quarta-feira, novembro 20, 2024

PENA ENCANTADA

Em busca da Pena Encantada

Helber era um menino diferente, e essa diferença era um dom. Nascido nas barrancas de Sant’Ana do Rio São João Acima, hoje Itaúna, Minas Gerais, sua sensibilidade parecia transbordar além dos limites do que outros podiam perceber. Afrodescendente, com olhos que refletiam histórias ancestrais e uma quietude que escondia tempestades criativas, ele via o mundo através de detalhes que escapavam ao olhar comum. Para Helber, o simples tremular de uma pena ao vento era mais que movimento — era poesia.

Desde pequeno, ele tinha uma habilidade impressionante de transformar qualquer pedaço de papel, plástico ou tecido em verdadeiras obras de arte. Suas mãos pareciam dançar com uma magia própria, criando formas e figuras que contavam histórias. Mas o que mais o fascinava eram as penas. Ele colecionava penas de todas as cores e tamanhos, conhecia suas texturas, formas e até os sons que produziam ao deslizar pelo vento. Ainda assim, havia uma que ele nunca encontrara: a “Pena Encantada”, uma lenda contada por seus ancestrais.

Na escola, Helber era conhecido por sua paixão por penas. Sua professora e sua auxiliar, sempre atentas e incentivadoras, reconheciam o talento e a sensibilidade do menino. Sempre que encontravam uma pena na rua, no quintal da escola ou em qualquer outro lugar, elas faziam questão de trazê-la para Helber brincar.

A cena era sempre a mesma: assim que ele via a pena, seus olhos brilhavam de pura alegria. Ele largava tudo o que estivesse fazendo e saía correndo, ansioso para pegar aquele pequeno tesouro. Ele girava a pena entre os dedos, admirava sua leveza e beleza, e logo transformava aquele objeto simples em algo mágico, fosse uma composição artística ou apenas uma nova peça para sua coleção. Esse apoio carinhoso ajudava Helber a entender que sua diferença era algo especial, um presente único que ele poderia compartilhar com o mundo.

Os ancestrais de Helber, trazidos do continente africano durante o brutal Comércio Transatlântico de Escravos, preservaram a história através da oralidade. Diziam que a Pena Encantada pertencia ao pássaro mais raro do mundo, que vivia na Costa da Mina, na África Ocidental. Segundo a lenda, quem encontrasse a Pena Encantada teria acesso a todas as respostas que buscava na vida e poderia fazer um único pedido.

Essa lenda enchia Helber de esperança. Ele sentia que a pena poderia ajudá-lo a compreender o que significava o mundo tão acelerado ao seu redor e, talvez, ajudá-lo a expressar aquilo que nem mesmo suas mãos mágicas conseguiam transmitir.

Aos 16 anos, Helber decidiu que era hora de partir. Ele sabia que sua busca o levaria de Itaúna, passando por todo o Estado de Minas Gerais, até atravessar o oceano e chegar à Costa da Mina. Antes de partir, ele recebeu de sua avó, Dona Alzira, uma linha trançada de palha e contas coloridas que representavam a proteção de seus ancestrais.

Sua jornada começou pelas montanhas mineiras, onde conheceu artesãos que o ensinaram a esculpir penas em madeira. Em Ouro Preto, um velho escultor lhe entregou uma pena de ouro, dizendo que ela seria sua guia nos momentos mais difíceis. Seguindo pelo Vale do Jequitinhonha, Helber encontrou uma comunidade quilombola que preservava cantos ancestrais e o ensinou canções que lhe dariam coragem nos momentos de dúvida.

Finalmente, Helber cruzou o Atlântico em um navio. Ao chegar à África, ele foi recebido por um griô, um contador de histórias que parecia já saber de sua chegada. O griô contou que a Pena Encantada estava escondida em um lugar sagrado na Baía de Benim, mas que Helber precisaria provar que era digno dela. A prova não era de força, mas de coração.

Após semanas de caminhada pelas florestas africanas, Helber chegou a um santuário natural onde o pássaro da lenda vivia. Ele ficou parado, em silêncio, observando. Finalmente, o pássaro se aproximou, pousando perto dele. Helber estendeu a mão, mas não tentou pegá-lo. Em vez disso, ofereceu a pena de ouro que havia recebido em Ouro Preto. O pássaro aceitou o presente, deixando cair uma única pena brilhante, pulsando com energia luminosa.

Ao segurar a Pena Encantada, Helber sentiu uma onda de paz e compreensão invadi-lo. Ele sabia que poderia fazer um único pedido. Mas, em vez de pedir algo para si, Helber pediu que o mundo pudesse compreender a beleza e a profundidade do olhar único das pessoas com autismo. Ele desejou que as pessoas parassem de enxergar isso como um "distanciamento" e começassem a ver a riqueza de perspectivas que ele e outros como ele carregavam.

Ao retornar a Itaúna, Helber começou a ensinar sua arte. Ele usava penas e outros materiais simples para ajudar as pessoas a ver o mundo de maneiras diferentes. Sua história inspirou muitos a valorizar o que é único e especial em cada um.

A mensagem de Helber ficou gravada: o mundo das pessoas com transtorno do espectro autista não é distante nem inacessível. É um mundo que guarda segredos sensíveis e profundos, revelando belezas que muitos perdem ao passar rápido demais. Com carinho e aceitação, podemos todos enxergar o mundo com mais curiosidade e amor, abraçando o que é verdadeiramente único e especial.

 

Elaboração, narrativa imaginária e arte: Charles Aquino

Inspiração: APAE – Itaúna/MG - 

Sant'Ana do Rio São João Acima -  Primavera de 2024 - Pedra Negra

 Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.

segunda-feira, novembro 18, 2024

NOS CONFINS DA MEMÓRIA

Mary caminhava sozinha pela estrada deserta, o som de seus passos ecoando nas ruas vazias. A noite estava calma, mas algo em seu interior a inquietava. Ela sentia que havia algo a ser desvendado, algo a ser encontrado. Ouvia vozes que a chamavam para além do alcance da luz da cidade, vozes que a conduziam para o desconhecido. Não era apenas a curiosidade que a motivava, mas um pressentimento de que algo importante estava prestes a acontecer.

Ao longe, ela avistou a entrada da floresta. As árvores, altas e imponentes, formavam uma cortina de sombras densas que escondiam os mistérios por trás delas. Mary sabia que não devia entrar, mas seus pés a conduziram, e as vozes insistiam para que ela entrasse: "Venha, Mary", diziam as vozes. Ela estava com medo, mas continuou caminhando.

Quando entrou na floresta, o silêncio tomou conta de seu ser. Era um silêncio pesado, que parecia pesar sobre seus ombros e penetrar seus ouvidos como um pano escuro. Ela sentiu o ar fresco da noite, carregado de odores terrosos e de algo inusitado que não sabia definir. A vegetação ao redor estava densa, mas o caminho à frente parecia aberto, como se estivesse sendo preparado para ela, um convite sutil para seguir em frente.

Ela deu o primeiro passo, depois outro, e logo percebeu que estava imersa na escuridão suave da floresta. Cada folha farfalhava com o vento, mas, no fundo, ela sabia que não estava sozinha. De repente, as vozes voltaram, e a cada passo que ela dava ficavam ainda mais altas. Algo a observava, algo que parecia conhecê-la mais do que ela mesma. Assustada, Mary olhou para frente.

Uma figura apareceu diante dela. Era uma presença inconfundível, misteriosa e intensa, com olhos que brilhavam como estrelas na noite. Ela não sabia o que era, mas sentiu uma força indescritível emanando daquela figura, e percebeu que as vozes vinham dela.

