segunda-feira, dezembro 15, 2025

ITAÚNA A ROMA (1950)

Travessia de Fé: de Itaúna a Roma a bordo do Vapor Duque de Caxias (1950)

Em 1950, o Ano Santo proclamado pelo Papa Pio XII mobilizou milhões de católicos em todo o mundo. No Brasil, a celebração foi marcada por um feito inédito: a organização da Primeira Peregrinação Oficial Popular a Roma, coordenada por monsenhor Helder Câmara

A iniciativa combinou espiritualidade, articulação política, ousadia logística e profunda sensibilidade pastoral. Este artigo analisa os principais aspectos dessa jornada marcante, destacando sua dimensão religiosa, social e política, bem como a atuação carismática de Helder Câmara.

Embora já fosse uma figura nacional da Igreja e da Ação Católica, Helder Câmara ainda não havia feito nenhuma viagem internacional. O desejo de conhecer Roma e o Vaticano se concretizou quando foi convidado a colaborar na organização da peregrinação brasileira ao Ano Santo.

Em Itaúna, Minas Gerais, os “sinos” da Igreja da Matriz de Sant’Anna repicaram mais altos do que nunca. Era a manhã de 27 de abril, e a cidade vivia um momento de fervor e despedida. No altar principal, o Padre José Ferreira NetoPadre Zé Neto — celebrava a missa de envio dos peregrinos que partiriam rumo a Roma para o Ano Santo proclamado pelo Papa Pio XII.

Ao seu lado, as senhoritas Ivolina Gonçalves, Maria Jardim Guimarães, Divina Coutinho, Angélica Lenti, Lídia Braz e o Padre Waldemar Teixeira, da vizinha Maravilhas. A cerimônia foi um misto de emoção, lágrimas e esperança. A pequena Itaúna, de alma interiorana, preparava-se para cruzar o Atlântico e chegar ao coração da cristandade.

Após a missa, a caravana embarcou em um micro-ônibus especial rumo a Belo Horizonte e, de lá, tomou um voo da Aerovias para o Rio de Janeiro — aventura inédita para a maioria. No porto, aguardavam centenas de fiéis vindos de todo o país. Era a Primeira Peregrinação Oficial Popular a Roma, organizada por Dom Helder Câmara, figura em ascensão na Igreja brasileira.

Com apoio de dom Rosalvo Costa Rego e intervenção direta junto ao presidente Eurico Gaspar Dutra, obteve-se o navio-escola Duque de Caxias da Marinha brasileira. Além da embarcação, o governo isentou os fiéis da exigência de passaporte e concedeu licença aos funcionários públicos que participassem da peregrinação. 

O Duque de Caxias, de 135 metros de comprimento e mais de 6.900 toneladas, já tinha percorrido os mares da guerra. Construído nos Estados Unidos em 1918 sob o nome Orizaba, transportara tropas nas duas Guerras Mundiais

Em 1945, chegou ao Brasil e trouxe de volta os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Dois anos depois, em 1947, foi cenário de uma tragédia: um incêndio vitimou 27 pessoas. Reformado, renasceu com um novo destino — de navio de guerra, tornou-se navio de paz, e, em 1950, seria palco da maior peregrinação religiosa do país.

Na manhã de 30 de abril, o cais do Rio de Janeiro estava tomado por familiares e curiosos. O sol iluminava a Baía da Guanabara, e a multidão agitava lenços e bandeirinhas. O apito grave do Duque de Caxias ecoou sobre as águas, e a embarcação começou a se mover. Dom Helder, emocionado, dirigiu-se aos peregrinos:

“Não é uma viagem de turismo. É uma peregrinação de fé. Cada sacrifício será parte da bênção.”

O navio partiu lentamente, levando a bordo mais de 1.300 peregrinos — embora sua capacidade fosse de 800. Lá estavam padres, freiras, idosos, jovens e famílias inteiras. Entre eles, o grupo de Itaúna, guiado pela firmeza e serenidade do Padre Zé Neto.

Durante os 22 dias de travessia, o Duque de Caxias se transformou em uma cidade flutuante. As cabines tornaram-se capelas, o convés virou espaço de procissões e orações. O enjoo do mar e o calor sufocante dos camarotes foram vencidos pela alegria dos hinos e pela fé compartilhada confortava os peregrinos adoecidos.

Outro episódio curioso marcou a viagem: diante das dificuldades enfrentadas pelas enfermeiras, foi autorizado o uso de calças compridas pelas mulheres, até então proibido no regulamento do navio. A decisão foi recebida com aplausos — símbolo da fé que se renova sem perder a essência.

