quinta-feira, novembro 07, 2019

BOAS FESTAS, COTINHA

Nise CAMPOS

Molhando a pena no poço de emoções que a tua trágica morte me causou, Cotinha, aqui estou a felicitar-te, sincera e calorosamente, trazendo-te as minhas “Boas Festas”, pelo novo ano que aí vem!

Nova vida novo ambiente! Novas paisagens para teus olhos deslumbrados! Novo mundo para teus sentidos! Alegrias novas para teu coração! Uma festa de luz para a tua sensibilidade!

Tu, que feriste os pés nas pedras da rua, encontrarás uma estrada luminosa e limpa nos caminhos da amplidão! As pedrinhas, que catavas pelas ruas da cidade, transformar-se-ão em diamantes e safiras para coroar-te a cabeça.

Terás rosas, aquelas rosas que tanto admiravas, a atapetar-te o caminho! Não mais precisarás colhê-las nos jardins da terra! Tê-las-ás em profusão nos vergéis do céu! Quando passavas desapercebida dos perigos que te rodeavam monologando, toda entregue às belezas do seu mundo interior, chamavam-te Coitada!

E tu te exaltavas em altos protestos! E que — mistérios da alma humana! — te julgavas nobre e te sentias feliz! Os farrapos que mal te cobriam o corpo eram mantos de rainha a cobrir-te os ombros!

Diziam que te faltara a razão, Cotinha! Mas, entre os loucos que contigo cruzaram nos caminhos do mundo, eras a mais inofensiva e feliz! Não fazias mal a ninguém. Vivias no teu mundo, à parte. E mostravas, também, uma faceta delicada de teu espírito, um vislumbre de estética espiritual, no teu amor às flores!

Quando as colhias nos jardins alheios, era com a maior naturalidade que o fazias! Pois não eram teus todos os jardins da terra? Que mal havia em colheres as rosas vermelhas que ali desabrochavam? E como apreciavas as cousas finas e agradáveis ao paladar mais requintado!

Gostavas do vinho! E como raramente te molhou ele os lábios! Pois é, Cotinha! Deves estar Feliz! Não mais os perigos da rua! Não mais te chamarão de coitada.

A ambrosia, néctar dos deuses, ao alcance de teus lábios! Rosas e mais rosas ao seu alcance de tua mão! Mas o que mais certamente te encantou foi a homenagem que te prestaram! O teu nome, antes tão pequenino, tão esquecido, falado aos quatro cantos do Brasil!

O teu nome, Cotinha, a embargar a voz dos locutores, a fazer chorar o povo que te queria! Já foste notícia na imprensa da cidade; o teu retrato já emoldurou os jornais da terra, uma vez!

Mas nem soubeste disso! Agora, tudo viste! Sabes que chorei a tua morte! Sabes que todos choraram! O teu caixão todo de branco e, tu toda de branco vestida! Os teus funerais! A emoção de tua gente! Talvez tivesses dito: Coitados deles!

Agora, Cotinha, me penitencio, arrependida de não te haver colocado à minha mesa para que comigo comesses do meu pão e bebesses comigo do meu vinho!

Felicidades, Cotinha!

E até lá!



TIPOS POPULARES

O saudoso Osvaldo fotógrafo tinha um hobby de fotografá-los.... Assim, conseguiu uma galeria dos Tipos Populares de Itaúna, o qual se encontra no Museu Municipal Francisco Franco(Itaúna/MG). A diretora do mesmo, escritora Maria Lúcia Mendes, nos informou a respeito:

Cotinha ...
Em tamanha naturalidade que parece ter vida. Ah, se me lembro dela ... A Cotinha Pereira, como a chamávamos. Magrinha, estatura média, sempre descalça, era vista aqui e ali peregrinando pelas ruas, absorta em monólogos que ninguém entendia.

Quando alguém lhe dizia! “Coitadinha da Cotinha! Caiu no azeite”, ela contraía o rosto em enormes caretas e protestava: Coitadinha é ...

E a meninada corria assustada ante uma enxurrada de palavrões e pedras. Tinha a mania de andar beirando o meio-fio, revirando tudo que encontrasse pelo chão como que à procura de um objeto perdido.

Segundo diziam, Cotinha em verdes anos, perdera uma agulha com a qual sua mãe costurava e, por causa disso, recebera dela uma praga: haveria de procurar essa agulha, enquanto vivesse.

Verdade ou não, continuava sempre sua estranha procura, catando aqui e ali. Às vezes, parava em plena rua e, entregue àquele universo singular, que criara para si mesma, erguia os braços em gestos descompassados, falando sozinha.

Amante das flores, Cotinha as colhia nos jardins por onde passava e, sob uma chuva de pérolas, coroava-se toda dizendo: Sou moça donzela, sou rainha ...


Referências:
Texto 1: Nise Campos 
Fonte impressa: Jornal Voz Operária, pág.6, Itaúna/MG.
Texto 2: CARVALHO, David de. Anuário dos Aspectos Históricos de Itaúna. Ano II. Vile editora e Escritório de Cultura. 2001, pá.61.
Organização e Arte: Charles Aquino
Acervo: Shorpy


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