quarta-feira, outubro 23, 2024

HÉLICES DO SILÊNCIO

Era uma vez um garoto de seis anos chamado Lucas. Ele vivia em uma casa tranquila com seus pais e sua irmã mais velha, e, como qualquer criança, tinha seus interesses. No entanto, um deles se destacava mais que os outros: os ventiladores de teto. Lucas era absolutamente fascinado por eles. Quando entrava em um cômodo, sua atenção imediatamente era capturada pelo ventilador. Seus olhos brilhavam, e ele podia passar longos minutos observando as hélices girarem, como se o movimento suave e constante fosse a coisa mais hipnotizante do mundo.

Sempre que sua mãe ia ao supermercado ou visitava a casa de algum parente, Lucas perguntava, antes de qualquer coisa, se havia ventiladores de teto no local. Se a resposta fosse sim, ele já sabia o que faria: ficaria debaixo do ventilador, observando-o rodar, enquanto todos ao redor continuavam suas conversas e atividades.

O curioso era que, mesmo sendo tão novo, Lucas entendia como os ventiladores funcionavam. Sabia de cor quantas lâminas cada modelo tinha e até os diferentes sons que cada um fazia. Quando as pessoas perguntavam sobre sua paixão por ventiladores, ele simplesmente sorria e continuava a observar, talvez sem conseguir explicar em palavras o motivo de seu encantamento.

Seus pais, a princípio, achavam que a obsessão de Lucas era uma fase. "Ele vai se interessar por outra coisa em breve", diziam entre si. Mas com o tempo, perceberam que era mais do que um simples fascínio. Era uma forma de Lucas encontrar conforto e segurança em um mundo que, às vezes, parecia muito grande e confuso para ele.

As pessoas ao redor, no entanto, nem sempre entendiam. "Por que ele não brinca com outras crianças?" perguntavam os vizinhos. "Ele nunca responde quando falamos com ele." No parque, enquanto as outras crianças corriam e brincavam, Lucas preferia sentar-se sob o quiosque, onde havia um ventilador. Não era que ele não gostasse de companhia, mas o som constante e repetitivo das lâminas cortando o ar o ajudava a organizar os pensamentos e a acalmar o coração.

Sua mãe, sempre observadora, notou que, quando Lucas estava agitado ou confuso, ligar um ventilador era como acender uma luz em um quarto escuro. O movimento circular e previsível parecia alinhar as emoções de Lucas, trazendo-o de volta ao equilíbrio. Ela começou a entender que o ventilador de teto era mais do que um simples objeto: era o refúgio de seu filho, sua âncora em meio ao caos.

Quando Lucas completou seis anos, seus pais decidiram matriculá-lo em uma escola especial, onde ele frequentaria as aulas três vezes por semana. Lá, as crianças recebiam atenção individualizada e atividades que respeitavam seus ritmos e formas de aprendizado. Lucas foi para sua primeira aula com curiosidade e, logo que entrou na sala, seus olhos se iluminaram ao ver dois ventiladores: um instalado no teto, girando silenciosamente, e outro fixado na parede, mais alto, lançando uma brisa suave.

Naquela sala, Lucas encontrou seu novo refúgio. Ele passava os primeiros minutos de cada aula observando os ventiladores, com um sorriso suave no rosto. As outras crianças se ocupavam com atividades diversas, mas Lucas permanecia atento ao movimento constante e rítmico das hélices. Era como se aquele simples ato de contemplação o ajudasse a se organizar em meio a tantas novidades.

A professora Esperança, uma mulher atenta e carinhosa, logo percebeu esse fascínio. Ao invés de apressar Lucas ou forçá-lo a se envolver imediatamente nas atividades, ela teve a sensibilidade de entender o que aquilo significava para ele. Observando como os ventiladores o acalmavam, ela decidiu que aquela seria sua ponte de comunicação com Lucas. Ela começou a se sentar ao lado dele, sem pressão, e comentava suavemente sobre o ventilador: “Você sabia que esse ventilador tem três lâminas? Gosto do som suave que ele faz, e você?”. Lucas, inicialmente em silêncio, olhava para ela de relance, como se estivesse processando o que ela dizia. A cada semana, a professora continuava a conversar com ele nesse ritmo tranquilo, respeitando o tempo que ele precisava para processar as informações e se sentir seguro para interagir.

