A análise do
texto "A Abdicação e a Musa Popular em 1831", de João Dornas Filho,
revela uma rica crítica social e política do Brasil no contexto da abdicação de
D. Pedro I, “após o 7 de abril”. A obra utiliza uma forma popular, o diálogo em
versos entre dois personagens — o “Corcunda” e o “Patriota” —, representando
facções opostas da época: os “corcundas”, que defendiam o retorno do imperador,
e os “patriotas”, que lutavam pela independência e pela formação de uma
república.
O texto está
inserido em um período de instabilidade política no Brasil, onde dois partidos
principais surgem com visões antagônicas sobre o futuro do país. De um lado, os
“corcundas”, nome pejorativo dado aos defensores da monarquia e da volta de D.
Pedro I, e de outro, os “patriotas”, que defendiam a continuidade da
independência e o afastamento da figura imperial. A luta ideológica desses dois
grupos é retratada de forma alegórica, com um “Corcunda” e um “Patriota”
debatendo sobre os valores que acreditam ser corretos para a nação.
O “Corcunda”
representa a defesa do status quo, com uma visão conservadora e
centralizadora, muitas vezes associada ao despotismo. Ele se mostra fiel a um
ideal de monarquia como instituição sacralizada e vinculada ao direito divino,
como se observa na referência ao rei Davi, comparando D. Pedro I a uma “figura
ungida por Deus”. Ao longo do diálogo, ele usa a tradição e a fé como
argumentos para justificar a necessidade de um governo monárquico forte,
resistente às mudanças propostas pelos patriotas.
O “Patriota”, por
sua vez, simboliza a contestação dessa ordem e a busca por novas soluções,
questionando o valor da monarquia e defendendo o progresso republicano. Ele
desdenha o romantismo de seu oponente, associando os "corcundas" a figuras
ultrapassadas e obsoletas, comparando o rei Davi a um "pobre coitado"
e criticando o que considera ser uma era de tiranos.
Dornas Filho usa a “musa popular” para refletir a opinião pública da época. Ao recorrer a versos e formas de expressão acessíveis, ele traz para o texto a voz do povo, que, de maneira crítica, usava essas representações para satirizar a situação política do país. Esse recurso literário é valioso, pois preserva as nuances das opiniões populares, muitas vezes marginalizadas pela história oficial. A utilização de um formato popular torna o texto mais próximo das práticas culturais de resistência e debate que aconteciam fora dos círculos do poder.
Dornas ressalta a
definição de “Corcunda” da época, conforme descrita no dicionário “Carcundático”
ou na explicação das expressões dos “Carcundas” por José Joaquim Lopes de Lima,
de 1821, informando que: “Homem que, feito, e satisfeito com a carga do despotismo,
se curva, como o dromedário, para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o
indelével ferrete do servilismo, tem contraído o hábito de não erguer mais a
cabeça, recheada das estonteantes ideias de uma sórdida cobiça.”
Temas
Principais através do diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota”
O diálogo entre o “Corcunda” e o “Patriota” reflete uma disputa entre a manutenção das estruturas tradicionais e a busca por novas formas de governo. A argumentação do “Corcunda” se baseia na preservação da ordem monárquica, enquanto o “Patriota” anseia por uma transformação que rompa com os resquícios coloniais. Um tema recorrente é a desunião entre os próprios brasileiros. O “Patriota” acusa o “Corcunda” dissipar e perseguir seus próprios compatriotas, com a metáfora de lobos que devoram cordeiros. Isso ilustra a violência e a repressão que acompanhou os conflitos internos do Brasil nesse período, refletindo as dificuldades de consolidação da independência.
A religião é um
tema subjacente nas falas do “Corcunda”, que constantemente evoca Deus para
justificar suas posições. O “Patriota”, no entanto, desmascara a hipocrisia
dessas argumentações, associando-as à defesa de interesses egoístas. A
referência ao rei Davi é um exemplo dessa desconstrução: o “Patriota” lembra
que, embora ungido por Deus, era um simples pastor, questionando a idealização
da figura monárquica.
O diálogo também
revela as tensões sociais latentes no Brasil do século XIX, com o “Patriota”
denunciando a opressão exercida pelos poderosos sobre os mais fracos,
simbolizada na metáfora dos lobos. As menções a "carbonários" e
"pedreiros" por parte do “Corcunda” indicam uma crítica às forças
revolucionárias e republicanas que estavam ganhando força naquele período. Esse
texto é uma crítica expressa em tom sarcástico e satírico contra os movimentos
políticos e sociais que desafiaram a monarquia e a Igreja Católica em Portugal,
especialmente durante o período de D. João VI, rei de Portugal, que governou
durante um período tumultuado marcado por tensões entre monarquistas e
liberais.
O Movimentos
Liberais dos “pedreiros” e “carbonários” mencionados são referências aos maçons,
grupos secretos que eram vistos como subversivos pelos monarquistas e
católicos, pois defendiam ideias liberais e republicanas. O autor critica a
Constituição e a anarquia, associando-as à desordem e à falta de moralidade, em
contraste com a ordem e a religiosidade defendidas pelos monarquistas.