A figura falou com uma voz suave, mas firme:

— Você chegou, Mary. Eu sabia que viria. O que a trouxe até aqui?

Embora assustada, Mary não conseguiu recuar. Algo dentro dela dizia que precisava ficar. Havia uma urgência em sua alma que a impedia de ir embora.

— Eu... não sei exatamente — disse Mary, a voz tremendo levemente. — Algo me trouxe aqui. Algo que não consigo explicar.

A figura sorriu levemente, mas seus olhos permaneciam fixos, como se observassem todos os detalhes da alma de Mary.

— Você pensa que não sabe, mas sempre soube. Cada passo que deu até aqui foi guiado por algo que você não entende. Já se perguntou por que a vida parece sempre desviar-se para este ponto? Está à procura de respostas, não está?

Mary engoliu em seco. As palavras da figura eram como flechas acertando seu coração, atingindo pontos vulneráveis. Ela sempre buscou respostas sobre sua própria vida, sobre a perda de seu pai, Gael, e as questões que envolviam sua mãe, Estela. Sentia que algo estava escondido delas, algo que nunca havia sido dito, algo que ainda precisava ser revelado.

— O que você sabe sobre mim? — Mary perguntou, a voz quase inaudível.

A figura não respondeu de imediato. Apenas olhou profundamente nos olhos de Mary, como se lesse cada pensamento, cada emoção. Então, falou quase num sussurro:

— Sei o que você guarda dentro de si. Vejo o que não diz, o que esconde até de si mesma. Pensa em seu pai, Gael, com tanta saudade... Sente a falta dele todos os dias, não é? Mas há algo mais, Mary. Você carrega a dor da perda, o peso da ausência. Cada vez que fecha os olhos, ainda sente a presença dele, mas como se fosse uma ilusão. E sua mãe, Estela... você a observa, tentando entender os segredos que ela guarda. Ela é forte, mas você sente que há algo que nunca compartilhou. Algo do passado, que a consome e a afasta de você. E você quer saber o que é, não quer? Quer respostas, mas quanto mais busca, mais se perde.

Mary sentiu um frio percorrer sua espinha. Era impossível negar o que a figura dizia. Cada palavra atingia seus sentimentos mais profundos, suas inseguranças, seus medos.

— Como sabe disso? — Mary perguntou, agora sentindo um calafrio mais forte. — Como sabe tudo isso sobre mim?

A figura sorriu, a expressão mais enigmática.

— Não preciso de respostas, Mary. Vejo tudo. Vejo o que você não consegue ver, o que está oculto dentro de você. Sou as árvores, o vento, o chão sob seus pés. Sou a memória das coisas que foram perdidas, das coisas que deixou de lado.

Mary sentiu a pressão aumentar. O medo tomava conta dela, mas algo dentro dela parecia despertar. Sabia que não podia permitir que aquela figura invadisse ainda mais sua mente. Precisava ser forte.

Respirou fundo e, com firmeza, disse:

— Saia da minha cabeça! Não aceito que vasculhe minha mente! Eu sou a dona dos meus pensamentos! Você não tem acesso a mim! Saia agora!

Os olhos da figura se estreitaram, cheios de uma fúria silenciosa. O ar ao redor de Mary parecia vibrar com a intensidade de suas palavras, como se a própria floresta reagisse à sua determinação. As vozes vindas da floresta aumentaram, agora parecendo um apoio à sua coragem.

— Continue, Mary! — diziam as vozes. — Continue assim!

Mary não hesitou. Deu um passo à frente e, com um grito firme, disse:

— Saia agora! Acha que tenho medo de você? Não tenho! Só sei que você está nos meus pensamentos, e meus pensamentos quem controla sou eu. Eu te expulso agora!

A figura, antes tão poderosa, começou a recuar. Seus olhos estavam cheios de surpresa e fúria, mas, conforme Mary continuava a gritar, sua silhueta começou a se desfazer, como se estivesse perdendo a força que a sustentava, sendo empurrada para longe pela mente de Mary.

Com um último grito, a figura desapareceu completamente, deixando Mary sozinha na floresta. O silêncio tomou conta novamente, mas desta vez era acolhedor, como se a floresta permitisse que ela se restabelecesse.

Mary ficou ali por um momento, respirando pesadamente. Sentia a presença da figura desaparecer, mas também sentia que algo dentro dela havia mudado. Uma sensação de clareza, de liberdade, tomou conta de seu ser. Olhou ao redor e viu que o caminho à sua frente estava mais claro. As árvores pareciam afastar-se, dando-lhe passagem. Era como se a floresta estivesse esperando por ela para tomar a próxima decisão.

Mary começou a caminhar, os passos agora mais firmes. Sabia que sua jornada não havia terminado. Estava pronta para descobrir mais, para enfrentar o que fosse necessário e, talvez, finalmente encontrar as respostas que tanto procurava.

A história termina aqui, mas a jornada de Mary continua. A floresta tem muitos segredos a revelar, e Mary está pronta para desvendar cada um deles.


"Escritoras Contemporâneas"

História e direção narrativa: Josyane Mara

Arte e design: Charles Aquino

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.

terça-feira, novembro 12, 2024

FRAGMENTOS DE UM ENCONTRO

Charo era uma jovem mexicana de sorriso sereno e olhar profundo, sempre à procura de encantos escondidos nos cantos mais inesperados do mundo. Sua busca a levou a Ouro Preto, essa cidade brasileira esculpida em história e encanto, onde as ladeiras contavam segredos, e cada pedra parecia sussurrar as lembranças de quem já havia passado por ali.

Ao caminhar por Ouro Preto, Charo se perdia nas ruas estreitas e íngremes, ladeadas por casarões antigos que pareciam guardar, em suas paredes, o peso de séculos de história. A cidade pulsava uma beleza singular, onde o antigo e o novo coexistiam em harmonia, criando um universo onde o tempo parecia suspenso. Charo pensava nas ruas de Ouro Preto como fragmentos de um passado que, de alguma forma, sobrevivera e ainda estava vivo ali, resistindo, florescendo em meio ao presente.

Numa dessas caminhadas, numa noite estrelada, Charo chegou à Praça Tiradentes, onde a iluminação fazia brilhar o cenário com um toque quase mágico. A praça estava cheia de vida e de um silêncio profundo ao mesmo tempo. Foi então que ela encontrou um jovem que também parecia encantado pelo cenário ao redor. Ele era um estudante de Pedagogia, e seus olhos brilhavam com a mesma curiosidade que ela sentia. Ele se aproximou e, com um sorriso tímido, ofereceu-lhe uma flor e perguntou: De onde você é? A moça, com um sorriso, respondeu: ¡Soy de México!

— Esta flor me recuerda los colores de tu tierra — disse, com um suave acento-¿Aceptado?

Charo aceitou a flor, e ali, sentados na calçada da praça, trocaram histórias sobre suas terras, suas vidas e o que os havia levado até aquele lugar mágico. Ele falava sobre como o estudo e a preservação da memória cultural podiam fazer com que a história de um povo nunca se perdesse. Cada palavra reforçava a crença de Charo de que ela estava em um lugar onde o tempo era um guardião cuidadoso, sempre atento ao passado e acolhendo o presente com afeto.

No dia seguinte, o jovem estudante a levou para conhecer os tesouros de Ouro Preto. Começaram pelo Mirante do Morro São Sebastião, de onde puderam ver a cidade inteira em seu esplendor, cercada pelas montanhas verdes e banhada pela luz suave da manhã. Charo sentiu ali uma paz indescritível, como se pudesse enxergar sua própria alma refletida naquela paisagem imensa. 