Roma: o encontro com o Papa

O Duque de Caxias fez paradas em Salvador e Recife, e após sete dias de mar aberto, os peregrinos avistaram a ilha de Tenerife, nas Canárias — “terra natal do Padre Anchieta”, como escreveu Padre Zé Neto. No dia 19 de maio, chegaram à cidade italiana de Nápoles e, dois dias depois, seguiram rumo a São João de Latrão, em Roma.

O ápice da peregrinação aconteceu em 24 de maio de 1950, quando os brasileiros foram recebidos em audiência pelo Papa Pio XII, na Basílica de São Pedro. O relato no Livro Tombo de Itaúna é comovente:

“Foi um momento de grande comoção quando apareceu no fundo da Basílica a figura cândida de Pio XII. Falou diretamente aos brasileiros em português. Tive a felicidade de tocar em sua mão sagrada.”

Era a voz do Padre José Ferreira Neto, o vigário de Itaúna, que registrava com suas próprias palavras o instante em que tocou as mãos do Papa — gesto que uniria para sempre a fé de um povo mineiro à história da Igreja Universal.

A jornada prosseguiu por Assis, Florença e Pisa, com paradas de oração e contemplação. Em Pistóia, os peregrinos visitaram o Cemitério Militar Brasileiro, onde repousavam os soldados da FEB — o mesmo exército que o Duque de Caxias havia transportado anos antes. Na volta, o navio fez escalas em Marselha, Lisboa, Fátima, Sintra, Cascais e Estoril, unindo espiritualidade e cultura.

Dom Helder, que retornou antes ao Brasil de avião, deixara organizado um segundo grupo para setembro daquele ano, que viajaria no navio Geni — a chamada “Segunda Peregrinação”. Assim nasceram dois nomes simbólicos: os duquistas, do Duque de Caxias, e os genianos, do Geni.

O retorno

O grupo itaunense chegou a Itaúna em 5 de julho de 1950, após mais de dois meses de viagem. A recepção foi apoteótica. O Padre Silvério organizou uma grande celebração. O prefeito Dr. Antônio de Lima Coutinho, o Dr. José Luiz Guimarães e o jovem Guaracy Nogueira discursaram na porta da Matriz, e tudo foi transmitido ao vivo pela recém-inaugurada Rádio Clube de Itaúna (ZY-Z4), que seria oficialmente inaugurada e abençoada dias depois, em 9 de julho.

“Itaúna sentiu orgulho dos filhos que cruzaram o oceano pela fé”, escreveu Padre Zé Neto no encerramento do registro.

A Peregrinação de 1950 marcou para sempre a história religiosa de Itaúna. Foi a união entre a fé simples do interior e a universalidade da Igreja. Para o Brasil, foi o símbolo de um tempo novo: a espiritualidade popular ganhava força, e Dom Helder Câmara, inspirado pela experiência, daria origem à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundada em 1952.

O Vapor Duque de Caxias, que um dia transportara soldados e feridos, transformou-se em navio de oração. E o gesto de Padre José Ferreira Neto, ao tocar as mãos do Papa Pio XII, ficou para sempre gravado como o símbolo máximo dessa travessia.

Mais de sete décadas depois, as páginas do Livro Tombo II ainda guardam o perfume do incenso daquela missa de envio. E quando se fala em Itaúna e Roma, é importante recordar de que um dia o mar uniu Minas à Cidade Eterna — e que um sacerdote levou consigo, nas mãos estendidas ao Papa, a fé viva de todo um povo.




Referências:

Realização e pesquisa: Charles Aquino

Dom Hélder Câmara: o profeta da paz, Walter Praxedes, Nelson Piletti. Editora Contexto, 2009, p. 145-151.

Livro do Tombo II, 1950,  p. 9. Paróquia Santana de Itaúna/MG.

NAVAL — Navios de Guerra Brasileiros. NGB – Duque de Caxias (D-068). Disponível em: https://www.naval.com.br/ngb/D/D068/D068.htm. Acesso em: 24 out. 2025.

MARINHA DO BRASIL. Duque de Caxias : navio-auxiliar/navio-escola (31 jul. 1945-16 maio 1958). Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, s.d. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/dphdm/sites/www.marinha.mil.br.dphdm/files/DuquedeCaxiasNavioAuxiliarNavioEscola1945-1958.pdf. Acesso em: 24 out. 2025.