Os opositores são
retratados como inimigos da religião, que “não querem saber de missa” e “mofam
de tudo o que diz o novo Testamento”. Isso sugere que o autor vê os liberais
como anticristãos — descrença religiosa. Os “infames patriotas” são acusados de
desrespeitar a nobreza e as tradições, o que para o autor é um sinal de
decadência moral. O texto exalta a família real, particularmente D. João VI,
como “pio e santo”, e expressa a visão de que a monarquia foi instituída por
Deus para governar com justiça e piedade. O autor valoriza a nobreza de sangue
e de comportamento, criticando a falta de respeito que os “patriotas” têm por
essas tradições. No entanto, ao longo do texto, fica evidente que, apesar desse
reconhecimento, ele continua comprometido com a defesa de uma ordem antiga, com
medo das mudanças representadas pelos “patriotas”.
O texto utiliza
estereótipos para ridicularizar os liberais, pintando-os como ímpios,
desorganizados e inimigos da ordem social. O trecho, que fala sobre estar
“contente de ver tudo acabado”, sugere uma ironia amarga, possivelmente
expressando uma frustração pela situação política. O texto reflete o pensamento
conservador e monarquista da época, defendendo a tradição, a religiosidade, e a
hierarquia social, enquanto critica os movimentos liberais que ameaçavam essas
estruturas. É um exemplo da retórica polarizadora e do conflito ideológico que
marcou o período. O texto segue com ambos discutindo o estado político e social
do Brasil no período pós-abdicação de D. Pedro I, refletindo sobre traições,
revoltas e o destino do país.
A retórica
satírica e polarizadora revela o conflito ideológico da época. O “Patriota” usa
uma linguagem crítica e sarcástica para ridicularizar a monarquia e expor as
injustiças sociais, enquanto o “Corcunda” tenta justificar suas crenças com
argumentos religiosos, eventualmente se resignando diante das críticas.
Os textos de que
fazem parte esse diálogo refletem as tensões políticas e sociais do Brasil
pós-abdicação de D. Pedro I, marcadas pela disputa entre conservadores e
liberais. O uso de trocadilhos, rimas e figuras de linguagem sugere que esses
textos foram pensados para um público popular, talvez circulando em panfletos
ou discussões públicas, com o objetivo de difundir ideias e criticar o status
quo.
Esses diálogos,
ao incorporar personagens simbolicamente nomeados como “Patriota” e “Corcunda”,
personificam o embate entre os defensores da monarquia e os partidários de uma
sociedade mais igualitária. A crítica ao regime monárquico e à hierarquia social
é clara, e a narrativa expõe as injustiças e a opressão das classes mais
baixas.
O uso de figuras
bíblicas e metáforas religiosas pelos dois personagens reflete a importância da
religião nos debates políticos da época, e a linguagem acessível e popular
sugere um apelo direto ao público. Esses textos, marcados pela sátira e pela
crítica política, são testemunhos das lutas simbólicas que precederam as
mudanças sociais no Brasil do século XIX.
A
ABDICAÇÃO E A MUSA POPULAR EM 1831
CORCUNDA X PATRIOTA
Por
João Dornas Filho
CORCUNDA —
Deus lhe guarde, meu senhor.
PATRIOTA —
Venha com Deus, cavalheiro,
venha logo me
dizendo
se é
"corcunda" ou "brasileiro".
Vejo-lhe bem
divisado
na cabeça um
grande galho,
bem me parece
ser
da vazante o
espantalho.
CORCUNDA —
Sim, senhor, eu sou corcunda
e morro pelo meu
rei;
esta divisa que
trago
é da sua real
lei;
se o senhor é
patriota,
provisório
cidadão,
se fala contra o
meu rei,
é judeu, não é
cristão.
E com isto já me
vou,
não quero mais
esperar.
O senhor é
jacobino
pelo modo de
falar.
PATRIOTA —
Dê-me atenção, senhor,
não se faça
esforicido;
um homem
apaixonado
não dá prova de
entendido.
Eu conheço o seu
caráter,
não é de tolo e
vário,
mostra ser de um
pensante
ou de um
escriturário.
Faça-me a honra
apear,
venha me dar um
clarão;
só o senhor pode
dizer-me
o que é a
constituição,
e também da
independência
de D. Pedro
imperador:
tudo me explique
agora,
eu lhe peço por
favor.
CORCUNDA —
Se o senhor fala-me sério,
se não é
adulação,
eu lhe direi de
que consta
a nova
constituição.
PATRIOTA —
O senhor creia em mim,
muito sério lhe
falo;
eu sou um homem
néscio,
não sei onde
canta o galo.
CORCUNDA —
Estes malvados pedreiros,
carbonários da
nação,
que por serem
carvalhistas
detestam serem
cristãos,
nem querem ter
rei nem roque,
e menos
religião,
por isso
desprezaram
o nosso rei D.