Visitando o Museu da Inconfidência, ela conheceu as histórias dos que lutaram pela liberdade, e a Igreja São Francisco de Assis a envolveu com sua arquitetura barroca, cheia de detalhes e com o toque de um Brasil antigo, que Charo sentia em cada esquina. No topo do Pico do Itacolomi, ela encontrou algo mais que uma paisagem: encontrou um pedaço de si mesma, uma certeza de que ali sempre haveria um lugar onde o tempo, o passado e o presente, poderiam conviver.

Quando chegou a hora de retornar ao México, Charo levou consigo muito mais do que apenas lembranças. Ouro Preto havia lhe mostrado o valor de preservar, não apenas as coisas materiais, mas também as histórias, as pessoas e as emoções. Ela compreendeu que o verdadeiro legado de um lugar não são apenas suas construções ou suas paisagens, mas a memória de um povo que luta para manter sua identidade viva, mesmo com o passar dos anos.

De volta à sua terra natal, Charo mantinha viva em sua mente, coração e alma os detalhes daquela viagem. Em suas lembranças, Ouro Preto sempre seria um pedaço de eternidade, uma cidade onde o tempo se tornou aliado da história, guardando os sonhos e as lutas de quem ali viveu. E, de uma maneira mágica, Charo soube que um pouco dela também ficara naquela cidade, nos fragmentos de histórias que ela agora conhecia e carregava consigo, com a promessa de que, onde quer que estivesse, preservaria a memória e a beleza de um povo.


"Escritoras Contemporâneas"

História narrativa: Lótus Negra

Arte e design: Charles Aquino

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.  

domingo, novembro 03, 2024

RESGATE DA HISTÓRIA

O blog "Resgate da História" apresenta um acervo valioso de documentos "históricos-paleográficos", com foco nos séculos XVIII e XIX, especialmente da região Centro-Oeste de Minas Gerais.

Desenvolvido e administrado pelo historiador Charles Aquino, o blog é um projeto colaborativo que conta com o apoio de especialistas em paleografia e genealogia, incluindo o Dr. Alan Penido e Aureo Nogueira da Silveira. 

Essa equipe se dedica a transcrições precisas de textos antigos, preservando a ortografia e estrutura originais, o que permite ao leitor experimentar a autenticidade linguística e cultural da época.

O objetivo principal do blog é preservar, divulgar e democratizar o acesso a um patrimônio documental que revela aspectos pouco explorados da história mineira e brasileira. 

Documentos como testamentos, inventários, registros de compra e venda, além de relatos de cotidiano, compõem o acervo e oferecem uma visão sobre a organização social, econômica e familiar da época. Cada transcrição acompanha um breve contexto histórico que auxilia na compreensão do documento, facilitando o trabalho de pesquisadores e interessados na genealogia, na paleografia e no estudo histórico.

Além do foco em documentos de Minas Gerais, o blog também oferece acesso a registros de outras regiões, ampliando o leque de possibilidades para estudos comparativos e para uma compreensão mais abrangente da vida colonial e imperial brasileira. A página, através da paleografia dos documentos, oferece, ainda, traços dos textos originais, permitindo que o leitor explore as nuances da caligrafia e da gramática da época. Essa abordagem semidiplomática é um dos pontos altos do blog, pois combina o rigor acadêmico com uma apresentação acessível e visualmente atraente.

O "Resgate da História" se destaca como um recurso didático e subsídio para pesquisa, sendo utilizado por professores, estudantes e historiadores. Sua organização é intuitiva, com seções categorizadas por tipos de documentos e períodos históricos, o que facilita a navegação e a busca por temas específicos.

A criação de corpora inéditos de textos antigos é outro pilar importante do projeto, contribuindo para o estudo da evolução da língua portuguesa no Brasil. Os registros linguísticos e as particularidades regionais preservadas nos documentos ajudam a traçar a formação de dialetos, as mudanças no vocabulário e até as influências culturais nas expressões locais. Esse trabalho, além de preservar o patrimônio linguístico, apoia a construção de uma identidade cultural e histórica que pode ser acessada por futuras gerações.

O blog "Resgate da História" é, portanto, um espaço de memória e preservação, que une tecnologia e história para garantir que documentos fundamentais à identidade mineira e brasileira continuem vivos e acessíveis. É uma iniciativa que não só valoriza o passado, mas o mantém relevante para o presente e o futuro. 

RESGATE DA HISTÓRIA ✅

sábado, novembro 02, 2024

EMILY EM UM MUNDO PARALELO

Era uma noite fria e silenciosa. Emily andava por uma rua estreita, cercada por prédios antigos que pareciam se inclinar sobre ela. A iluminação era fraca, e as sombras dançavam sob os poucos postes de luz. O coração dela batia acelerado; algo naquela rua parecia errado, como se ela não estivesse mais em seu mundo.

De repente, Emily parou. Diante dela, algo inexplicável: um muro invisível bloqueava sua passagem. Ela estendeu a mão para frente e sentiu uma resistência firme, como se houvesse vidro ali, mas nada visível estava entre ela e o resto da rua. Emily pressionou o muro, empurrando com força, mas ele não cedia.

Curiosa, ela tentou ver o que havia do outro lado. Ali, a paisagem era dividida em duas metades distintas: à sua esquerda, um lado negro, profundo e sombrio, onde tudo parecia distorcido, como se a escuridão tivesse vida própria. Do outro lado, um clarão branco, quase ofuscante, emanava uma sensação de calma e tranquilidade. Era como se dois mundos opostos coexistissem, separados apenas pelo misterioso muro.

Emily sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ela sabia que precisava descobrir o que aquilo significava e por que esse muro a impedia de seguir adiante. Mas uma pergunta insistente ecoava em sua mente: para qual lado ela deveria ir?

Emily ouviu um sussurro em sua mente, suave como uma brisa, que a chamava para o lado claro. Era uma voz familiar, quase maternal, que parecia envolver seu coração com uma sensação de paz. "Venha... aqui é seguro, Emily. Você encontrará respostas, luz e o caminho de volta", dizia a voz, insistente e acolhedora, como se o lado claro a esperasse há muito tempo.

Mas, então, outra sensação tomou conta dela. Uma atração sombria e poderosa a puxava para o lado negro, como se algo invisível estivesse tentando envolvê-la. "Não confie na luz", uma voz profunda sussurrava. Era enigmática e um tanto sedutora, prometendo respostas que Emily sabia que não encontraria em nenhum outro lugar. "Aqui está a verdade... o que você realmente precisa ver."

O coração de Emily batia mais rápido; a cabeça girava entre os chamados opostos. Ela sentia-se dividida, incapaz de resistir à força que cada lado exercia sobre ela. A atração para o lado escuro era quase irresistível, intensa e misteriosa, mas o lado claro oferecia a paz que tanto desejava. Ela sabia que a escolha que faria poderia mudar tudo — e não apenas para ela.

Ali, diante daquele muro invisível e de um mundo dividido, Emily percebeu que essa decisão não era só sua. Era como se algo a esperasse dos dois lados, algo que conhecia seus medos, seus desejos e que estava pronto para testá-la.

Emily respirou fundo, sentindo a tensão se acumular em seu peito. A luz suave emanava calor e esperança, enquanto a sombra pulsava com promessas de poder e conhecimento. Ela fechou os olhos por um momento, tentando se conectar com seu verdadeiro eu, com o que realmente desejava.

"Eu não posso ser consumida pela escuridão", sussurrou para si mesma. A voz da luz era um farol em meio à tempestade e, apesar do medo e da dúvida, ela sabia que a escuridão apenas a atraía com ilusões.

