sábado, março 01, 2025

TEMPOS DE GUERRA

"OUVI..." 

Em tempos de guerra e conflitos incessantes, a história nos ensina que o conhecimento e a fraternidade são os verdadeiros pilares de uma sociedade justa e equilibrada.

No poema "OUVI...", escrito em 1922, o itaunense João Dornas Filho nos convida a enxergar além do campo de batalha, a questionar a validade do sangue derramado em nome de ambições fugazes e a reconhecer o poder transformador da educação. 

Com versos marcantes e uma crítica contundente ao militarismo, o poeta propõe um novo ideal de luta: não com armas, mas com palavras, não com destruição, mas com aprendizado.

Se cada estudante é um herói, como nos diz Dornas Filho, cada livro aberto é um escudo contra a ignorância e cada sala de aula, uma fortaleza para o futuro. 

A leitura deste poema não é apenas um exercício literário, mas um chamado à consciência, uma oportunidade de repensarmos os valores que realmente constroem o mundo.

O poema "OUVI...", de João Dornas Filho, é uma peça lírica profundamente imbuída do espírito modernista e pacifista do início do século XX. Escrito em 1922, o poema dialoga com o contexto histórico da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cujas cicatrizes ainda marcavam a humanidade, e ecoa uma das grandes preocupações do modernismo brasileiro: a necessidade de transformar valores e redefinir heroísmos.

Com forte carga crítica, a obra contrapõe o militarismo e a glória passageira da guerra à educação e à fraternidade, elevando o conhecimento e a união como ideais superiores à violência.

Desde os primeiros versos, Dornas Filho convoca os guerreiros a repensarem suas trajetórias:

"Pugillo heroico de guerreiros fortes!
Vós que lutaes pela sangrenta gloria,
Mudae vossos destinos, vossos nortes;
De outro modo encarae vossa victoria!"

A escolha da palavra "pugilo" (do latim pugillus, que significa "punhado") já sugere a diminuição da grandiosidade atribuída aos guerreiros. O poeta reconhece a força e a coragem dos soldados, mas ironiza sua busca por uma "sangrenta glória". O uso do termo "sangrenta" é crucial para evidenciar a crítica: a glória, assim conquistada, vem sempre ao custo de sofrimento e destruição.

No segundo quarteto, a inutilidade da guerra fica ainda mais evidente:

"Que vale o sangue vosso derramado,
Em pró da primazia transitória;
Se o vencedor se assenta fatigado
E sobre as ruinas de sua própria gloria?"

Aqui, Dornas Filho recorre a uma argumentação lógica: mesmo aquele que vence a guerra sofre as consequências. O vencedor, longe de alcançar um triunfo absoluto, encontra-se "fatigado", rodeado de ruínas. O termo "primazia transitória" reforça a efemeridade do poder bélico, sugerindo que a dominação obtida pela força é passageira e, muitas vezes, ilusória. Essa percepção já se fazia presente em diversas reflexões da época, como nos escritos de Erich Maria Remarque (Nada de Novo no Front, 1929) e nos discursos pacifistas de Mahatma Gandhi.

O questionamento continua no terceiro quarteto:

"Que vale a vossa indômita coragem,
A batalhar pela ambição funesta,
Se esta, em verdade, é pútrida voragem,
Que cem mil guerras num momento apresta?"

Dornas Filho descontrói o conceito de bravura associado à guerra. A "indômita coragem" dos guerreiros não é negada, mas sim ressignificada: ao ser direcionada para uma "ambição funesta", torna-se um mecanismo de destruição em massa. A metáfora de hostilidades como uma "pútrida voragem" (isto é, um abismo podre e devorador) remete à ideia de um ciclo vicioso, onde cada desinteligência gera inúmeros outros, um prenúncio da lógica destrutiva que culminaria em uma Guerra Mundial.

No quarto quarteto, há uma transição na argumentação: o poeta propõe uma alternativa à guerra:

"Lutae, lutae pela fraternidade!
Pugnae pelo alphabeto, que constróe!
Se é fortaleza uma universidade,
Cada estudante é um desestimido herói!"

