*Maria
Lúcia MENDES
Tempo
de estudante. A vida, uma alegria, o futuro um mundo que ainda fica do outro
lado. A Escola Normal, um Ateneu de Raul Pompéia, com duas diferenças: sem
internato e sem a figura doentia de Aristarco.
Internato
houve, em épocas passadas, com irmãs de caridade no comando e moças de várias
cidades que aqui chegavam para completar seus estudos. Da querida escola guardamos
lembranças boas da juventude, mas certas marcas que não se apagam como de
alguns professores, que apesar da competência exageravam na rigidez. Havia
aulas que nos causavam medo: desde a véspera, ensaiávamos lições até à exaustão.
Medo de ganhar zero, de ser chamada à frente e do vexame; medo, medo...
Aprendizagem
sofrida, mas que valeu a pena pela formação e conhecimentos adquiridos. Em compensação,
certas matérias davam gosto de serem estudadas tamanha a capacidade e
eloquência dos que as lecionavam, transportando-nos para o mundo inteiro, numa
época em que o material didático era somente livros e um mapa pendurado na
parede.
Num
relance percorríamos as geleiras dos Andes, as margens férteis do Rio Nilo para
desembocarmos atônitas na misteriosa floresta dos Incas, a colonização das
Américas, a tragédia do Titanic. Trabalhos manuais, canto orfeônico, desenho,
todas estas matérias reprobatórias, além de latim, inglês e francês...
“Le
matim maman n’appelle. George, leve toi”. Quanto suor frio e leitura gaguejada,
a fala não saía.
—
Tome de mim a segunda declinação.
—
Servus, servorum.
Quantas
noites a fio varávamos o livro aberto, estudando para a prova da manhã
seguinte. Em junho, realizavam-se as provas parciais que todos temiam por terem
peso dobrado.
No
final do ano, apôs as provas escritas, todos os alunos eram submetidos a exames
orais de todas as matérias. Se a turma fosse numerosa, as provas prolongavam-se
até à noite, os alunos e fila para confessionários. Diante da banca examinadora
sorteávamos trêmulas um ponto, cujo número vinha escrito em papeizinhos
enrolados.
—
Ponto sorteado número cinco. Falar sobre ciclos econômicos do Brasil. São
muitas as lembranças de quando lá estudávamos. Revejo as salas de cadeiras
duplas, os corredores, uma escadaria de madeira que dava acesso ao segundo
andar, o museu, lugar fascinante, onde tudo era novidade, pois não nos
cansávamos de contemplar animais embalsamados entre eles um tamanduá, além de
aves de lindas plumagens empalhadas com arte e cobras enormes mergulhadas em
formol. Dava pavor aproximar-se dos vidros e alguns não se arriscavam cismados
que as serpentes pudessem avançar.
Havia
também uma infinidade de conchas, pedras e ovos à mostra em mesas com tampas de
vidro. Um farto material companha o cenário das aulas de ciências e anatomia,
por sinal, muito agradáveis e curiosas. Achávamos o máximo estudar bactérias
através dos microscópicos. Era divertimento geral chuchar as penas de um
esqueleto em tamanho natural, preso ao teto por uma corrente. Depois corríamos
assustadas para vê-lo de longe chocalhando a ossada.
Vez
por outra burlando a vigilância, corríamos até o jardim para tentar um jacaré
que vivia no repuxo. Sob uma chuva de gominhas atiradas em suas costas o bicho
mergulhava procurando refúgio. Para variar jogávamos nele uma ou outra flor
apanhada às escondidas ali mesmo e caíamos na risada quando o víamos voltar com
a flor agarrada nas costas.
—
Meninas, já pra sala! Não ouviram o sinal? Era Dona Carola com aqueles olhos
muito azuis e voz mansa.