Abrindo os olhos, Emily dirigiu-se para a luz, permitindo que a sensação de paz a envolvesse completamente. A cada passo que dava, as sombras começavam a recuar, e a voz profunda tornava-se cada vez mais distante, como um eco que perdia força.

Quando finalmente cruzou o limite entre os dois mundos, a luz a envolveu, e ela sentiu uma conexão renovada com tudo ao seu redor. Era como se amor e sabedoria lhe fossem concedidos, com a verdade se desdobrando diante de seus olhos. Ela percebeu que não estava sozinha nessa jornada; outros estavam lá, prontos para apoiá-la.

Emily, agora cercada pela luz, virou-se para encarar as sombras que a perseguiam. "Eu não tenho medo de você", disse, com uma nova confiança. "Eu escolho a luz e a verdade que ela traz." As sombras hesitaram e, então, lentamente começaram a dissipar-se, como névoa ao amanhecer.

Com o coração leve, Emily sentiu que, ao escolher a luz, também estava se escolhendo. Ela sabia que a jornada estava apenas começando, mas estava pronta para enfrentar o que viesse, guiada pela força que havia encontrado em si mesma. Afinal, a verdadeira luz não apenas iluminava o caminho; também ajudava a encontrar a coragem necessária para caminhar.

E assim, Emily seguiu adiante, não apenas como uma viajante, mas como uma guerreira da luz, pronta para enfrentar o mundo com um novo propósito e clareza.


"Escritoras Contemporâneas"

História e direção narrativa: Mary J.

Arte e design: Charles Aquino

Apoio à leitura e inspiração para novos escritores: Professora Camila Queiroz

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto. 

sexta-feira, novembro 01, 2024

PRESERVAR X DEMOLIR (PARTE II)

O texto oferece um recorte detalhado de uma reunião sobre o destino do antigo hospital de Itaúna/MG. A reportagem é do jornal Ita Vox, publicada entre 29 de dezembro de 1987 e 5 de janeiro de 1988, com uma manchete que destaca a ameaça de demolição do imóvel então conhecido como Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira. O título impactante "HOSPITAL SERÁ “TOMBADO” A PICARETA" transmite a ideia de uma destruição iminente, em vez de um "tombamento" que garantiria sua preservação histórica.

A reportagem tem como pauta principal “o destino do prédio velho do Hospital, a seção examinou duas propostas: A demolição até o limite de segurança e a interdição até realização das obras, mas somente da fachada”. Essa análise apresenta argumentos e posições dos participantes, que variam entre a demolição completa e a preservação parcial do prédio, destacando as complexidades técnicas e financeiras envolvidas.

 Participantes e suas Posições

Antônio Peres Guerra - Provedor da Fundação Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira decidiu pela demolição do "Hospital Velho". Ele argumenta que o edifício ficou inativo por mais de 50 anos, o que torna inviável a restauração completa. Segundo Guerra, o prédio se encontra em condições estruturais insustentáveis, e os recursos financeiros disponíveis são insuficientes para um projeto de preservação. Ele sugere que a verba existente seja direcionada para a expansão do "Hospital Novo", enfatizando uma visão pragmática, onde a funcionalidade e segurança são prioridades sobre a preservação histórica.

Irdevan Nogueira Júnior - Arquiteto presente na reunião, que sugere uma solução intermediária: manter a fachada do prédio e reconstruir o restante. Ele defende a ideia de preservar ao menos uma parte do patrimônio, conciliando a preservação histórica com a necessidade de modernização e uso prático. Sua sugestão representa um ponto de equilíbrio, tentando atender tanto às demandas dos defensores do patrimônio quanto às limitações financeiras.

Doutor José Campos: Médico que também contribuiu com um ponto de vista prático, afirmando que o problema é "técnico, embora de ligações afetivas". Ele reconhece o valor afetivo do hospital, especialmente para o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), mas coloca a questão estrutural como prioridade. Sua posição sugere uma preocupação com a segurança, embora reconheça a importância simbólica do prédio.

Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA): Embora não tenha sido representado diretamente na reunião, o IEPHA é mencionado pelo Dr. Campos como uma entidade que vê o prédio como patrimônio de “muito valor”. Isso reflete o interesse do instituto em preservar a estrutura como parte da memória cultural de Itaúna, contrastando com a posição dos gestores locais que priorizam a viabilidade técnica e financeira.

Juarez Campos (Diretor do ITA VOX): Como diretor do jornal que publicou a matéria, sua presença pode indicar um interesse em documentar e divulgar o debate sobre o destino do hospital. A cobertura jornalística enfatiza a importância do hospital para a comunidade e pode refletir uma visão crítica à falta de políticas de preservação do patrimônio histórico da cidade.

Dr. Peri Tupinambás, médico, se posiciona firmemente contra a demolição do antigo hospital Manoel Gonçalves em Itaúna, fazendo uma crítica incisiva às decisões que, segundo ele, refletem uma falta de respeito pela história e memória da cidade. Ele considera a demolição como uma "profanização" da história de Itaúna, enfatizando a importância de manter o prédio como um símbolo da identidade e do passado coletivo dos itaunenses.

Principais Pontos da Crítica de Peri Tupinambás:

Desvalorização da História: Peri Tupinambás destaca que a decisão de demolir o hospital é uma violação ao patrimônio cultural de Itaúna. Para ele, o hospital não é apenas um edifício antigo, mas uma peça fundamental da história da cidade, construída com propósito e valor emocional. A ideia de "profanizar" a história ao demolir o prédio demonstra a sua visão de que esse ato representa um desrespeito aos valores e tradições locais.

Crítica ao Abandono e às Decisões do Passado: Peri afirma que o "erro começou quando resolveram tirar de lá o hospital" e transferi-lo para outro edifício, deixando o antigo hospital ao abandono. Segundo ele, a decisão de construir um novo prédio e deixar o anterior à própria sorte foi um sinal claro da falta de compromisso dos governantes com o patrimônio e a história. Essa crítica revela sua visão de que, se o antigo hospital tivesse sido mantido em funcionamento ou restaurado na época, a discussão sobre demolição não estaria ocorrendo.

Ausência de Cidadania e Participação Popular: Tupinambás destaca a falta de envolvimento da população nas decisões sobre o hospital, sugerindo que a demolição foi decidida de maneira arbitrária, sem ouvir a voz dos cidadãos. Ele acredita que o poder público deveria ter consultado a comunidade e promovido um debate mais amplo, ao invés de impor uma decisão sem levar em conta o desejo coletivo de preservação histórica.

Potencial de Restauração: Ao declarar que “ainda poderia se fazer de novo o que era, bastando que houvesse a vontade de executar”, Tupinambás deixa claro que ele acredita na viabilidade de restaurar o edifício. Ele indica que, com empenho e investimento adequado, o prédio poderia ser revitalizado, preservando sua importância histórica e cultural.

Críticas à Administração Local: Peri critica a atitude das autoridades municipais da época, acusando-as de "calhordas" e de falta de comprometimento com Itaúna. Ele vai além e critica a "classe dominante e intelectualidade" que, segundo ele, apoiavam a demolição, questionando seu compromisso com os interesses culturais e patrimoniais da cidade.

Menção a Outros Defensores do Tombamento: No final, Peri menciona o professor Marco Elísio e Dona Arthurina como vozes que também defendem o tombamento e preservação do hospital. Isso indica que ele não está sozinho em sua posição e que há outros cidadãos influentes que compartilham a mesma visão de proteção ao patrimônio histórico.

Crítica ao Conselho do Hospital: Tupinambás também se refere de forma crítica ao conselho do hospital, que teria mantido uma postura inflexível contra o tombamento, evidenciando que a batalha pela preservação do prédio envolvia conflitos não apenas de opinião, mas de status e poder na cidade.

