Em tempos de guerra e conflitos incessantes, a história nos ensina que o conhecimento e a fraternidade são os verdadeiros pilares de uma sociedade justa e equilibrada.
No poema "OUVI...", escrito em 1922, o itaunense João Dornas Filho nos convida a enxergar além do campo de batalha, a questionar a validade do sangue derramado em nome de ambições fugazes e a reconhecer o poder transformador da educação.
Com versos marcantes
e uma crítica contundente ao militarismo, o poeta propõe um novo ideal de luta:
não com armas, mas com palavras, não com destruição, mas com aprendizado.
Se cada estudante é um herói, como nos diz Dornas Filho, cada livro aberto é um escudo contra a ignorância e cada sala de aula, uma fortaleza para o futuro.
A leitura deste
poema não é apenas um exercício literário, mas um chamado à consciência, uma
oportunidade de repensarmos os valores que realmente constroem o mundo.
O poema
"OUVI...", de João Dornas Filho, é uma peça lírica profundamente
imbuída do espírito modernista e pacifista do início do século XX. Escrito em
1922, o poema dialoga com o contexto histórico da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), cujas cicatrizes ainda marcavam a humanidade, e ecoa uma das
grandes preocupações do modernismo brasileiro: a necessidade de transformar
valores e redefinir heroísmos.
Com forte carga
crítica, a obra contrapõe o militarismo e a glória passageira da guerra à
educação e à fraternidade, elevando o conhecimento e a união como ideais
superiores à violência.
Desde os
primeiros versos, Dornas Filho convoca os guerreiros a repensarem suas
trajetórias:
"Pugillo heroico de guerreiros fortes!
Vós que lutaes pela sangrenta gloria,
Mudae vossos destinos, vossos nortes;
De outro modo encarae vossa victoria!"
A escolha da
palavra "pugilo" (do latim pugillus, que
significa "punhado") já sugere a diminuição da grandiosidade
atribuída aos guerreiros. O poeta reconhece a força e a coragem dos soldados,
mas ironiza sua busca por uma "sangrenta glória". O uso do termo "sangrenta"
é crucial para evidenciar a crítica: a glória, assim conquistada, vem sempre ao
custo de sofrimento e destruição.
No segundo
quarteto, a inutilidade da guerra fica ainda mais evidente:
"Que vale o sangue vosso derramado,
Em pró da primazia transitória;
Se o vencedor se assenta fatigado
E sobre as ruinas de sua própria gloria?"
Aqui, Dornas
Filho recorre a uma argumentação lógica: mesmo aquele que vence a guerra sofre
as consequências. O vencedor, longe de alcançar um triunfo absoluto,
encontra-se "fatigado", rodeado de ruínas. O termo "primazia
transitória" reforça a efemeridade do poder bélico, sugerindo que a
dominação obtida pela força é passageira e, muitas vezes, ilusória. Essa
percepção já se fazia presente em diversas reflexões da época, como nos
escritos de Erich Maria Remarque (Nada de Novo no Front, 1929) e nos
discursos pacifistas de Mahatma Gandhi.
O questionamento
continua no terceiro quarteto:
"Que vale a vossa indômita coragem,
A batalhar pela ambição funesta,
Se esta, em verdade, é pútrida voragem,
Que cem mil guerras num momento apresta?"
Dornas Filho descontrói o conceito de bravura associado à guerra. A "indômita coragem" dos guerreiros não é negada, mas sim ressignificada: ao ser direcionada para uma "ambição funesta", torna-se um mecanismo de destruição em massa. A metáfora de hostilidades como uma "pútrida voragem" (isto é, um abismo podre e devorador) remete à ideia de um ciclo vicioso, onde cada desinteligência gera inúmeros outros, um prenúncio da lógica destrutiva que culminaria em uma Guerra Mundial.
No quarto
quarteto, há uma transição na argumentação: o poeta propõe uma alternativa à
guerra:
"Lutae, lutae pela fraternidade!
Pugnae pelo alphabeto, que constróe!
Se é fortaleza uma universidade,
Cada estudante é um desestimido herói!"
A escolha da
palavra "lutae" (imperativo do verbo lutar) sugere que
a batalha não precisa cessar, mas deve ser redirecionada para uma causa
mais nobre: a fraternidade e o conhecimento. O poeta defende a
alfabetização e o aprendizado como meios de construção ("alphabeto, que
constróe"), contrastando diretamente com o caráter destrutivo da
guerra.