Rosa, uma monitora dinâmica e sempre presente, trabalhava ao lado da professora, ajudando em todos os momentos. Ela era uma pessoa cheia de energia e com um sorriso acolhedor, que conseguia acalmar as crianças apenas com sua presença. Rosa e a professora Esperança formavam uma equipe dedicada, e Rosa, com sua paciência, também percebia o fascínio de Lucas pelos ventiladores. Juntas, elas desenvolveram uma estratégia para se comunicar e envolver Lucas, sem apressá-lo ou pressioná-lo.

Rosa frequentemente preparava o ambiente para Lucas, organizando atividades com a professora e garantindo que ele tivesse o tempo e espaço de que precisava. Ela notava cada pequena conquista, comentando com a professora: “Hoje, ele sorriu quando falei sobre as lâminas do ventilador. Acho que estamos ganhando sua confiança”. A conexão de Lucas com os ventiladores tornou-se o ponto de partida para suas interações com o mundo ao seu redor, e Clara e a professora Esperança sabiam que era preciso respeitar esse ritmo.

Com o passar das semanas, Lucas começou a responder, às vezes com um aceno de cabeça, outras vezes com palavras curtas. Ele ainda preferia contemplar os ventiladores, mas agora compartilhava esse momento com sua professora Esperança e Rosa, que, pacientemente, encontravam formas de envolver Lucas nas atividades, sempre respeitando seu tempo e seu espaço. Em vez de afastá-lo de sua paixão, elas usaram essa conexão para abrir portas para novas interações e aprendizado.

O que a professora Esperança e a monitora Rosa entenderam — e o que é uma lição para todos nós — é que cada criança tem uma forma única de se comunicar e interagir com o mundo. No caso de Lucas, os ventiladores eram sua forma de encontrar calma e sentido em meio ao que, para ele, podia ser um ambiente cheio de estímulos. Elas não o julgaram por isso, nem tentaram mudar seu comportamento, mas aceitaram sua maneira de ser e usaram essa afinidade para criar uma ponte de comunicação.

A história de Lucas, no fundo, não era sobre ventiladores. Era sobre a importância de enxergar o que está além do óbvio, de perceber que cada criança tem seu próprio jeito de se conectar com o mundo. Às vezes, isso acontece de maneiras que não entendemos de imediato, mas basta um pouco de sensibilidade e atenção para descobrir que, por trás daquele olhar fixo em algo aparentemente simples, há um universo inteiro de sentimentos e experiências esperando para ser descoberto.

Essa história fictícia nos lembra da importância de ter paciência, sensibilidade e respeito quando lidamos com crianças que, muitas vezes, enxergam o mundo de um jeito diferente. Nem sempre as palavras são o primeiro caminho de comunicação; às vezes, são os gestos, os interesses ou os pequenos rituais que nos mostram como podemos nos conectar com elas. Entender e reconhecer esses sinais, especialmente em crianças com autismo, é um ato de cuidado e respeito à sua singularidade.

E assim, Lucas crescia, com seus ventiladores de teto sempre por perto, lembrando todos ao seu redor que cada criança tem sua própria forma de ver o mundo — e que, com paciência e amor, é possível entender e celebrar essas formas únicas de ser.

A história imaginária de Lucas nos lembra da importância de reconhecer e valorizar as singularidades de cada criança, especialmente daquelas que possuem maneiras únicas de se conectar com o mundo, mesmo que, por vezes, o façam em silêncio. Assim como Lucas encontrou conforto e segurança em algo simples como o movimento de ventiladores, muitas outras crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras deficiências precisam de um ambiente acolhedor e de pessoas sensíveis que as ajudem a florescer.

A APAE de Itaúna desempenha um papel fundamental nessa jornada, oferecendo um atendimento completo para crianças e adultos com deficiência, incluindo serviços como terapia ocupacional, fisioterapia, psicologia, psicopedagogia, oficinas de artes e música, atividades físicas, assistência social e o Atendimento Educacional Especializado (AEE). Através de projetos como a Escola de Família, a APAE também orienta os pais sobre como melhorar a comunicação com seus filhos e fortalecer o vínculo familiar, essencial para o sucesso no desenvolvimento dessas crianças.

Assim como na história de Lucas, acompanhado por sua dedicada professora e a atenciosa monitora, a APAE de Itaúna atua diariamente com dedicação e sensibilidade, assegurando que cada pessoa receba o suporte necessário para desenvolver seu potencial ao máximo. A instituição está comprometida a promover a inclusão, oferecendo um ambiente acolhedor e transformando vidas por meio de seu trabalho incansável e humanizado.


