Travessia de Fé: de Itaúna a Roma a bordo do Vapor Duque de Caxias (1950)
Em 1950, o Ano Santo proclamado pelo Papa Pio XII mobilizou milhões de católicos em todo o mundo. No Brasil, a celebração foi marcada por um feito inédito: a organização da Primeira Peregrinação Oficial Popular a Roma, coordenada por monsenhor Helder Câmara.
A iniciativa combinou espiritualidade, articulação
política, ousadia logística e profunda sensibilidade pastoral. Este artigo
analisa os principais aspectos dessa jornada marcante, destacando sua dimensão
religiosa, social e política, bem como a atuação carismática de Helder Câmara.
Embora já fosse
uma figura nacional da Igreja e da Ação Católica, Helder Câmara ainda não havia
feito nenhuma viagem internacional. O desejo de conhecer Roma e o Vaticano se
concretizou quando foi convidado a colaborar na organização da peregrinação
brasileira ao Ano Santo.
Em Itaúna, Minas Gerais, os “sinos”
da Igreja da Matriz de Sant’Anna repicaram mais altos do que nunca. Era a manhã
de 27 de abril, e a cidade vivia um momento de fervor e despedida. No altar
principal, o Padre José Ferreira Neto — Padre Zé Neto — celebrava a missa de
envio dos peregrinos que partiriam rumo a Roma para o Ano Santo proclamado pelo
Papa Pio XII.
Ao seu lado, as senhoritas
Ivolina Gonçalves, Maria Jardim Guimarães, Divina Coutinho, Angélica Lenti,
Lídia Braz e o Padre Waldemar Teixeira, da vizinha Maravilhas. A cerimônia foi
um misto de emoção, lágrimas e esperança. A pequena Itaúna, de alma interiorana,
preparava-se para cruzar o Atlântico e chegar ao coração da cristandade.
Após a missa, a
caravana embarcou em um micro-ônibus especial rumo a Belo Horizonte e, de lá,
tomou um voo da Aerovias para o Rio de Janeiro — aventura inédita para a
maioria. No porto, aguardavam centenas de fiéis vindos de todo o país. Era a
Primeira Peregrinação Oficial Popular a Roma, organizada por Dom Helder Câmara,
figura em ascensão na Igreja brasileira.
Com apoio de dom Rosalvo Costa Rego e intervenção direta junto ao presidente Eurico Gaspar Dutra, obteve-se o navio-escola Duque de Caxias da Marinha brasileira. Além da embarcação, o governo isentou os fiéis da exigência de passaporte e concedeu licença aos funcionários públicos que participassem da peregrinação.
O Duque de Caxias, de 135 metros de comprimento e mais de 6.900 toneladas, já tinha percorrido os mares da guerra. Construído nos Estados Unidos em 1918 sob o nome Orizaba, transportara tropas nas duas Guerras Mundiais.
Em 1945, chegou
ao Brasil e trouxe de volta os soldados da Força Expedicionária Brasileira
(FEB). Dois anos depois, em 1947, foi cenário de uma tragédia: um incêndio
vitimou 27 pessoas. Reformado, renasceu com um novo destino — de navio de
guerra, tornou-se navio de paz, e, em 1950, seria palco da maior peregrinação
religiosa do país.
Na manhã de 30 de
abril, o cais do Rio de Janeiro estava tomado por familiares e curiosos. O sol
iluminava a Baía da Guanabara, e a multidão agitava lenços e bandeirinhas. O
apito grave do Duque de Caxias ecoou sobre as águas, e a embarcação começou a
se mover. Dom Helder, emocionado, dirigiu-se aos peregrinos:
“Não é uma viagem
de turismo. É uma peregrinação de fé. Cada sacrifício será parte da bênção.”
O navio partiu
lentamente, levando a bordo mais de 1.300 peregrinos — embora sua capacidade
fosse de 800. Lá estavam padres, freiras, idosos, jovens e famílias inteiras.
Entre eles, o grupo de Itaúna, guiado pela firmeza e serenidade do Padre Zé
Neto.
Durante os 22
dias de travessia, o Duque de Caxias se transformou em uma cidade flutuante. As
cabines tornaram-se capelas, o convés virou espaço de procissões e orações. O
enjoo do mar e o calor sufocante dos camarotes foram vencidos pela alegria dos
hinos e pela fé compartilhada confortava os peregrinos adoecidos.
