Nise CAMPOS
Molhando
a pena no poço de emoções que a tua trágica morte me causou, Cotinha, aqui
estou a felicitar-te, sincera e calorosamente, trazendo-te as minhas “Boas
Festas”, pelo novo ano que aí vem!
Nova
vida novo ambiente! Novas paisagens para teus olhos deslumbrados! Novo mundo
para teus sentidos! Alegrias novas para teu coração! Uma festa de luz para a tua
sensibilidade!
Tu,
que feriste os pés nas pedras da rua, encontrarás uma estrada luminosa e limpa
nos caminhos da amplidão! As pedrinhas, que catavas pelas ruas da cidade,
transformar-se-ão em diamantes e safiras para coroar-te a cabeça.
Terás
rosas, aquelas rosas que tanto admiravas, a atapetar-te o caminho! Não mais
precisarás colhê-las nos jardins da terra! Tê-las-ás em profusão nos vergéis do
céu! Quando passavas desapercebida dos perigos que te rodeavam monologando, toda
entregue às belezas do seu mundo interior, chamavam-te Coitada!
E
tu te exaltavas em altos protestos! E que — mistérios da alma humana! — te
julgavas nobre e te sentias feliz! Os farrapos que mal te cobriam o corpo eram mantos
de rainha a cobrir-te os ombros!
Diziam
que te faltara a razão, Cotinha! Mas, entre os loucos que contigo cruzaram nos
caminhos do mundo, eras a mais inofensiva e feliz! Não fazias mal a ninguém.
Vivias no teu mundo, à parte. E mostravas, também, uma faceta delicada de teu
espírito, um vislumbre de estética espiritual, no teu amor às flores!
Quando
as colhias nos jardins alheios, era com a maior naturalidade que o fazias! Pois
não eram teus todos os jardins da terra? Que mal havia em colheres as rosas
vermelhas que ali desabrochavam? E como apreciavas as cousas finas e agradáveis
ao paladar mais requintado!
Gostavas
do vinho! E como raramente te molhou ele os lábios! Pois é, Cotinha! Deves estar
Feliz! Não mais os perigos da rua! Não mais te chamarão de coitada.
A
ambrosia, néctar dos deuses, ao alcance de teus lábios! Rosas e mais rosas ao
seu alcance de tua mão! Mas o que mais certamente te encantou foi a homenagem
que te prestaram! O teu nome, antes tão pequenino, tão esquecido, falado aos
quatro cantos do Brasil!
O
teu nome, Cotinha, a embargar a voz dos locutores, a fazer chorar o povo que te
queria! Já foste notícia na imprensa da cidade; o teu retrato já emoldurou os
jornais da terra, uma vez!
Mas
nem soubeste disso! Agora, tudo viste! Sabes que chorei a tua morte! Sabes que
todos choraram! O teu caixão todo de branco e, tu toda de branco vestida! Os
teus funerais! A emoção de tua gente! Talvez tivesses dito: Coitados deles!
Agora,
Cotinha, me penitencio, arrependida de não te haver colocado à minha mesa para que comigo comesses do meu pão e bebesses comigo do meu vinho!
Felicidades,
Cotinha!
E
até lá!
TIPOS POPULARES
O
saudoso Osvaldo fotógrafo tinha um hobby de fotografá-los.... Assim,
conseguiu uma galeria dos Tipos
Populares de Itaúna, o qual se encontra no Museu Municipal Francisco Franco(Itaúna/MG). A diretora do mesmo, escritora Maria Lúcia Mendes, nos informou a
respeito:
Cotinha
...
Em
tamanha naturalidade que parece ter vida. Ah, se me lembro dela ... A Cotinha
Pereira, como a chamávamos. Magrinha, estatura média, sempre descalça, era
vista aqui e ali peregrinando pelas ruas, absorta em monólogos que ninguém
entendia.
Quando
alguém lhe dizia! “Coitadinha da Cotinha!
Caiu no azeite”, ela contraía o rosto em enormes caretas e protestava:
Coitadinha é ...
E
a meninada corria assustada ante uma enxurrada de palavrões e pedras. Tinha a
mania de andar beirando o meio-fio, revirando tudo que encontrasse pelo chão como
que à procura de um objeto perdido.
Segundo
diziam, Cotinha em verdes anos, perdera uma agulha com a qual sua mãe costurava
e, por causa disso, recebera dela uma praga: haveria de procurar essa agulha, enquanto
vivesse.
Verdade
ou não, continuava sempre sua estranha procura, catando aqui e ali. Às vezes,
parava em plena rua e, entregue àquele universo singular, que criara para si
mesma, erguia os braços em gestos descompassados, falando sozinha.
Amante
das flores, Cotinha as colhia nos jardins por onde passava e, sob uma chuva de
pérolas, coroava-se toda dizendo: Sou moça donzela, sou rainha ...
Referências:
Texto 1: Nise Campos
Fonte impressa: Jornal Voz Operária, pág.6, Itaúna/MG.
Texto 2:
CARVALHO, David de. Anuário dos Aspectos Históricos de Itaúna. Ano II. Vile
editora e Escritório de Cultura. 2001, pá.61.
Organização e Arte: Charles Aquino
Acervo: Shorpy
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