No encerramento dos debates, os participantes concluíram que a recuperação do edifício já deveria ter ocorrido há cerca de 30 anos. Estiveram presentes na sessão: o médico Helênio Eustáquio, o vice-provedor Dalmo Coutinho, o membro do Conselho Consultivo Waldemar Gonçalves de Souza e os conselheiros Ary Carvalho, Petrônio Nogueira Guimarães, José Joarez Silva, Afonso Henrique Silva Lima, Roberto Soares Nogueira, Affonso Cerqueira Lima, Mério Alves de Souza, Délcio Drummond, Elisa Tarabal, João Afonso Guimarães, Sebastião Miamoto, Professor Marco Elias, Augusto Machado, Luiz Guimarães, Meroveu Camargos e Geraldo Augusto Silveira.

Ao que tudo indica, a decisão de não demolir o antigo Hospital Velho prevaleceu. Passados aproximadamente 37 anos desde a publicação da matéria, o edifício permanece de pé, embora não tenha recebido nenhuma intervenção de restauração até o presente momento. Sua permanência sugere um compromisso com a preservação do patrimônio, mesmo que ainda não tenha se concretizado em ações de revitalização.

Aparentemente, a comunidade e os administradores da época reconheceram a importância cultural do prédio, ainda que a restauração tenham sido indefinidamente adiados. A estrutura permanece até hoje como testemunho do patrimônio histórico de Itaúna e de seu fundador, Manoel Gonçalves de Souza Moreira, carregando consigo um valor simbólico de resistência e memória para as gerações presentes e futuras.

PRESERVAR X DEMOLIR PARTE I ✅

Referências:

Organização, arte e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa: Jornal Ita Vox, 29 de dezembro de 1987 a 05 de janeiro de 1988

Reportagem original disponível no blog: Casa de Caridade Manoel Gonçalves

Imagem: Meramente ilustrativa 


quarta-feira, outubro 23, 2024

HÉLICES DO SILÊNCIO

Era uma vez um garoto de seis anos chamado Lucas. Ele vivia em uma casa tranquila com seus pais e sua irmã mais velha, e, como qualquer criança, tinha seus interesses. No entanto, um deles se destacava mais que os outros: os ventiladores de teto. Lucas era absolutamente fascinado por eles. Quando entrava em um cômodo, sua atenção imediatamente era capturada pelo ventilador. Seus olhos brilhavam, e ele podia passar longos minutos observando as hélices girarem, como se o movimento suave e constante fosse a coisa mais hipnotizante do mundo.

Sempre que sua mãe ia ao supermercado ou visitava a casa de algum parente, Lucas perguntava, antes de qualquer coisa, se havia ventiladores de teto no local. Se a resposta fosse sim, ele já sabia o que faria: ficaria debaixo do ventilador, observando-o rodar, enquanto todos ao redor continuavam suas conversas e atividades.

O curioso era que, mesmo sendo tão novo, Lucas entendia como os ventiladores funcionavam. Sabia de cor quantas lâminas cada modelo tinha e até os diferentes sons que cada um fazia. Quando as pessoas perguntavam sobre sua paixão por ventiladores, ele simplesmente sorria e continuava a observar, talvez sem conseguir explicar em palavras o motivo de seu encantamento.

Seus pais, a princípio, achavam que a obsessão de Lucas era uma fase. "Ele vai se interessar por outra coisa em breve", diziam entre si. Mas com o tempo, perceberam que era mais do que um simples fascínio. Era uma forma de Lucas encontrar conforto e segurança em um mundo que, às vezes, parecia muito grande e confuso para ele.

As pessoas ao redor, no entanto, nem sempre entendiam. "Por que ele não brinca com outras crianças?" perguntavam os vizinhos. "Ele nunca responde quando falamos com ele." No parque, enquanto as outras crianças corriam e brincavam, Lucas preferia sentar-se sob o quiosque, onde havia um ventilador. Não era que ele não gostasse de companhia, mas o som constante e repetitivo das lâminas cortando o ar o ajudava a organizar os pensamentos e a acalmar o coração.

Sua mãe, sempre observadora, notou que, quando Lucas estava agitado ou confuso, ligar um ventilador era como acender uma luz em um quarto escuro. O movimento circular e previsível parecia alinhar as emoções de Lucas, trazendo-o de volta ao equilíbrio. Ela começou a entender que o ventilador de teto era mais do que um simples objeto: era o refúgio de seu filho, sua âncora em meio ao caos.

Quando Lucas completou seis anos, seus pais decidiram matriculá-lo em uma escola especial, onde ele frequentaria as aulas três vezes por semana. Lá, as crianças recebiam atenção individualizada e atividades que respeitavam seus ritmos e formas de aprendizado. Lucas foi para sua primeira aula com curiosidade e, logo que entrou na sala, seus olhos se iluminaram ao ver dois ventiladores: um instalado no teto, girando silenciosamente, e outro fixado na parede, mais alto, lançando uma brisa suave.

Naquela sala, Lucas encontrou seu novo refúgio. Ele passava os primeiros minutos de cada aula observando os ventiladores, com um sorriso suave no rosto. As outras crianças se ocupavam com atividades diversas, mas Lucas permanecia atento ao movimento constante e rítmico das hélices. Era como se aquele simples ato de contemplação o ajudasse a se organizar em meio a tantas novidades.

A professora Esperança, uma mulher atenta e carinhosa, logo percebeu esse fascínio. Ao invés de apressar Lucas ou forçá-lo a se envolver imediatamente nas atividades, ela teve a sensibilidade de entender o que aquilo significava para ele. Observando como os ventiladores o acalmavam, ela decidiu que aquela seria sua ponte de comunicação com Lucas. Ela começou a se sentar ao lado dele, sem pressão, e comentava suavemente sobre o ventilador: “Você sabia que esse ventilador tem três lâminas? Gosto do som suave que ele faz, e você?”. Lucas, inicialmente em silêncio, olhava para ela de relance, como se estivesse processando o que ela dizia. A cada semana, a professora continuava a conversar com ele nesse ritmo tranquilo, respeitando o tempo que ele precisava para processar as informações e se sentir seguro para interagir.

Rosa, uma monitora dinâmica e sempre presente, trabalhava ao lado da professora, ajudando em todos os momentos. Ela era uma pessoa cheia de energia e com um sorriso acolhedor, que conseguia acalmar as crianças apenas com sua presença. Rosa e a professora Esperança formavam uma equipe dedicada, e Rosa, com sua paciência, também percebia o fascínio de Lucas pelos ventiladores. Juntas, elas desenvolveram uma estratégia para se comunicar e envolver Lucas, sem apressá-lo ou pressioná-lo.

Rosa frequentemente preparava o ambiente para Lucas, organizando atividades com a professora e garantindo que ele tivesse o tempo e espaço de que precisava. Ela notava cada pequena conquista, comentando com a professora: “Hoje, ele sorriu quando falei sobre as lâminas do ventilador. Acho que estamos ganhando sua confiança”. A conexão de Lucas com os ventiladores tornou-se o ponto de partida para suas interações com o mundo ao seu redor, e Clara e a professora Esperança sabiam que era preciso respeitar esse ritmo.

Com o passar das semanas, Lucas começou a responder, às vezes com um aceno de cabeça, outras vezes com palavras curtas. Ele ainda preferia contemplar os ventiladores, mas agora compartilhava esse momento com sua professora Esperança e Rosa, que, pacientemente, encontravam formas de envolver Lucas nas atividades, sempre respeitando seu tempo e seu espaço. Em vez de afastá-lo de sua paixão, elas usaram essa conexão para abrir portas para novas interações e aprendizado.