Referências:

Elaboração, narrativa imaginária e arte: Charles Aquino 

Imagem: Fita quebra-cabeças de conscientização do autismo. Disponível em: Wikipédia

APAE – Itaúna/MG: Disponível em: https://apaeitaunamg.org.br/site/educacao/


segunda-feira, outubro 14, 2024

PRESERVAR X DEMOLIR (PARTE I)

1982

Convido você a analisar a reportagem publicada no jornal Estado de Minas em 14 de julho de 1982, escrita pelo jornalista João Gabriel, que aborda um importante dilema enfrentado pela cidade de Itaúna/MG na época: a preservação ou a demolição da Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira, o prédio mais antigo da cidade. A discussão é enriquecida com diferentes pontos de vista, envolvendo várias figuras influentes como um promotor, um arquiteto, um escritor, médicos e professores, que expuseram suas opiniões sobre o valor histórico e cultural do edifício, em contraste com a necessidade urgente de modernizar as instalações hospitalares para melhor atender à população.

Solicito você a refletir sobre esse episódio histórico e se colocar no lugar das pessoas envolvidas no debate: se fosse sua decisão, você optaria por preservar o edifício histórico, com seu valor simbólico e cultural, ou priorizaria a demolição, visando o desenvolvimento e a modernização das instalações hospitalares, essenciais para a comunidade? Agora, você tem a oportunidade de revisitar essa discussão, refletindo sobre como esses diferentes pontos de vista moldaram o embate entre memória e progresso. Vamos analisar as posições dos principais personagens mencionados.

1. Médico José Juarez Silva (Provedor da Casa de Caridade):

José Juarez Silva, que estava à frente da Casa de Caridade, adota uma postura pragmática quanto à preservação do prédio. Ele acredita que, se os recursos estivessem disponíveis para restaurar o edifício, essa seria a solução ideal. No entanto, após consultar engenheiros, ficou claro que a restauração não era economicamente viável, levando-o a sugerir a demolição. Sua preocupação maior está em otimizar os recursos para melhorar as condições do hospital e adquirir novos equipamentos para a cidade, como um CTI e raios-X, que são necessidades mais urgentes para o atendimento à população.

2. Promotor Faiçal David Freire Chequer (Representante do Ministério Público):

O promotor Faiçal David Freire Chequer adota uma posição realista. Essa visão reflete sua preocupação em equilibrar passado e futuro: ele defende a preservação do patrimônio, mas dentro de um contexto onde o avanço do hospital e o bem-estar social não sejam prejudicados. Contudo, ele considera essa preservação válida "desde que não implique em barrar o desenvolvimento do hospital". Ou seja, ele vê a preservação do patrimônio como relevante, mas subordinada às necessidades práticas e funcionais do hospital. Ao propor que o laudo técnico sobre o prédio inclua uma análise de viabilidade, Chequer demonstra sua intenção de aguardar uma avaliação detalhada antes de tomar uma decisão final.

3. Médico Peri Tupinambás:

Peri Tupinambás tem uma postura clara em defesa da preservação do prédio. Ele acredita que o prédio da Casa de Caridade é um marco histórico de Itaúna e, portanto, deve ser restaurado para preservar a memória da cidade. Como candidato à prefeitura, seu posicionamento parece refletir um respeito pelo patrimônio histórico, e ele argumenta que o valor simbólico do edifício transcende seu estado atual de ruínas.

4. Escritor e Pesquisador David de Carvalho:

David de Carvalho é outro defensor da preservação, argumentando que não se pode permitir que a cidade perca um prédio tão carregado de ideais e história. Ele vê na recuperação do prédio uma oportunidade para atender a comunidade em diferentes aspectos, inclusive como espaço cultural, fortalecendo assim o espírito de pertencimento da população com seu passado.

5. Professor Guaracy de Castro Nogueira (Reitor da Universidade de Itaúna e Ex-Provedor da Casa de Caridade):

O professor Guaracy de Castro Nogueira adota uma postura mais técnica. Ele considera o prédio irrecuperável devido ao seu estado avançado de deterioração. Para ele, a prioridade deve ser dada a investimentos na infraestrutura educacional e hospitalar da cidade, como a expansão do atual hospital e a criação de novas instalações acadêmicas na Universidade de Itaúna. Ele se opõe ao uso de recursos públicos para tentar salvar o prédio, que, segundo ele, está muito danificado para justificar sua restauração.

