Molhando
a pena no poço de emoções que a tua trágica morte me causou, Cotinha, aqui
estou a felicitar-te, sincera e calorosamente, trazendo-te as minhas “Boas
Festas”, pelo novo ano que aí vem!
Nova
vida novo ambiente! Novas paisagens para teus olhos deslumbrados! Novo mundo
para teus sentidos! Alegrias novas para teu coração! Uma festa de luz para a tua
sensibilidade!
Tu,
que feriste os pés nas pedras da rua, encontrarás uma estrada luminosa e limpa
nos caminhos da amplidão! As pedrinhas, que catavas pelas ruas da cidade,
transformar-se-ão em diamantes e safiras para coroar-te a cabeça.
Terás
rosas, aquelas rosas que tanto admiravas, a atapetar-te o caminho! Não mais
precisarás colhê-las nos jardins da terra! Tê-las-ás em profusão nos vergéis do
céu! Quando passavas desapercebida dos perigos que te rodeavam monologando, toda
entregue às belezas do seu mundo interior, chamavam-te Coitada!
E
tu te exaltavas em altos protestos! E que — mistérios da alma humana! — te
julgavas nobre e te sentias feliz! Os farrapos que mal te cobriam o corpo eram mantos
de rainha a cobrir-te os ombros!
Diziam
que te faltara a razão, Cotinha! Mas, entre os loucos que contigo cruzaram nos
caminhos do mundo, eras a mais inofensiva e feliz! Não fazias mal a ninguém.
Vivias no teu mundo, à parte. E mostravas, também, uma faceta delicada de teu
espírito, um vislumbre de estética espiritual, no teu amor às flores!
Quando
as colhias nos jardins alheios, era com a maior naturalidade que o fazias! Pois
não eram teus todos os jardins da terra? Que mal havia em colheres as rosas
vermelhas que ali desabrochavam? E como apreciavas as cousas finas e agradáveis
ao paladar mais requintado!
Gostavas
do vinho! E como raramente te molhou ele os lábios! Pois é, Cotinha! Deves estar
Feliz! Não mais os perigos da rua! Não mais te chamarão de coitada.
A
ambrosia, néctar dos deuses, ao alcance de teus lábios! Rosas e mais rosas ao
seu alcance de tua mão! Mas o que mais certamente te encantou foi a homenagem
que te prestaram! O teu nome, antes tão pequenino, tão esquecido, falado aos
quatro cantos do Brasil!
O
teu nome, Cotinha, a embargar a voz dos locutores, a fazer chorar o povo que te
queria! Já foste notícia na imprensa da cidade; o teu retrato já emoldurou os
jornais da terra, uma vez!
Mas
nem soubeste disso! Agora, tudo viste! Sabes que chorei a tua morte! Sabes que
todos choraram! O teu caixão todo de branco e, tu toda de branco vestida! Os
teus funerais! A emoção de tua gente! Talvez tivesses dito: Coitados deles!
Agora,
Cotinha, me penitencio, arrependida de não te haver colocado à minha mesa para que comigo comesses do meu pão e bebesses comigo do meu vinho!
Felicidades,
Cotinha!
E
até lá!
Análise do texto"Boas
Festas, Cotinha"
"Boas Festas, Cotinha",
escrito por Nise Campos, é um texto que mergulha profundamente nas emoções e
reflexões sobre a vida e a morte de Cotinha, uma figura aparentemente
marginalizada pela sociedade.
O texto aborda temas de solidão,
marginalização social, transcendência e redenção após a morte. Está estruturado
em forma de uma carta ou mensagem dirigida diretamente a Cotinha, evocando uma
atmosfera íntima e pessoal. O tom do texto é emotivo e contemplativo. A autora
expressa sentimentos genuínos de pesar pela morte de Cotinha, ao mesmo tempo em
que oferece votos de felicidade e redenção em sua nova jornada após a vida
terrena. O estilo é marcado por uma linguagem poética e simbólica, com
metáforas que ressaltam a beleza e a transformação.
Cotinha é retratada como uma
figura incompreendida e marginalizada, mas também como alguém que encontrava
beleza e felicidade em seu próprio mundo interior. Sua morte é celebrada como
uma libertação dos perigos e do sofrimento terreno, enquanto sua jornada após a
vida é imaginada como repleta de luz, beleza e reconhecimento.
O texto lança uma crítica
implícita à maneira como a sociedade trata os marginalizados e os considera
"coitados". Cotinha é apresentada como uma pessoa feliz e inofensiva
em seu próprio mundo, apesar de ser rotulada como louca ou desafortunada pelos
outros. Essa crítica social é intensificada pelo contraste entre a visão dos
outros sobre Cotinha e a maneira como ela é descrita pela autora. O uso de
símbolos, como as rosas, o vinho e a imagem de Cotinha vestida de branco em seu
funeral, adiciona profundidade ao texto. As rosas representam a beleza e a
fragilidade da vida, enquanto o vinho pode simbolizar tanto prazer quanto
sofrimento. O branco pode evocar pureza, paz ou até mesmo uma nova vida após a
morte.