João.
A lei deles é
anarquia
da tal
constituição,
cativando desumanos
sem ter quem lhes
vá à mão;
não querem saber
de missa,
menos do
sacramento,
mofam de tudo o
que diz
o novo
Testamento.
Veja, pois, por
que rigor
chamam a nós
marinheiros,
arrocham de pau e
peia,
morram todos ao
chumbeiro.
Uns homens nobres
em tudo,
no sangue e no
proceder,
de famílias ilustradas,
muitos deles veem
a ser
filhos de duques,
marqueses,
de condes e de
morgados.
Dos infames
patriotas
têm sido
desfeiteados...
Estas feras de
ora avante
só em si maldade
encerram,
desprezam o nosso
rei,
que Deus nos deu
na terra,
um homem pio e
santo,
um refúgio e
esperança,
o nosso D. João
Sexto,
filho da Real
Bragança.
Esta família ilustrada
que o mesmo Deus
destinou
pra seus filhos
governarem,
serem de nós supriu...
Mas agora estou
contente
de ver tudo
acabado,
uns mortos e
outros presos.
Adeus, tenha
saúde,
creia nisso que
lhe digo,
fuja dos
patriotas,
que são nossos
inimigos.
Já estão se
acabando
as malditas
rebeliões,
ficando só no
Brasil
a fé pura de
cristões.
PATRIOTA —
Tratemos da independência.
CORCUNDA —
Isso é um passo muito errante,
Dom Pedro no
Brasil
não pode ser
imperante.
PATRIOTA —
Porque? Ele não é Bragança?
CORCUNDA —
Se o rei ainda é vivo,
não pode haver
herança.
PATRIOTA — Já
não posso, seu corcunda,
suas loucuras
calar;
quer por gosto,
quer por força,
ouça-me agora a
falar.
Diga-me, homem
sem brio,
amante do
cativeiro,
somos terra,
somos gados
que D. Pedro seja
herdeiro?
Quando Deus
formou o mundo,
qual foi o rei
que deixou?
Não deixou só um
Adão
de todos
progenitor?
Deste mesmo Adão
não fez
Deus do céu por
seu mando
uma mulher para
ele
produzir o gênero
humano?
Desses pobres
camponeses
produziu todas
nações,
algum dia eles
tiveram
fidalguia ou
brasões?
Onde foi Bragança
haver
esse sangue
ilustrado?
Só se foi por
outro Adão
que por Deus não
foi deixado;
só dessa
descendência
de gentes que
Deus não fez
saiu toda a
jerarquia,
condes, duques e
marquês.
Abre os olhos,
homem tolo,
adora o Deus
verdadeiro,
aquele que por
nós morreu
como inocente
cordeiro.
Se um rei é tão
real,
como adular a D.
João,
é baixeza no
morrer
se formar em
podridão.
Ressuscitar aos
três dias
assim como
ressuscitou
o rei filho de
Maria.
CORCUNDA — Eu
já digo o rei Davi,
que o mesmo Deus
consagrou.
PATRIOTA —
Isto eu não duvido,
e também por isto
estou;
mas quem era o
rei Davi?
Era um pobre
coitado,
era um simples
pastorzinho
do rebanho do seu
gado.
Que é do nosso
rei Davi?
Agora só há
tiranos,
dissolutos,
incivis,
de vaidades
profanos.
CORCUNDA —
Já é tarde, vou andando,
tenha mão, seu
papagaio.
Você diz: cadê as
tropas
do coitado do
Pinheiro?
É certo que lá
andei,
e que dele sou
soldado...
PATRIOTA —
Perseguiste os teus patrícios
como lobos
defamados;
nas casas que
cercaste
também, forte
carniceiro,
ajudaste a tirar
vida, honra e
dinheiro;
ajudaste a matar
teus irmãos,
mansos cordeiros.
Que desgraça, seu
corcunda,
entre os mesmos
brasileiros!
Desprezar os seus
irmãos,
como lobos
carniceiros.
Esta injustiça,
seu corcunda,
reclamam os céus
inteiros...
CORCUNDA —
Meu amigo, estou certo
do quanto me tem
narrado,
já me pesa de ter
sido
dos meus irmãos o
malvado.
Roto o véu do
engano,
nova vida eu
terei,
constante
patriota serei;
podem contar
comigo:
— Defender a
nossa pátria
e morra o nosso
inimigo!
“Na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro existem centenas de folhetos que guardam a vasta
produção de versos como estes, denunciadores do ardor das paixões que
crepitaram durante todo aquele movimentado decênio da nossa História”.
Organização,
arte, pesquisa e análise: Charles Aquino
FILHO, João Dornas: A abdicação e a musa popular em 1831 — CULTURA POLÍTICA — Revista mensal de estudos brasileiros. - INVENTÁRIO - BN - Rio de Janeiro, Ano IV Nº 41- Junho de 1944 , p.155-159.