniões populares, muitas vezes marginalizadas pela história oficial. A utilização de um formato popular torna o texto mais próximo das práticas culturais de resistência e debate que aconteciam fora dos círculos do poder. 

Dornas ressalta a definição de “Corcunda” da época, conforme descrita no dicionário “Carcundático” ou na explicação das expressões dos “Carcundas” por José Joaquim Lopes de Lima, de 1821, informando que: “Homem que, feito, e satisfeito com a carga do despotismo, se curva, como o dromedário, para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o indelével ferrete do servilismo, tem contraído o hábito de não erguer mais a cabeça, recheada das estonteantes ideias de uma sórdida cobiça.”   

 

Temas Principais através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”

O diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota” reflete uma disputa entre a manutenção das estruturas tradicionais e a busca por novas formas de governo. A argumentação do “Corcunda” se baseia na preservação da ordem monárquica, enquanto o “Patriota” anseia por uma transformação que rompa com os resquícios coloniais. Um tema recorrente é a desunião entre os próprios brasileiros. O “Patriota” acusa o “Corcunda” dissipar e perseguir seus próprios compatriotas, com a metáfora de lobos que devoram cordeiros. Isso ilustra a violência e a repressão que acompanhou os conflitos internos do Brasil nesse período, refletindo as dificuldades de consolidação da independência.

A religião é um tema subjacente nas falas do “Corcunda”, que constantemente evoca Deus para justificar suas posições. O “Patriota”, no entanto, desmascara a hipocrisia dessas argumentações, associando-as à defesa de interesses egoístas. A referência ao rei Davi é um exemplo dessa desconstrução: o “Patriota” lembra que, embora ungido por Deus, era um simples pastor, questionando a idealização da figura monárquica.

O diálogo também revela as tensões sociais latentes no Brasil do século XIX, com o “Patriota” denunciando a opressão exercida pelos poderosos sobre os mais fracos, simbolizada na metáfora dos lobos. As menções a "carbonários" e "pedreiros" por parte do “Corcunda” indicam uma crítica às forças revolucionárias e republicanas que estavam ganhando força naquele período. Esse texto é uma crítica expressa em tom sarcástico e satírico contra os movimentos políticos e sociais que desafiaram a monarquia e a Igreja Católica em Portugal, especialmente durante o período de D. João VI, rei de Portugal, que governou durante um período tumultuado marcado por tensões entre monarquistas e liberais.

O Movimentos Liberais dos “pedreiros” e “carbonários” mencionados são referências aos maçons, grupos secretos que eram vistos como subversivos pelos monarquistas e católicos, pois defendiam ideias liberais e republicanas. O autor critica a Constituição e a anarquia, associando-as à desordem e à falta de moralidade, em contraste com a ordem e a religiosidade defendidas pelos monarquistas.

Os opositores são retratados como inimigos da religião, que “não querem saber de missa” e “mofam de tudo o que diz o novo Testamento”. Isso sugere que o autor vê os liberais como anticristãos — descrença religiosa. Os “infames patriotas” são acusados de desrespeitar a nobreza e as tradições, o que para o autor é um sinal de decadência moral. O texto exalta a família real, particularmente D. João VI, como “pio e santo”, e expressa a visão de que a monarquia foi instituída por Deus para governar com justiça e piedade. O autor valoriza a nobreza de sangue e de comportamento, criticando a falta de respeito que os “patriotas” têm por essas tradições. No entanto, ao longo do texto, fica evidente que, apesar desse reconhecimento, ele continua comprometido com a defesa de uma ordem antiga, com medo das mudanças representadas pelos “patriotas”.

O texto utiliza estereótipos para ridicularizar os liberais, pintando-os como ímpios, desorganizados e inimigos da ordem social. O trecho, que fala sobre estar “contente de ver tudo acabado”, sugere uma ironia amarga, possivelmente expressando uma frustração pela situação política. O texto reflete o pensamento conservador e monarquista da época, defendendo a tradição, a religiosidade, e a hierarquia social, enquanto critica os movimentos liberais que ameaçavam essas estruturas. É um exemplo da retórica polarizadora e do conflito ideológico que marcou o período. O texto segue com ambos discutindo o estado político e social do Brasil no período pós-abdicação de D. Pedro I, refletindo sobre traições, revoltas e o destino do país.

