domingo, março 31, 2019

ODE AO TEMPO

Nise Campos

Ita – 1-1-1933


Eu te saúdo, tempo amigo,
Pelo teu poder e pela tua força!
És tão velho, tão velhinho,
Que eu não te sei contar os anos! ...
E a tua energia é sempre moça,
Desafiando as potências do Universo!
O teu domínio, amigo, é forte e inquebrantável!
Pois que é o único rei a que o homem não venceu!

Deus te pôs como sentinela ao mundo,
Sentinela que corre, que voa e que castiga...

Sob a tua força, tudo passa e tudo morre...
E, indiferente, vais vivendo e vais passando...
Não te retêm nem o sorriso, nem a graça...
Nada te comove: nem a dor, nem o pranto...
Coração, si o tens, amigo, ele é de pedra!
E, si alma tens, ó tempo, ela é de fogo!

Mas espera! Para, um instante só!
Não te cansaste ainda de correr e de voar?
Ouve, ó tempo, o que minha alma fala!
Espera para ouvir-me, porque te chamo amigo...
Eu quero te dizer baixinho alguma coisa
Um minuto só! Espera, que eu te digo! ...

Assim eu rogo todo ano ao tempo,
Mas ele nunca parou para me escutar...
Vou andando e vou correndo para ver si o alcanço
E é ele mesmo que um dia há de me fazer parar!

NOTA
Nise escreveu esta peça em 1 de janeiro de 1933, época em que o País era varrido pela moda modernista, vinda da Semana de Arte Moderna, com Mário e Oswaldo de Andrade. Nise foi madrinha de uma récita poética em 1981. 

Nesta obra, ela faz uma saudação ao tempo, a quem coloca como “o único rei que o homem não venceu”, ressaltando a irreversibilidade do envelhecer.

De sua farta obra, romântica e basicamente só em prosa poética, Nise destacou, para um compêndio de trabalhos seus, que juntou aos de escritores de renome nacional e internacional, como Guilherme de Almeida e Cruz e Souza, entre outros, o belíssimo “Ode ao Tempo”.

Referências:
Organização: Charles Aquino
Colaboradora: Lindomar Batista Lage
Texto: Nise Álvares da Silva Campos (In Memoriam)
Acervo: Lindomar Batista Lage
Colaboradora: Cláudia Lage
Arte: Fotografia da rede social
Nota: Jornal Ita Vox, janeiro de 1987, p.7.


ANÁLISE DO POEMA

A análise deste poema envolve explorar temas, estilo, estrutura e linguagem, bem como o impacto emocional e filosófico que ele provoca. O poema aborda o tempo como uma entidade poderosa e inescapável. Há um tom de reverência e submissão ao tempo, reconhecendo sua força, sua idade imensurável, e sua juventude eterna. O eu lírico reconhece o tempo como uma força indomável, que tudo domina e a que ninguém pode vencer. A relação entre o homem e o tempo é central, destacando a impotência humana frente à passagem inexorável do tempo.
O poema é composto por versos livres, sem uma métrica fixa ou rimas regulares, o que confere um ritmo natural e fluído, refletindo a própria natureza contínua e ininterrupta do tempo. O uso de exclamações e apelos diretos ao "tempo amigo" dá um tom de conversa íntima e urgente, intensificando a emoção e a seriedade do tema.
A linguagem utilizada é bastante emotiva e personificada. O tempo é retratado como um "amigo" com características humanas, mas ao mesmo tempo, é descrito como algo além do humano - uma força inquebrantável e impassível. Esta personificação do tempo como "velhinho" e, paradoxalmente, eternamente jovem, cria um contraste poderoso que enfatiza sua natureza paradoxal. 
Expressões como "tua energia é sempre moça" e "Deus te pôs como sentinela ao mundo" atribuem ao tempo uma dimensão divina e eterna, quase mítica. A impassibilidade do tempo frente às emoções humanas ("Nada te comove: nem a dor, nem o pranto...") reforça a ideia de que ele é indiferente aos sofrimentos e alegrias humanas, reforçando a impotência do eu lírico. O poema evoca uma sensação de desesperança e resignação diante da passagem do tempo. 
O apelo do eu lírico para que o tempo pare, mesmo que por um instante, é comovente, mostrando um desejo profundo de ser ouvido e compreendido. Esse desejo, porém, é sempre frustrado, pois o tempo nunca paralisa para escutar. A última linha, "E é ele mesmo que um dia há de me fazer parar!", carrega uma aceitação amarga de que a única forma de parar o tempo será na morte, quando o tempo finalmente vence o indivíduo.
Este poema é uma reflexão profunda sobre a natureza inexorável do tempo e a posição impotente do ser humano em relação a ele. Utilizando uma linguagem rica e emotiva, o poeta consegue transmitir a reverência, a frustração e a resignação que caracterizam nossa relação com o tempo. A personificação do tempo e o apelo direto a ele intensificam a conexão emocional, tornando o poema uma meditação filosófica e existencial poderosa sobre a passagem do tempo e a condição humana.
Charles Aquino