O que a professora Esperança e a monitora Rosa entenderam — e o que é uma lição para todos nós — é que cada criança tem uma forma única de se comunicar e interagir com o mundo. No caso de Lucas, os ventiladores eram sua forma de encontrar calma e sentido em meio ao que, para ele, podia ser um ambiente cheio de estímulos. Elas não o julgaram por isso, nem tentaram mudar seu comportamento, mas aceitaram sua maneira de ser e usaram essa afinidade para criar uma ponte de comunicação.

A história de Lucas, no fundo, não era sobre ventiladores. Era sobre a importância de enxergar o que está além do óbvio, de perceber que cada criança tem seu próprio jeito de se conectar com o mundo. Às vezes, isso acontece de maneiras que não entendemos de imediato, mas basta um pouco de sensibilidade e atenção para descobrir que, por trás daquele olhar fixo em algo aparentemente simples, há um universo inteiro de sentimentos e experiências esperando para ser descoberto.

Essa história fictícia nos lembra da importância de ter paciência, sensibilidade e respeito quando lidamos com crianças que, muitas vezes, enxergam o mundo de um jeito diferente. Nem sempre as palavras são o primeiro caminho de comunicação; às vezes, são os gestos, os interesses ou os pequenos rituais que nos mostram como podemos nos conectar com elas. Entender e reconhecer esses sinais, especialmente em crianças com autismo, é um ato de cuidado e respeito à sua singularidade.

E assim, Lucas crescia, com seus ventiladores de teto sempre por perto, lembrando todos ao seu redor que cada criança tem sua própria forma de ver o mundo — e que, com paciência e amor, é possível entender e celebrar essas formas únicas de ser.

A história imaginária de Lucas nos lembra da importância de reconhecer e valorizar as singularidades de cada criança, especialmente daquelas que possuem maneiras únicas de se conectar com o mundo, mesmo que, por vezes, o façam em silêncio. Assim como Lucas encontrou conforto e segurança em algo simples como o movimento de ventiladores, muitas outras crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras deficiências precisam de um ambiente acolhedor e de pessoas sensíveis que as ajudem a florescer.

A APAE de Itaúna desempenha um papel fundamental nessa jornada, oferecendo um atendimento completo para crianças e adultos com deficiência, incluindo serviços como terapia ocupacional, fisioterapia, psicologia, psicopedagogia, oficinas de artes e música, atividades físicas, assistência social e o Atendimento Educacional Especializado (AEE). Através de projetos como a Escola de Família, a APAE também orienta os pais sobre como melhorar a comunicação com seus filhos e fortalecer o vínculo familiar, essencial para o sucesso no desenvolvimento dessas crianças.

Assim como na história de Lucas, acompanhado por sua dedicada professora e a atenciosa monitora, a APAE de Itaúna atua diariamente com dedicação e sensibilidade, assegurando que cada pessoa receba o suporte necessário para desenvolver seu potencial ao máximo. A instituição está comprometida a promover a inclusão, oferecendo um ambiente acolhedor e transformando vidas por meio de seu trabalho incansável e humanizado.


Referências:

Elaboração, narrativa imaginária e arte: Charles Aquino 

Imagem: Fita quebra-cabeças de conscientização do autismo. Disponível em: Wikipédia

APAE – Itaúna/MG: Disponível em: https://apaeitaunamg.org.br/site/educacao/


segunda-feira, outubro 14, 2024

PRESERVAR X DEMOLIR (PARTE I)

1982

Convido você a analisar a reportagem publicada no jornal Estado de Minas em 14 de julho de 1982, escrita pelo jornalista João Gabriel, que aborda um importante dilema enfrentado pela cidade de Itaúna/MG na época: a preservação ou a demolição da Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira, o prédio mais antigo da cidade. A discussão é enriquecida com diferentes pontos de vista, envolvendo várias figuras influentes como um promotor, um arquiteto, um escritor, médicos e professores, que expuseram suas opiniões sobre o valor histórico e cultural do edifício, em contraste com a necessidade urgente de modernizar as instalações hospitalares para melhor atender à população.

Solicito você a refletir sobre esse episódio histórico e se colocar no lugar das pessoas envolvidas no debate: se fosse sua decisão, você optaria por preservar o edifício histórico, com seu valor simbólico e cultural, ou priorizaria a demolição, visando o desenvolvimento e a modernização das instalações hospitalares, essenciais para a comunidade? Agora, você tem a oportunidade de revisitar essa discussão, refletindo sobre como esses diferentes pontos de vista moldaram o embate entre memória e progresso. Vamos analisar as posições dos principais personagens mencionados.

1. Médico José Juarez Silva (Provedor da Casa de Caridade):

José Juarez Silva, que estava à frente da Casa de Caridade, adota uma postura pragmática quanto à preservação do prédio. Ele acredita que, se os recursos estivessem disponíveis para restaurar o edifício, essa seria a solução ideal. No entanto, após consultar engenheiros, ficou claro que a restauração não era economicamente viável, levando-o a sugerir a demolição. Sua preocupação maior está em otimizar os recursos para melhorar as condições do hospital e adquirir novos equipamentos para a cidade, como um CTI e raios-X, que são necessidades mais urgentes para o atendimento à população.

2. Promotor Faiçal David Freire Chequer (Representante do Ministério Público):

O promotor Faiçal David Freire Chequer adota uma posição realista. Essa visão reflete sua preocupação em equilibrar passado e futuro: ele defende a preservação do patrimônio, mas dentro de um contexto onde o avanço do hospital e o bem-estar social não sejam prejudicados. Contudo, ele considera essa preservação válida "desde que não implique em barrar o desenvolvimento do hospital". Ou seja, ele vê a preservação do patrimônio como relevante, mas subordinada às necessidades práticas e funcionais do hospital. Ao propor que o laudo técnico sobre o prédio inclua uma análise de viabilidade, Chequer demonstra sua intenção de aguardar uma avaliação detalhada antes de tomar uma decisão final.

3. Médico Peri Tupinambás:

Peri Tupinambás tem uma postura clara em defesa da preservação do prédio. Ele acredita que o prédio da Casa de Caridade é um marco histórico de Itaúna e, portanto, deve ser restaurado para preservar a memória da cidade. Como candidato à prefeitura, seu posicionamento parece refletir um respeito pelo patrimônio histórico, e ele argumenta que o valor simbólico do edifício transcende seu estado atual de ruínas.

4. Escritor e Pesquisador David de Carvalho:

David de Carvalho é outro defensor da preservação, argumentando que não se pode permitir que a cidade perca um prédio tão carregado de ideais e história. Ele vê na recuperação do prédio uma oportunidade para atender a comunidade em diferentes aspectos, inclusive como espaço cultural, fortalecendo assim o espírito de pertencimento da população com seu passado.

5. Professor Guaracy de Castro Nogueira (Reitor da Universidade de Itaúna e Ex-Provedor da Casa de Caridade):

O professor Guaracy de Castro Nogueira adota uma postura mais técnica. Ele considera o prédio irrecuperável devido ao seu estado avançado de deterioração. Para ele, a prioridade deve ser dada a investimentos na infraestrutura educacional e hospitalar da cidade, como a expansão do atual hospital e a criação de novas instalações acadêmicas na Universidade de Itaúna. Ele se opõe ao uso de recursos públicos para tentar salvar o prédio, que, segundo ele, está muito danificado para justificar sua restauração.