A autora demonstra uma profunda
empatia por Cotinha, reconhecendo sua humanidade e dignidade mesmo em meio à
adversidade. As emoções sinceras expressas no texto, como o pesar pela morte de
Cotinha e o arrependimento por não ter interagido mais com ela em vida, ressoam
com o leitor e evocam reflexões sobre a natureza da compaixão e da conexão
humana.
Em resumo, "Boas Festas,
Cotinha" é um texto que transcende as barreiras da vida e da morte,
oferecendo uma reflexão comovente sobre a dignidade e a beleza encontradas
mesmo nas margens da sociedade. Através de uma linguagem poética e simbólica, a
autora convida o leitor a contemplar a profundidade da experiência humana e a
encontrar significado na redenção e na transcendência.
Cotinha sobre o olhar de Maria Lúcia Mendes
A ex-diretora do Museu Municipal Francisco Franco de Itaúna e escritora Maria Lúcia Mendes também nos deixa um texto sobre a Cotinha:
Cotinha ...
Em tamanha naturalidade que parece ter vida. Ah, se me lembro dela ... A Cotinha Pereira, como a chamávamos. Magrinha, estatura média, sempre descalça, era vista aqui e ali peregrinando pelas ruas, absorta em monólogos que ninguém entendia.
Quando alguém lhe dizia! “Coitadinha da Cotinha! Caiu no azeite”, ela contraía o rosto em enormes caretas e protestava: Coitadinha é ...
E a meninada corria assustada ante uma enxurrada de palavrões e pedras. Tinha a mania de andar beirando o meio-fio, revirando tudo que encontrasse pelo chão como que à procura de um objeto perdido.
Segundo diziam, Cotinha em verdes anos, perdera uma agulha com a qual sua mãe costurava e, por causa disso, recebera dela uma praga: haveria de procurar essa agulha, enquanto vivesse.
Verdade ou não, continuava sempre sua estranha procura, catando aqui e ali. Às vezes, parava em plena rua e, entregue àquele universo singular, que criara para si mesma, erguia os braços em gestos descompassados, falando sozinha.
Amante das flores, Cotinha as colhia nos jardins por onde passava e, sob uma chuva de pérolas, coroava-se toda dizendo: Sou moça donzela, sou rainha ...
Análise do texto “Cotinha
Cotinha é apresentada como uma
personagem singular, cujo comportamento excêntrico e aparência peculiar a
tornam notável entre os habitantes da cidade. Ela é descrita como magra, de
estatura média, frequentemente descalça e absorta em monólogos incompreensíveis
para os outros.
A interação de Cotinha com os
outros habitantes da cidade é marcada por momentos de estranheza e
incompreensão. O diálogo relatado, onde ela protesta contra o apelido de
"coitadinha", revela sua personalidade forte e a falta de
conformidade com as expectativas sociais.
A história da maldição lançada
pela mãe de Cotinha, relacionada à perda de uma agulha, adiciona um elemento de
realismo fantástico à narrativa. Esse aspecto contribui para a construção da
atmosfera misteriosa e folclórica em torno da personagem. Cotinha é retratada
como uma pessoa imersa em sua própria realidade imaginativa. Seus gestos
descompassados, a busca incessante por uma agulha perdida e sua declaração de
ser uma "moça donzela, rainha", simbolizam sua fuga da realidade
cotidiana para um mundo interior fantasioso e poético.
O texto sugere uma crítica
implícita à forma como a sociedade lida com aqueles que são considerados
diferentes ou excêntricos. Cotinha é marginalizada e até mesmo temida pela
criançada, refletindo a intolerância e a falta de compreensão em relação às diferenças.
A escrita de Maria Lúcia Mendes é direta e descritiva, utilizando uma linguagem
acessível e vívida para retratar a vida de Cotinha. O uso de expressões
regionais e a caracterização detalhada dos hábitos da personagem contribuem
para a autenticidade e vivacidade da narrativa.
Em suma, "Tipos
Populares" é mais do que uma simples descrição de um personagem
excêntrico; é uma reflexão sobre a marginalização social, a imaginação e a
singularidade humana, apresentada através de uma prosa envolvente e ricamente
detalhada.
TIPOS POPULARES
O
saudoso Osvaldo fotógrafo tinha um hobby de fotografá-los.... Assim,
conseguiu uma galeria dos Tipos
Populares de Itaúna, o qual se encontra nos registros do jornalista Hamilton quando visitou o Museu Municipal Francisco Franco em Itaúna/MG.
Referências:
Organização, pesquisa e análise: Charles Aquino
Texto 1: Nise Campos
Fonte impressa: Jornal Voz Operária, pág.6, Itaúna/MG.
Texto 2:
CARVALHO, David de. Anuário dos Aspectos Históricos de Itaúna. Ano II. Vile
editora e Escritório de Cultura. 2001, pá.61.
Vídeo:Registro do Museu Municipal Francisco Manoel Franco em Itaúna realizado por Hamilton Pereira. Em 2014 o museu foi fechado para visitação e somente em 2019 iniciou sua reforma.