 6. Arquiteto Hélio Ferreira Pinto:

O arquiteto Hélio Ferreira Pinto, uma autoridade no estilo neoclássico no Brasil, defende que o prédio é perfeitamente recuperável. Ele valoriza a história arquitetônica da Casa de Caridade, destacando o estilo neoclássico da construção e sua importância para a memória coletiva. Para ele, destruir o prédio seria um grande erro, e ele defende a restauração como algo não apenas possível, mas também necessário.

7. Professor Marco Elísio Chaves Coutinho:

Professor Marcos Elísio Coutinho, ligado à área de cultura e turismo de Itaúna, também advoga pela recuperação do prédio. Para ele, a restauração é urgente para que a cidade preserve sua memória e identidade cultural. Ele argumenta que, além de ser um bem arquitetônico, a Casa de Caridade representa a herança de Manoel Gonçalves, um importante benfeitor da cidade, cuja memória deve ser preservada.

Comparação das Posições:

As opiniões variam bastante entre os personagens. De um lado, temos os que defendem ativamente a preservação do prédio, que ressaltam a importância histórica, arquitetônica e cultural do edifício. Esses personagens acreditam que a recuperação é viável e essencial para a preservação da memória de Itaúna.

Por outro lado, temos aqueles que, embora reconheçam a importância histórica do prédio, priorizam questões práticas e de desenvolvimento da cidade. Eles consideram que a prioridade deve ser o investimento em novas estruturas que atendam melhor às necessidades da população, como a ampliação do hospital e novas instalações universitárias. Para eles, o estado avançado de deterioração do prédio e a falta de recursos disponíveis tornam sua preservação inviável.

A reportagem ilustra um dilema comum em muitas cidades: o equilíbrio entre a preservação do patrimônio histórico e o desenvolvimento urbano. Em Itaúna, o debate de 1982 sobre a Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira mostra as tensões entre memória, cultura e progresso, refletidas nas diferentes visões dos personagens envolvidos.

Nota

Agora, em 2024, mais de quarenta anos após o embate sobre a preservação e demolição da Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira, o edifício ainda "permanece de pé", mesmo com avisos de “risco iminente de desabamento”. Até o presente momento, o monumento histórico não foi demolido, o que sugere que, na época, a preocupação com a preservação prevaleceu. Acredita-se que, naquela ocasião, tenha surgido um sentimento coletivo de esperança de que, em algum momento, o prédio fosse restaurado, mantendo viva a memória e a história que ele representa para a cidade de Itaúna.

PRESERVAR X DEMOLIR PARTE II 


Referências:

Organização, arte e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa: Jornal Estado de Minas, 1982.

Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira: Disponível em:

https://itaunacaridade.blogspot.com/2014/12/dilema-preservar.html  

https://itaunacaridade.blogspot.com/2014/12/blog-post_17.html

Risco iminente: 

https://itaunaemdecadas.blogspot.com/2024/01/risco-iminente.html

Imagem: Meramente ilustrativa 

domingo, outubro 13, 2024

DIONAS BARBEIRO

Dionas Barbeiro...

o capa preta

"Somos todos companheiros a beber o ano inteiro se és covarde, saia da mesa que a nossa empresa requer valor"... 

"Primeira bateria, vira, vira, vira, vira, vira ,vira, virou. Segunda bateria"... 

        A farra estava começando a toda naquele início de noite de sábado, no bar do “Tapa na Paca”, lá na Rua João de Cerqueira Lima em frente a antiga agência dos correios.

        - “Ô Tapa, traz mais uma cerveja” – exclamava o Zé do Desy, batendo o copo vazio sobre o velho balcão de madeira.

         - “Vê se passa um pano na mesa” – emendava o Ronaldo Noguerinha, acompanhado do Zé de Paula, Moacir Mariano e o Zé da Telefônica, “pois hoje tem baile no Clube União e daqui nós vamos diretos pro baile e depois prá zona boêmia, visitar as casas de rapariga, né Zé?

           Já passava das nove e meia da noite, o bar estava lotado, o vira, vira sendo cantarolado a plenos pulmões, quando ele chegou.  Em pé na porta do bar chamava a atenção de todos pela elegância do corte do terno preto risca de giz de casimira inglesa e da gravata listrada de branco e amarelo com um nó tipo cabeça de touro  sobressaindo sobre a camisa de seda branca.A vasta e negra cabeleira reluzia mostrando excesso de brilhantina.