A escolha da palavra "lutae" (imperativo do verbo lutar) sugere que a batalha não precisa cessar, mas deve ser redirecionada para uma causa mais nobre: a fraternidade e o conhecimento. O poeta defende a alfabetização e o aprendizado como meios de construção ("alphabeto, que constróe"), contrastando diretamente com o caráter destrutivo da guerra.

A metáfora da "universidade como fortaleza" redefine os espaços de combate: em vez dos campos de batalha, o verdadeiro cenário de transformação está na sala de aula. A escolha do termo "desestimido herói" para os estudantes reforça que o heroísmo não reside apenas na força bruta, mas sim na dedicação ao saber.

A expressão “desestimido herói”", presente no poema de João Dornas Filho, não é um termo comum na língua portuguesa atual. O termo parece derivar de “desestimar”, que significa não dar valor, desprezar ou considerar de pouca importância. “Desestimido” poderia ser, então, alguém que não é devidamente valorizado ou reconhecido.

Dessa forma, a expressão “desestimido herói” pode ser interpretada como uma homenagem ao estudante, que, embora não seja celebrado como um guerreiro, desempenha um papel fundamental na construção de um mundo melhor. Em um Brasil ainda marcado pelo analfabetismo e por políticas excludentes de acesso à educação no início do século XX, essa defesa do ensino como um valor supremo ganha contornos progressistas.

O poema culmina em um chamado simbólico para a transmutação da violência em amizade:

"Abatei o fuzil, destruí a lança!
Fazei de ambos o escudo da amizade!
Pois se a paz é irmã gêmea da Esperança,
Irmã gêmea de Deus é a Humanidade!"

Aqui, Dornas Filho emprega um tom quase messiânico, evocando imagens bíblicas de redenção e reconciliação. O uso de verbos imperativos ("abatei", "destruí") sugere uma ação concreta e imediata: as armas devem ser convertidas em instrumentos de proteção e amizade.

A relação metafórica entre a Paz e a Esperança e, posteriormente, entre a Humanidade e Deus, atribui um caráter divino ao ideal pacifista. Essa perspectiva se alinha a discursos humanistas e cristãos, aproximando-se de conceitos presentes no Sermão da Montanha, onde os pacificadores são chamados de "filhos de Deus".

O poema "OUVI..." de João Dornas Filho é um forte manifesto contra a guerra e um apelo à transformação social através da educação e da fraternidade. Sua estrutura, baseada em quadras de versos decassílabos, confere musicalidade e força ao discurso, enquanto seu tom imperativo incita uma mudança de mentalidade.

Ao destacar a efemeridade da glória militar, Dornas Filho se alinha a um pensamento progressista que valoriza a cultura e o conhecimento como verdadeiros pilares da civilização. Sua mensagem ressoa com as ideias de pacifistas e educadores como Paulo Freire, que, décadas depois, reforçaria a educação como um meio de libertação.

Embora escrito há mais de um século, o poema mantém uma atualidade impressionante. Em tempos de conflitos geopolíticos persistentes e desafios globais, sua mensagem nos recorda que o verdadeiro heroísmo não está no campo de batalha, mas sim nas páginas dos livros e no compromisso com a paz.

Aceite esse convite. Leia "OUVI..." e descubra como a palavra pode ser a maior arma da humanidade.

OUVI...

Pugillo heroico de guerreiros fortes!
Vós que lutaes pela sangrenta gloria,
Mudae vossos destinos, vossos nortes;
De outro modo encarae vossa victoria!

Que vale o sangue vosso derramado,
Em pró da primazia transitória;
Se o vencedor se assenta fatigado
E sobre as ruinas de sua propria gloria?

Que vale a vossa indomita coragem,
A batalhar pela ambição funesta,
Se esta, em verdade, é putrida voragem,
Que cem mil guerras num momento apresta?

Lutae, lutae pela fraternidade!
Pugnae pelo alphabeto, que constróe!
Se é fortaleza uma universidade,
Cada estudante é um desestimido herói!

Abatei o fuzil, destruí a lança!
Fazei de ambos o escudo da amizade!
Pois se a paz é irmã gêmea da Esperança,
Irmã gêmea de Deus é a Humanidade!


JOÃO DORNAS FILHO (1922)

  

Referências:

Poema: FILHO, João Dornas. Poema Ouvi, Revista o Malho, 1922, s/n.

Elaboração e arte: Charles Aquino