A metáfora da "universidade
como fortaleza" redefine os espaços de combate: em vez dos campos de
batalha, o verdadeiro cenário de transformação está na sala de aula. A escolha
do termo "desestimido herói" para os estudantes reforça
que o heroísmo não reside apenas na força bruta, mas sim na dedicação ao saber.
A expressão “desestimido
herói”", presente no poema de João Dornas Filho, não é um termo
comum na língua portuguesa atual. O termo parece derivar de “desestimar”, que
significa não dar valor, desprezar ou considerar de pouca importância. “Desestimido”
poderia ser, então, alguém que não é devidamente valorizado ou reconhecido.
Dessa forma, a
expressão “desestimido herói” pode ser interpretada como uma
homenagem ao estudante, que, embora não seja celebrado como um guerreiro,
desempenha um papel fundamental na construção de um mundo melhor. Em um Brasil
ainda marcado pelo analfabetismo e por políticas excludentes de acesso à
educação no início do século XX, essa defesa do ensino como um valor supremo
ganha contornos progressistas.
O poema culmina
em um chamado simbólico para a transmutação da violência em amizade:
"Abatei o fuzil, destruí a lança!
Fazei de ambos o escudo da amizade!
Pois se a paz é irmã gêmea da Esperança,
Irmã gêmea de Deus é a Humanidade!"
Aqui, Dornas
Filho emprega um tom quase messiânico, evocando imagens bíblicas de redenção e
reconciliação. O uso de verbos imperativos ("abatei", "destruí")
sugere uma ação concreta e imediata: as armas devem ser convertidas em
instrumentos de proteção e amizade.
A relação
metafórica entre a Paz e a Esperança e, posteriormente, entre a Humanidade
e Deus, atribui um caráter divino ao ideal pacifista. Essa perspectiva se
alinha a discursos humanistas e cristãos, aproximando-se de conceitos presentes
no Sermão da Montanha, onde os pacificadores são chamados de "filhos de
Deus".
O poema "OUVI..."
de João Dornas Filho é um forte manifesto contra a guerra e um apelo à
transformação social através da educação e da fraternidade. Sua estrutura,
baseada em quadras de versos decassílabos, confere musicalidade e força ao
discurso, enquanto seu tom imperativo incita uma mudança de mentalidade.
Ao destacar a efemeridade
da glória militar, Dornas Filho se alinha a um pensamento progressista que
valoriza a cultura e o conhecimento como verdadeiros pilares da civilização.
Sua mensagem ressoa com as ideias de pacifistas e educadores como Paulo Freire,
que, décadas depois, reforçaria a educação como um meio de libertação.
Embora escrito há
mais de um século, o poema mantém uma atualidade impressionante. Em
tempos de conflitos geopolíticos persistentes e desafios globais, sua mensagem
nos recorda que o verdadeiro heroísmo não está no campo de batalha, mas sim nas
páginas dos livros e no compromisso com a paz.
Aceite esse
convite. Leia "OUVI..." e descubra como a palavra pode ser a maior
arma da humanidade.
OUVI...
Pugillo heroico de guerreiros fortes!
Vós que lutaes pela sangrenta gloria,
Mudae vossos destinos, vossos nortes;
De outro modo encarae vossa victoria!
Que vale o sangue vosso derramado,
Em pró da primazia transitória;
Se o vencedor se assenta fatigado
E sobre as ruinas de sua propria gloria?
Que vale a vossa indomita coragem,
A batalhar pela ambição funesta,
Se esta, em verdade, é putrida voragem,
Que cem mil guerras num momento apresta?
Lutae, lutae pela fraternidade!
Pugnae pelo alphabeto, que constróe!
Se é fortaleza uma universidade,
Cada estudante é um desestimido herói!
Abatei o fuzil, destruí a lança!
Fazei de ambos o escudo da amizade!
Pois se a paz é irmã gêmea da Esperança,
Irmã gêmea de Deus é a Humanidade!
JOÃO DORNAS FILHO (1922)
Referências:
Poema:
FILHO, João Dornas. Poema Ouvi, Revista o Malho, 1922, s/n.
Elaboração
e arte: Charles Aquino