           Deu um passo em direção ao balcão e ao solicitar um “rabo de galo” no capricho, abriu aquele sorriso generoso onde os alvos dentes se destacavam sob o bigode fino e bem aparado. Um figurão!

            - “Boa noite rapaziada” – falou o Dionas para o pessoal do bar.

            Barbeiro dos mais conceituados na cidade, com uma vasta e seleta clientela, sempre se sobressaia  pelo modo elegante  de se vestir. Ainda solteirão, apesar dos 59 anos, tinha um físico de atleta, sem barriga, rugas e papadas. O Dionas sabia se cuidar e era do conhecimento de todos esta sua grande vaidade.

            - “Olha só a elegância do Dionas, gente! – exclamou o Zé da telefônica.

            -“Taí o maior atleta de Itaúna” – interferiu o Zé do Desy – “Deve fazer ginástica todos os dias. Vai viver uns cem anos – “voltou a exclamar, ao mesmo tempo que caminhava a passos largos na direção ao recém chegado. – “Que isto, Zé! Bondade sua. Vocês é que são jovens, estão na flor da idade e sabem aproveitar bem a vida” – exclamou o recém chegado com um largo sorriso de satisfação.

            -“É ou não é um atleta pessoal ? Confessa Dionas! Diz pro pessoal qual é o segredo deste tipo físico de toureiro espanhol e esta aparência de menino? É ou não é ginástica todos os dias ?”

            -“ Bem, senhor Zé do Dezy” – exclamou o vaidoso Dionas já estufando o peito e demonstrando um ar de segurança e orgulho, mas se recusando  a se sentar  para não amarrotar o vinco  do terno novo que ia estrear logo mais  no baile do Clube União Operária

            - “A gente se cuida um pouco, faz uma ginástica para não perder a forma, mas você está exagerando meu jovem!”

            - “Mostra pró pessoal, Dionas” – falou o sacana do Zé do Desy, já se preparando para aprontar mais uma das suas – Faz uma demonstração dos tipos de ginástica que você faz que o pessoal quer aprender”.

                 Inicialmente, meio ressabiado, e trajando aquele belíssimo terno, o “Capa Preta”, apelido pelo qual era mais conhecido pelos boêmios da cidade, tirou o paletó, colocando-o cuidadosamente sobre uma cadeira e iniciou uma série de exercícios para delírio do pessoal que esta hora lotava o bar do Tapa na Paca.

                Já passava das dez e meia da noite e no apinhado bar, os olhares de todos se convergiam para aquele senhor de 59 anos, já sem camisa, meio suado, fazendo corrida simulada, sob o comando da voz estridente do Zé do Desy.

                  -“É um recorde , doze mil e oitocentas passadas em cinco minutos e vinte e oito segundos.”

              Quando o relógio da matriz bateu meia noite e meia, o Dionas estava só de cueca samba-canção, de bruços sob o chão forrado com papel de pão, suadinho, suadinho, descabelado e pálido, fazendo flexões  e o bar inteiro num som uníssono, contando - “Setenta e uma , setenta e duas, setenta e três, setenta e quatro,setenta e cinco....”

             Dizem que naquela noite, a sua ausência foi muito sentida no Clube União Operária, onde era um destacado pé de valsa, bem como no Bar do Sissi na zona boêmia, onde era um assíduo frequentador das casas de rapariga e que a sua barbearia só reabriu na quarta-feira à tarde quando foi visto descendo de um táxi, com ajuda do Júlio Magalhães............. 


Referências:

Texto/causo: Sérgio Tarefa 

Organização e arte: Charles Aquino

quarta-feira, outubro 09, 2024

O MAESTRO DA ALMA

A crônica da Professora Nise Campos, publicada em 1964, é uma homenagem ao violinista, pianista, compositor, arranjador musical e regente Coral, professor Jesus Ferreira e ao Coro Orfeônico do Instituto São Rafael de Belo Horizonte/MG. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a percepção humana, o talento artístico e a capacidade de superação. A crônica oferece uma análise poética e emotiva sobre a apresentação do coro na cidade de Itaúna, destacando o impacto do legado do professor Jesus Ferreira tanto para a comunidade local quanto para o cenário cultural mais amplo.