 6. Arquiteto Hélio Ferreira Pinto:

O arquiteto Hélio Ferreira Pinto, uma autoridade no estilo neoclássico no Brasil, defende que o prédio é perfeitamente recuperável. Ele valoriza a história arquitetônica da Casa de Caridade, destacando o estilo neoclássico da construção e sua importância para a memória coletiva. Para ele, destruir o prédio seria um grande erro, e ele defende a restauração como algo não apenas possível, mas também necessário.

7. Professor Marco Elísio Chaves Coutinho:

Professor Marcos Elísio Coutinho, ligado à área de cultura e turismo de Itaúna, também advoga pela recuperação do prédio. Para ele, a restauração é urgente para que a cidade preserve sua memória e identidade cultural. Ele argumenta que, além de ser um bem arquitetônico, a Casa de Caridade representa a herança de Manoel Gonçalves, um importante benfeitor da cidade, cuja memória deve ser preservada.

Comparação das Posições:

As opiniões variam bastante entre os personagens. De um lado, temos os que defendem ativamente a preservação do prédio, que ressaltam a importância histórica, arquitetônica e cultural do edifício. Esses personagens acreditam que a recuperação é viável e essencial para a preservação da memória de Itaúna.

Por outro lado, temos aqueles que, embora reconheçam a importância histórica do prédio, priorizam questões práticas e de desenvolvimento da cidade. Eles consideram que a prioridade deve ser o investimento em novas estruturas que atendam melhor às necessidades da população, como a ampliação do hospital e novas instalações universitárias. Para eles, o estado avançado de deterioração do prédio e a falta de recursos disponíveis tornam sua preservação inviável.

A reportagem ilustra um dilema comum em muitas cidades: o equilíbrio entre a preservação do patrimônio histórico e o desenvolvimento urbano. Em Itaúna, o debate de 1982 sobre a Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira mostra as tensões entre memória, cultura e progresso, refletidas nas diferentes visões dos personagens envolvidos.

Nota

Agora, em 2024, mais de quarenta anos após o embate sobre a preservação e demolição da Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira, o edifício ainda "permanece de pé", mesmo com avisos de “risco iminente de desabamento”. Até o presente momento, o monumento histórico não foi demolido, o que sugere que, na época, a preocupação com a preservação prevaleceu. Acredita-se que, naquela ocasião, tenha surgido um sentimento coletivo de esperança de que, em algum momento, o prédio fosse restaurado, mantendo viva a memória e a história que ele representa para a cidade de Itaúna.

PRESERVAR X DEMOLIR PARTE II 


Referências:

Organização, arte e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa: Jornal Estado de Minas, 1982.

Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira: Disponível em:

https://itaunacaridade.blogspot.com/2014/12/dilema-preservar.html  

https://itaunacaridade.blogspot.com/2014/12/blog-post_17.html

Risco iminente: 

https://itaunaemdecadas.blogspot.com/2024/01/risco-iminente.html

Imagem: Meramente ilustrativa 

domingo, outubro 13, 2024

DIONAS BARBEIRO

Dionas Barbeiro...

o capa preta

"Somos todos companheiros a beber o ano inteiro se és covarde, saia da mesa que a nossa empresa requer valor"... 

"Primeira bateria, vira, vira, vira, vira, vira ,vira, virou. Segunda bateria"... 

        A farra estava começando a toda naquele início de noite de sábado, no bar do “Tapa na Paca”, lá na Rua João de Cerqueira Lima em frente a antiga agência dos correios.

        - “Ô Tapa, traz mais uma cerveja” – exclamava o Zé do Desy, batendo o copo vazio sobre o velho balcão de madeira.

         - “Vê se passa um pano na mesa” – emendava o Ronaldo Noguerinha, acompanhado do Zé de Paula, Moacir Mariano e o Zé da Telefônica, “pois hoje tem baile no Clube União e daqui nós vamos diretos pro baile e depois prá zona boêmia, visitar as casas de rapariga, né Zé?

           Já passava das nove e meia da noite, o bar estava lotado, o vira, vira sendo cantarolado a plenos pulmões, quando ele chegou.  Em pé na porta do bar chamava a atenção de todos pela elegância do corte do terno preto risca de giz de casimira inglesa e da gravata listrada de branco e amarelo com um nó tipo cabeça de touro  sobressaindo sobre a camisa de seda branca.A vasta e negra cabeleira reluzia mostrando excesso de brilhantina.

           Deu um passo em direção ao balcão e ao solicitar um “rabo de galo” no capricho, abriu aquele sorriso generoso onde os alvos dentes se destacavam sob o bigode fino e bem aparado. Um figurão!

            - “Boa noite rapaziada” – falou o Dionas para o pessoal do bar.

            Barbeiro dos mais conceituados na cidade, com uma vasta e seleta clientela, sempre se sobressaia  pelo modo elegante  de se vestir. Ainda solteirão, apesar dos 59 anos, tinha um físico de atleta, sem barriga, rugas e papadas. O Dionas sabia se cuidar e era do conhecimento de todos esta sua grande vaidade.

            - “Olha só a elegância do Dionas, gente! – exclamou o Zé da telefônica.

            -“Taí o maior atleta de Itaúna” – interferiu o Zé do Desy – “Deve fazer ginástica todos os dias. Vai viver uns cem anos – “voltou a exclamar, ao mesmo tempo que caminhava a passos largos na direção ao recém chegado. – “Que isto, Zé! Bondade sua. Vocês é que são jovens, estão na flor da idade e sabem aproveitar bem a vida” – exclamou o recém chegado com um largo sorriso de satisfação.

            -“É ou não é um atleta pessoal ? Confessa Dionas! Diz pro pessoal qual é o segredo deste tipo físico de toureiro espanhol e esta aparência de menino? É ou não é ginástica todos os dias ?”

            -“ Bem, senhor Zé do Dezy” – exclamou o vaidoso Dionas já estufando o peito e demonstrando um ar de segurança e orgulho, mas se recusando  a se sentar  para não amarrotar o vinco  do terno novo que ia estrear logo mais  no baile do Clube União Operária

            - “A gente se cuida um pouco, faz uma ginástica para não perder a forma, mas você está exagerando meu jovem!”

            - “Mostra pró pessoal, Dionas” – falou o sacana do Zé do Desy, já se preparando para aprontar mais uma das suas – Faz uma demonstração dos tipos de ginástica que você faz que o pessoal quer aprender”.

                 Inicialmente, meio ressabiado, e trajando aquele belíssimo terno, o “Capa Preta”, apelido pelo qual era mais conhecido pelos boêmios da cidade, tirou o paletó, colocando-o cuidadosamente sobre uma cadeira e iniciou uma série de exercícios para delírio do pessoal que esta hora lotava o bar do Tapa na Paca.

                Já passava das dez e meia da noite e no apinhado bar, os olhares de todos se convergiam para aquele senhor de 59 anos, já sem camisa, meio suado, fazendo corrida simulada, sob o comando da voz estridente do Zé do Desy.

                  -“É um recorde , doze mil e oitocentas passadas em cinco minutos e vinte e oito segundos.”

              Quando o relógio da matriz bateu meia noite e meia, o Dionas estava só de cueca samba-canção, de bruços sob o chão forrado com papel de pão, suadinho, suadinho, descabelado e pálido, fazendo flexões  e o bar inteiro num som uníssono, contando - “Setenta e uma , setenta e duas, setenta e três, setenta e quatro,setenta e cinco....”

             Dizem que naquela noite, a sua ausência foi muito sentida no Clube União Operária, onde era um destacado pé de valsa, bem como no Bar do Sissi na zona boêmia, onde era um assíduo frequentador das casas de rapariga e que a sua barbearia só reabriu na quarta-feira à tarde quando foi visto descendo de um táxi, com ajuda do Júlio Magalhães............. 