A retórica satírica e polarizadora revela o conflito ideológico da época. O “Patriota” usa uma linguagem crítica e sarcástica para ridicularizar a monarquia e expor as injustiças sociais, enquanto o “Corcunda” tenta justificar suas crenças com argumentos religiosos, eventualmente se resignando diante das críticas.

Os textos de que fazem parte esse diálogo refletem as tensões políticas e sociais do Brasil pós-abdicação de D. Pedro I, marcadas pela disputa entre conservadores e liberais. O uso de trocadilhos, rimas e figuras de linguagem sugere que esses textos foram pensados para um público popular, talvez circulando em panfletos ou discussões públicas, com o objetivo de difundir ideias e criticar o status quo.

Esses diálogos, ao incorporar personagens simbolicamente nomeados como “Patriota” e “Corcunda”, personificam o embate entre os defensores da monarquia e os partidários de uma sociedade mais igualitária. A crítica ao regime monárquico e à hierarquia social é clara, e a narrativa expõe as injustiças e a opressão das classes mais baixas.

O uso de figuras bíblicas e metáforas religiosas pelos dois personagens reflete a importância da religião nos debates políticos da época, e a linguagem acessível e popular sugere um apelo direto ao público. Esses textos, marcados pela sátira e pela crítica política, são testemunhos das lutas simbólicas que precederam as mudanças sociais no Brasil do século XIX.

 

A ABDICAÇÃO E A MUSA POPULAR EM 1831

CORCUNDA X PATRIOTA

Por João Dornas Filho

 “Logo após o 7 de abril, a política brasileira entrava em ebulição tumultuosa, devida ao aparecimento de dois partidos que pugnavam, cada qual com mais calor e veemência, pela vitória das suas ideias. Eram os “corcundas”, que se batiam pela volta de D. Pedro I, e os “patriotas”, figadalmente adversários desta solução, não repugnando alargar os seus princípios até à implantação da república. Dessa época tormentosa da nossa história ficaram inúmeros documentos em que aparece a “musa popular” criticando os homens e os fatos, como este curioso diálogo entre dois adversários:”

 

CORCUNDA — Deus lhe guarde, meu senhor. 

 

PATRIOTA — Venha com Deus, cavalheiro, 

venha logo me dizendo 

se é "corcunda" ou "brasileiro". 

Vejo-lhe bem divisado 

na cabeça um grande galho, 

bem me parece ser 

da vazante o espantalho.

 

CORCUNDA — Sim, senhor, eu sou corcunda 

e morro pelo meu rei; 

esta divisa que trago 

é da sua real lei; 

se o senhor é patriota, 

provisório cidadão, 

se fala contra o meu rei, 

é judeu, não é cristão. 

E com isto já me vou, 

não quero mais esperar. 

O senhor é jacobino 

pelo modo de falar.

 

PATRIOTA — Dê-me atenção, senhor, 

não se faça esforicido; 

um homem apaixonado 

não dá prova de entendido. 

Eu conheço o seu caráter, 

não é de tolo e vário, 

mostra ser de um pensante 

ou de um escriturário. 

Faça-me a honra apear, 

venha me dar um clarão; 

só o senhor pode dizer-me 

o que é a constituição, 

e também da independência 

de D. Pedro imperador: 

tudo me explique agora, 

eu lhe peço por favor.

 

CORCUNDA — Se o senhor fala-me sério, 

se não é adulação, 

eu lhe direi de que consta 

a nova constituição.

 

PATRIOTA — O senhor creia em mim, 

muito sério lhe falo; 

eu sou um homem néscio, 

não sei onde canta o galo.

 

CORCUNDA — Estes malvados pedreiros, 

carbonários da nação, 

que por serem carvalhistas 

detestam serem cristãos, 

nem querem ter rei nem roque, 

e menos religião, 

por isso desprezaram 

o nosso rei D. João.

A lei deles é anarquia

da tal constituição,

cativando desumanos

sem ter quem lhes vá à mão;

não querem saber de missa,

menos do sacramento,

mofam de tudo o que diz

o novo Testamento.

Veja, pois, por que rigor

chamam a nós marinheiros,

arrocham de pau e peia,

morram todos ao chumbeiro.

Uns homens nobres em tudo,

no sangue e no proceder,

de famílias ilustradas,

muitos deles veem a ser

filhos de duques, marqueses,

de condes e de morgados.