Enxergar além dos olhos — a crônica começa com uma observação sobre o fato de que, apesar de serem fisicamente cegos, os alunos de Jesus Ferreira, sob sua liderança, são descritos como pessoas que “enxergam mais do que nós que só vemos o que nos impressiona a retina”. Nise Campos ressalta que a cegueira física dos alunos do Instituto São Rafael é superada por uma visão interior profunda. Jesus Ferreira, sendo cego, é visto como alguém dotado de uma "luz intensa" que transcende a capacidade de enxergar com os olhos físicos, iluminando sua inteligência, moralidade e sensibilidade artística.

Essa visão reforça a ideia de que a verdadeira percepção vai além dos sentidos físicos e se baseia em uma conexão mais profunda com a alma e o coração. Ao dizer que o professor Jesus e seus alunos veem de maneira mais clara que aqueles que possuem visão física, Nise Campos nos desafia a reconsiderar nossos conceitos sobre o que significa "ver". É uma crítica implícita à superficialidade com que muitas vezes lidamos com as aparências e uma celebração da profundidade espiritual e artística que os cegos possuem.

O artista e a sua terra natal — Nise Campos também destaca o talento excepcional de Jesus Ferreira, referindo-se a ele como “artista e poeta” que vibra a alma ao reger seu coro e ao tocar seu violino. A autora reconhece o domínio de Jesus Ferreira sobre a música, assim como seu profundo amor por Itaúna, sua cidade natal. Isso fica evidente quando ela menciona que ele fala com sinceridade sobre Itaúna, mostrando que, mesmo com suas conquistas e viagens, sua ligação emocional com sua terra natal permanece forte.

Esse aspecto da crônica ilustra como o professor Jesus Ferreira, apesar de suas conquistas nacionais e internacionais, nunca perdeu suas raízes. Ele é descrito como alguém que projeta o nome de Itaúna no cenário cultural, elevando o prestígio da cidade ao mesmo tempo em que traz reconhecimento ao Instituto São Rafael e à música brasileira. A cidade, no entanto, é retratada de forma ambígua, como se não tivesse aplaudido o suficiente o talento e a dedicação de seu filho ilustre.

A apresentação e a dimensão transcendental da arte — a apresentação do Coro Orfeônico do Instituto São Rafael é descrita de maneira profundamente poética, transportando o leitor para um mundo de “luminosa catedral de sonhos” e “uma floresta encantada”. A autora não descreve de forma técnica a performance, mas captura a sensação mágica que ela provocou no público, como se os cegos tivessem trazido uma luz espiritual para a cidade de Itaúna.

Essa escolha de palavras sugere que a música tem o poder de transcender as limitações físicas e de criar experiências que tocam a alma. Quando Nise Campos menciona que “fecharam-se as janelas de seus olhos, Jesus, mas as portas de sua alma abriram-se para novas e desconhecidas claridades que só os cegos podem ver”, ela eleva a música a um espaço quase místico, onde aqueles que não têm visão física são, paradoxalmente, capazes de acessar uma compreensão mais profunda do universo.

O legado do professor Jesus Ferreira — a crônica termina com uma nota de esperança e reconhecimento, destacando o legado de Jesus Ferreira. Ao afirmar que "seus olhos que já foram lâmpadas que se queimaram [...] voltarão de novo, um dia, a ver fulgurar o sol e as estrelas", Nise Campos sugere que, embora ele não possa ver com os olhos físicos, seu legado continuará a brilhar e será eternamente reconhecido. A imagem de "velas e círios que arderam" simboliza a dedicação de sua vida à música e à educação, e que, mesmo sem a visão física, ele deixou uma marca indelével no mundo.

A crônica da professora Nise Campos, além de ser uma homenagem ao professor Jesus Ferreira, destaca o impacto profundo que ele teve em sua comunidade e no cenário musical. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a percepção e a superação, desafiando as noções comuns de deficiência e exaltando a capacidade do espírito humano de enxergar além das limitações físicas. O amor de Jesus Ferreira por sua terra natal, Itaúna, e seu compromisso com a música e a educação são evidentes, e seu legado continua a inspirar, tanto em sua cidade quanto além. 

 

BRILHANTE FESTIVAL

O Coro Orfeônico do Instituto São Rafael exibiu-se nesta cidade, conforme noticiámos dia 15 último. Não vamos descrever a beleza dessa exibição, que a Dona Adília Lima nos proporcionou. Vamos publicar, apenas o que a Professora Dona Nise Campos escreveu. E, na sua singela crônica ela disse tudo.