Juventude
sadia, sem o flagelo das drogas, sem o consumismo desenfreado, e os exemplos
negativos da televisão. Tínhamos sim, a inquietude própria da idade, e uma
preocupação constante: ficar em exames de segunda época. No mais, sem angústia
ou revolta, aceitávamos e bem - tênis
surrados, livros de segunda mão e bolsos sempre vazios.
Durante
todo o ano, a escola cumpria extensa programação. Além das comemorações cívicas
— principalmente sete de setembro — realizado com grande entusiasmo — havia as
semanas pedagógicas em sessão solene no salão. Conferencistas famosos em todo o
Estado enriqueciam o evento e entre uma palestra e outra intercalavam-se
números de canto e poesia acompanhados ao piano pelo Padre Luís.
Realizavam-se
ainda concursos de oratória, exposições de trabalhos manuais que atraíam
centenas de visitantes. Por ocasião da festa de Páscoa, nas procissões de
Corpus Christi, vestíamos o uniforme de gala com luvas e tudo. Participação em
massa pois havia chamada e a falta sem justificativa era suspenção na certa.
Durante
o recreio o pátio pipocava em algazarra. Espalhados aqui e ali, os grupinhos de
sempre. Nas filas do bebedouro, empurrões e brincadeiras, enquanto o galpão
ficava apinhado de alunos, merendando. Vez por outra aconteciam as famosas
guerras de limões-capetas roubados no quintal de seu Tonico e atirados lá do
galpão, sobre a turma do pátio.
Questão
de segundos, dava-se o troco e num vaivém medonho, os limões zuniam sobre
nossas cabeças indo se espatifar no chão. Quando a guerra estava no auge, uma
voz conhecida, punha água à fervura. As autoras da “revolução” ficavam após o término
das aulas, empunhando vassouras, enquanto o restante amargava-se de castigo sob
um sol de rachar.
Foram
muitas as emoções vividas naquele pátio: recados amorosos, trocas de ideias,
planos.... Foi também ali que, posto em fila obedecendo a um sinal dado fora do
horário ouvimos a voz embargada do diretor:
—
Faleceu o Exmo. Sr. Presidente da República Doutor Getúlio Dornelles Vargas.
Um
silêncio pesado dominou a tudo e a todos. Era 24 de agosto de 1954.
Assim
era nossa escola. Ali vivia-se intensamente o que disse Ovídio Decroly : “A escola
da vida, para a vida e pela vida!. Longe de um simples slide, desconhecendo por
completo xerox e informática, percorríamos o mundo inteiro graças às riquezas
de detalhes passados pela professora de Geografia, dando-nos a impressão de
estarmos diante de uma tela.
Tempos
depois terminado o ginasial, ingressamo-nos no Curso de Formação de
Professores. O magistério nossa acenava, e cheias de ideais fomos em busca de um
futuro melhor.
—
Minhas alunas vocês juram que nunca darão aulas passivas? Vou fazê-las pôr a
mão sobre a Bíblia e jurar.... Saudosa professora, a de Metodologia do Ensino. Pequenina,
dinâmica, ao toc toc de seus sapatos de salto zarpávamos aos bandos sala a
dentro, assentávamos num segundo, fazendo caras de santa.
Como
D. Graciana não se cansava de repetir: “ O Brasil precisa de professores
capazes” e “a motivação é mola real da aprendizagem”.
Escola
Normal: se suas paredes falassem quantos sonhos de nossa juventude você relaria.
Quantas ilusões e esperanças mortas perambulam como fantasmas naqueles
corredores. Saudade sepultada pelo tempo, onde entre uma aula e outra
sonhávamos com Elvis Presley dançando o rock e Marlon Brando enfeitiçando
nossos corações de adolescente. Tempo inesquecível; quando os sonhos ainda eram
verdades.
* Escritora itaunense por herança e registro.
Fonte:
MACEDO, Maria Lúcia mendes Vera. Pedra de Cetim, BH, Gráfica e Ed Cultura,
2001, p.66,67,68,69.
Acervo: Shorpy