Outro episódio
curioso marcou a viagem: diante das dificuldades enfrentadas pelas enfermeiras,
foi autorizado o uso de calças compridas pelas mulheres, até então proibido no
regulamento do navio. A decisão foi recebida com aplausos — símbolo da fé que
se renova sem perder a essência.
Roma:
o encontro com o Papa
O Duque de Caxias
fez paradas em Salvador e Recife, e após sete dias de mar aberto, os peregrinos
avistaram a ilha de Tenerife, nas Canárias — “terra natal do Padre Anchieta”,
como escreveu Padre Zé Neto. No dia 19 de maio, chegaram à cidade italiana de Nápoles
e, dois dias depois, seguiram rumo a São João de Latrão, em Roma.
O ápice da
peregrinação aconteceu em 24 de maio de 1950, quando os brasileiros foram
recebidos em audiência pelo Papa Pio XII, na Basílica de São Pedro. O relato no
Livro Tombo de Itaúna é comovente:
Era a voz do
Padre José Ferreira Neto, o vigário de Itaúna, que registrava com suas próprias
palavras o instante em que tocou as mãos do Papa — gesto que uniria para sempre
a fé de um povo mineiro à história da Igreja Universal.
A jornada
prosseguiu por Assis, Florença e Pisa, com paradas de oração e contemplação. Em
Pistóia, os peregrinos visitaram o Cemitério Militar Brasileiro, onde
repousavam os soldados da FEB — o mesmo exército que o Duque de Caxias havia
transportado anos antes. Na volta, o navio fez escalas em Marselha, Lisboa,
Fátima, Sintra, Cascais e Estoril, unindo espiritualidade e cultura.
Dom Helder, que
retornou antes ao Brasil de avião, deixara organizado um segundo grupo para
setembro daquele ano, que viajaria no navio Geni — a chamada “Segunda
Peregrinação”. Assim nasceram dois nomes simbólicos: os duquistas, do Duque de
Caxias, e os genianos, do Geni.
O
retorno
O grupo itaunense
chegou a Itaúna em 5 de julho de 1950, após mais de dois meses de viagem. A
recepção foi apoteótica. O Padre Silvério organizou uma grande celebração. O
prefeito Dr. Antônio de Lima Coutinho, o Dr. José Luiz Guimarães e o jovem
Guaracy Nogueira discursaram na porta da Matriz, e tudo foi transmitido ao vivo
pela recém-inaugurada Rádio Clube de Itaúna (ZY-Z4), que seria oficialmente
inaugurada e abençoada dias depois, em 9 de julho.
A Peregrinação de
1950 marcou para sempre a história religiosa de Itaúna. Foi a união entre a fé
simples do interior e a universalidade da Igreja. Para o Brasil, foi o símbolo
de um tempo novo: a espiritualidade popular ganhava força, e Dom Helder Câmara,
inspirado pela experiência, daria origem à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), fundada em 1952.
O Vapor Duque de
Caxias, que um dia transportara soldados e feridos, transformou-se em navio de
oração. E o gesto de Padre José Ferreira Neto, ao tocar as mãos do Papa Pio
XII, ficou para sempre gravado como o símbolo máximo dessa travessia.
Mais de sete
décadas depois, as páginas do Livro Tombo II ainda guardam o perfume do
incenso daquela missa de envio. E quando se fala em Itaúna e Roma, é importante
recordar de que um dia o mar uniu Minas à Cidade Eterna — e que um sacerdote
levou consigo, nas mãos estendidas ao Papa, a fé viva de todo um povo.
Referências:
Realização e
pesquisa: Charles Aquino
Dom Hélder
Câmara: o profeta da paz, Walter Praxedes, Nelson Piletti. Editora Contexto,
2009, p. 145-151.
Livro do Tombo
II, 1950, p. 9. Paróquia Santana de Itaúna/MG.
NAVAL — Navios de
Guerra Brasileiros. NGB – Duque de Caxias (D-068). Disponível em: https://www.naval.com.br/ngb/D/D068/D068.htm. Acesso em: 24
out. 2025.
MARINHA DO
BRASIL. Duque de Caxias : navio-auxiliar/navio-escola (31 jul. 1945-16 maio
1958). Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da
Marinha, s.d. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/dphdm/sites/www.marinha.mil.br.dphdm/files/DuquedeCaxiasNavioAuxiliarNavioEscola1945-1958.pdf.
Acesso em: 24 out. 2025.
https://orcid.org/0009-0002-8056-8407