 Piu (Jornalista da Folha do Oeste)

 

Crônica da Professora Nise Campos — 1964

Os cegos que veem. Palavras a Jesus Ferreira; dizem todos que você é cego. Que são cegos os cantores e musicistas que você trouxe do instituto São Rafael e que são alunos seus.

Eu, porém, digo que vocês enxergam mais do nós que só vemos o que nos impressiona a retina. Sei que aquelas crianças, rapazes e mocinhas veem interiormente, tudo o que lhes fala a alma e ao coração e que você, meu prezado ex-aluno hoje, posso dizer meu querido mestre, tem dentro dos olhos apagados, uma luz tão intensa, que nos deslumbraria a todos, se nos fosse dado ver. E essa luz vem de sua portentosa inteligência, do seu gigantesco aprumo moral e intelectual.

Você é um artista, na lídima acepção do termo, artista e poeta, vibra a alma nos gestos, quando você rege o seu coro; o sentimento mais alto dita-lhe palavras e a gente sente sua sinceridade quando você fala de Itaúna. No seu violino você tange as suas mágoas e a sua ternura, você sobre por não poder ver normalmente como nós. Mas o verbo ver que você sabe sentir e conjugar espiritualmente, sem uma força de expressão transcendental, que poucos sabem entender.

O seu recital foi magnífico. Pareceu-me estar numa luminosa catedral de sonhos. Ouvindo os seus rouxinóis, sabiás e patativas, transformou-se o ambiente numa floresta encantada. E todos se calaram porque agora iriam canta todos os uirapurus da Serra. Fecharam-se as janelas de seus olhos, Jesus, mas as portas de sua alma abriram-se para novas e desconhecidas claridades que sós os cegos podem ver.

Você, membro da Academia de Música de São Paulo, está projetando o nome do Instituto São Rafael no cenário cultural do país e do exterior e, por conseguinte o nome de seu Estado e de sua gente. Itaúna não soube aplaudi-los como o merecem. Sua terra tem agora a mais um nome a inscrever no Pantheon de glória. E eu lhes digo, nessas mal alinhavadas linhas, que seus olhos que já foram lâmpadas que se queimaram e velas e círios que arderam, voltarão de novo, um dia, a ver fulgurar o sol e as estrelas...

 Saiba mais: 

MEMORÁVEL PROFESSOR ITAUNENSE

Referências:

Organização, arte e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa: Jornal Folha do Oeste, Ed. 516, p.1,3. 1964, Itaúna/MG.  

terça-feira, outubro 01, 2024

EGIPCÍACAS ESCRAVIZADAS

Para quem se interessa por histórias de fé, devoção e resistência, convido vocês a conhecer a inspiradora trajetória das EGIPCÍACAS ESCRAVIZADAS: Anna e Rosa. Suas narrativas ocorrem em tempos e contextos distintos, mas ambas marcaram suas vidas com profundas expressões de espiritualidade.

Rosa Egipcíaca, uma santa africana que viveu no século XVIII (1719-1771), e Anna Egipcíaca, sua devota, que viveu no século XIX (1807-1852), compartilharam a mesma fé, apesar de suas épocas diferentes. Mesmo separadas no tempo e no espaço, foi a fé que as aproximou, oferecendo-lhes coragem e esperança para enfrentar os desafios da vida escravizada.

Este registro apresenta a fascinante história dessas mulheres, entrelaçando misticismo cristão com tradições afro-brasileiras, e mostra como a fé transformou suas vidas e impactou profundamente suas comunidades. Não perca a oportunidade de conhecer essa comovente história de milagres, devoção e resistência espiritual. Em breve, disponível aqui no blog e na plataforma do Youtube Itaúna Décadas! Imperdível!


ANNA EGIPCÍACA PARDA

 SANTANA DO RIO SÃO JOÃO ACIMA - 1852

(ITAÚNA/MG)

Aos vinte dois de Janeiro de mil oitocentos e cinquenta e dois foi sepultado no adro do Rosário o cadáver de ANNA EGIPCÍACA parda, de idade de quarenta e cinco anos, morfética. E para constar faço este assento em que assino. O Vigário Encomendado João Batista de Miranda.

 Elaboração, arte e roteiro: Charles Aquino

 Fonte: Family Search :Santana Óbitos 1840, Jan-1888, Fev . Imagem: 1


Imagem criada por ia meramente ilustrativa