Dos infames patriotas

têm sido desfeiteados...

Estas feras de ora avante

só em si maldade encerram,

desprezam o nosso rei,

que Deus nos deu na terra,

um homem pio e santo,

um refúgio e esperança,

o nosso D. João Sexto,

filho da Real Bragança.

Esta família ilustrada

que o mesmo Deus destinou

pra seus filhos governarem,

serem de nós supriu...

Mas agora estou contente

de ver tudo acabado,

uns mortos e outros presos.

Adeus, tenha saúde,

creia nisso que lhe digo,

fuja dos patriotas,

que são nossos inimigos.

Já estão se acabando

as malditas rebeliões,

ficando só no Brasil

a fé pura de cristões.

 

PATRIOTA — Tratemos da independência. 

 

CORCUNDA — Isso é um passo muito errante, 

Dom Pedro no Brasil 

não pode ser imperante.

 

PATRIOTA — Porque? Ele não é Bragança?

 

CORCUNDA — Se o rei ainda é vivo,

não pode haver herança.

 

PATRIOTA — Já não posso, seu corcunda, 

suas loucuras calar; 

quer por gosto, quer por força, 

ouça-me agora a falar. 

Diga-me, homem sem brio, 

amante do cativeiro, 

somos terra, somos gados 

que D. Pedro seja herdeiro? 

Quando Deus formou o mundo, 

qual foi o rei que deixou? 

Não deixou só um Adão 

de todos progenitor? 

Deste mesmo Adão não fez 

Deus do céu por seu mando 

uma mulher para ele 

produzir o gênero humano? 

Desses pobres camponeses 

produziu todas nações, 

algum dia eles tiveram 

fidalguia ou brasões? 

Onde foi Bragança haver 

esse sangue ilustrado? 

Só se foi por outro Adão 

que por Deus não foi deixado; 

só dessa descendência 

de gentes que Deus não fez 

saiu toda a jerarquia, 

condes, duques e marquês. 

Abre os olhos, homem tolo, 

adora o Deus verdadeiro, 

aquele que por nós morreu 

como inocente cordeiro. 

Se um rei é tão real, 

como adular a D. João, 

é baixeza no morrer 

se formar em podridão. 

Ressuscitar aos três dias 

assim como ressuscitou 

o rei filho de Maria.

 

CORCUNDA — Eu já digo o rei Davi, 

que o mesmo Deus consagrou.

 

PATRIOTA — Isto eu não duvido, 

e também por isto estou; 

mas quem era o rei Davi? 

Era um pobre coitado, 

era um simples pastorzinho 

do rebanho do seu gado. 

Que é do nosso rei Davi? 

Agora só há tiranos, 

dissolutos, incivis, 

de vaidades profanos.

 

CORCUNDA — Já é tarde, vou andando,

tenha mão, seu papagaio.

Você diz: cadê as tropas

do coitado do Pinheiro?

É certo que lá andei,

e que dele sou soldado...

 

PATRIOTA — Perseguiste os teus patrícios

como lobos defamados;

nas casas que cercaste

também, forte carniceiro,

ajudaste a tirar

vida, honra e dinheiro;

ajudaste a matar

teus irmãos, mansos cordeiros.

Que desgraça, seu corcunda,

entre os mesmos brasileiros!

Desprezar os seus irmãos,

como lobos carniceiros.

Esta injustiça, seu corcunda,

reclamam os céus inteiros...

 

CORCUNDA — Meu amigo, estou certo

do quanto me tem narrado,

já me pesa de ter sido

dos meus irmãos o malvado.

Roto o véu do engano,

nova vida eu terei,

constante patriota serei;

podem contar comigo:

— Defender a nossa pátria

e morra o nosso inimigo!

 

“Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro existem centenas de folhetos que guardam a vasta produção de versos como estes, denunciadores do ardor das paixões que crepitaram durante todo aquele movimentado decênio da nossa História”.

Referência:

Organização, arte, pesquisa e análise: Charles Aquino

FILHO, João Dornas: A abdicação e a musa popular em 1831 — CULTURA POLÍTICA — Revista mensal de estudos brasileiros. - INVENTÁRIO - BN - Rio de Janeiro, Ano IV  Nº 41- Junho de 1944 , p.155-159.