Referências:

Texto/causo: Sérgio Tarefa 

Organização e arte: Charles Aquino

quarta-feira, outubro 09, 2024

O MAESTRO DA ALMA

A crônica da Professora Nise Campos, publicada em 1964, é uma homenagem ao violinista, pianista, compositor, arranjador musical e regente Coral, professor Jesus Ferreira e ao Coro Orfeônico do Instituto São Rafael de Belo Horizonte/MG. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a percepção humana, o talento artístico e a capacidade de superação. A crônica oferece uma análise poética e emotiva sobre a apresentação do coro na cidade de Itaúna, destacando o impacto do legado do professor Jesus Ferreira tanto para a comunidade local quanto para o cenário cultural mais amplo.

Enxergar além dos olhos — a crônica começa com uma observação sobre o fato de que, apesar de serem fisicamente cegos, os alunos de Jesus Ferreira, sob sua liderança, são descritos como pessoas que “enxergam mais do que nós que só vemos o que nos impressiona a retina”. Nise Campos ressalta que a cegueira física dos alunos do Instituto São Rafael é superada por uma visão interior profunda. Jesus Ferreira, sendo cego, é visto como alguém dotado de uma "luz intensa" que transcende a capacidade de enxergar com os olhos físicos, iluminando sua inteligência, moralidade e sensibilidade artística.

Essa visão reforça a ideia de que a verdadeira percepção vai além dos sentidos físicos e se baseia em uma conexão mais profunda com a alma e o coração. Ao dizer que o professor Jesus e seus alunos veem de maneira mais clara que aqueles que possuem visão física, Nise Campos nos desafia a reconsiderar nossos conceitos sobre o que significa "ver". É uma crítica implícita à superficialidade com que muitas vezes lidamos com as aparências e uma celebração da profundidade espiritual e artística que os cegos possuem.

O artista e a sua terra natal — Nise Campos também destaca o talento excepcional de Jesus Ferreira, referindo-se a ele como “artista e poeta” que vibra a alma ao reger seu coro e ao tocar seu violino. A autora reconhece o domínio de Jesus Ferreira sobre a música, assim como seu profundo amor por Itaúna, sua cidade natal. Isso fica evidente quando ela menciona que ele fala com sinceridade sobre Itaúna, mostrando que, mesmo com suas conquistas e viagens, sua ligação emocional com sua terra natal permanece forte.

Esse aspecto da crônica ilustra como o professor Jesus Ferreira, apesar de suas conquistas nacionais e internacionais, nunca perdeu suas raízes. Ele é descrito como alguém que projeta o nome de Itaúna no cenário cultural, elevando o prestígio da cidade ao mesmo tempo em que traz reconhecimento ao Instituto São Rafael e à música brasileira. A cidade, no entanto, é retratada de forma ambígua, como se não tivesse aplaudido o suficiente o talento e a dedicação de seu filho ilustre.

A apresentação e a dimensão transcendental da arte — a apresentação do Coro Orfeônico do Instituto São Rafael é descrita de maneira profundamente poética, transportando o leitor para um mundo de “luminosa catedral de sonhos” e “uma floresta encantada”. A autora não descreve de forma técnica a performance, mas captura a sensação mágica que ela provocou no público, como se os cegos tivessem trazido uma luz espiritual para a cidade de Itaúna.

Essa escolha de palavras sugere que a música tem o poder de transcender as limitações físicas e de criar experiências que tocam a alma. Quando Nise Campos menciona que “fecharam-se as janelas de seus olhos, Jesus, mas as portas de sua alma abriram-se para novas e desconhecidas claridades que só os cegos podem ver”, ela eleva a música a um espaço quase místico, onde aqueles que não têm visão física são, paradoxalmente, capazes de acessar uma compreensão mais profunda do universo.

O legado do professor Jesus Ferreira — a crônica termina com uma nota de esperança e reconhecimento, destacando o legado de Jesus Ferreira. Ao afirmar que "seus olhos que já foram lâmpadas que se queimaram [...] voltarão de novo, um dia, a ver fulgurar o sol e as estrelas", Nise Campos sugere que, embora ele não possa ver com os olhos físicos, seu legado continuará a brilhar e será eternamente reconhecido. A imagem de "velas e círios que arderam" simboliza a dedicação de sua vida à música e à educação, e que, mesmo sem a visão física, ele deixou uma marca indelével no mundo.

A crônica da professora Nise Campos, além de ser uma homenagem ao professor Jesus Ferreira, destaca o impacto profundo que ele teve em sua comunidade e no cenário musical. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a percepção e a superação, desafiando as noções comuns de deficiência e exaltando a capacidade do espírito humano de enxergar além das limitações físicas. O amor de Jesus Ferreira por sua terra natal, Itaúna, e seu compromisso com a música e a educação são evidentes, e seu legado continua a inspirar, tanto em sua cidade quanto além. 

 

BRILHANTE FESTIVAL

O Coro Orfeônico do Instituto São Rafael exibiu-se nesta cidade, conforme noticiámos dia 15 último. Não vamos descrever a beleza dessa exibição, que a Dona Adília Lima nos proporcionou. Vamos publicar, apenas o que a Professora Dona Nise Campos escreveu. E, na sua singela crônica ela disse tudo.

 Piu (Jornalista da Folha do Oeste)

 

Crônica da Professora Nise Campos — 1964

Os cegos que veem. Palavras a Jesus Ferreira; dizem todos que você é cego. Que são cegos os cantores e musicistas que você trouxe do instituto São Rafael e que são alunos seus.

Eu, porém, digo que vocês enxergam mais do nós que só vemos o que nos impressiona a retina. Sei que aquelas crianças, rapazes e mocinhas veem interiormente, tudo o que lhes fala a alma e ao coração e que você, meu prezado ex-aluno hoje, posso dizer meu querido mestre, tem dentro dos olhos apagados, uma luz tão intensa, que nos deslumbraria a todos, se nos fosse dado ver. E essa luz vem de sua portentosa inteligência, do seu gigantesco aprumo moral e intelectual.

Você é um artista, na lídima acepção do termo, artista e poeta, vibra a alma nos gestos, quando você rege o seu coro; o sentimento mais alto dita-lhe palavras e a gente sente sua sinceridade quando você fala de Itaúna. No seu violino você tange as suas mágoas e a sua ternura, você sobre por não poder ver normalmente como nós. Mas o verbo ver que você sabe sentir e conjugar espiritualmente, sem uma força de expressão transcendental, que poucos sabem entender.

O seu recital foi magnífico. Pareceu-me estar numa luminosa catedral de sonhos. Ouvindo os seus rouxinóis, sabiás e patativas, transformou-se o ambiente numa floresta encantada. E todos se calaram porque agora iriam canta todos os uirapurus da Serra. Fecharam-se as janelas de seus olhos, Jesus, mas as portas de sua alma abriram-se para novas e desconhecidas claridades que sós os cegos podem ver.

Você, membro da Academia de Música de São Paulo, está projetando o nome do Instituto São Rafael no cenário cultural do país e do exterior e, por conseguinte o nome de seu Estado e de sua gente. Itaúna não soube aplaudi-los como o merecem. Sua terra tem agora a mais um nome a inscrever no Pantheon de glória. E eu lhes digo, nessas mal alinhavadas linhas, que seus olhos que já foram lâmpadas que se queimaram e velas e círios que arderam, voltarão de novo, um dia, a ver fulgurar o sol e as estrelas...

 Saiba mais: 

MEMORÁVEL PROFESSOR ITAUNENSE

Referências:

Organização, arte e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa: Jornal Folha do Oeste, Ed. 516, p.1,3. 1964, Itaúna/MG.