quarta-feira, agosto 29, 2012

LEITE CRIÔLO




Amilcar Martins Filho, na sede do ICAM
 “Apesar de sua importância, a publicação  ficou completamente esquecida”


Rebento bastardo do modernismo, periódico Leite Criôlo ganha reedição.
Reeditado, o periódico leite criôlo revela como o racismo ainda estava presente no pensamento intelectual dos anos 20.

O s anos 20 do século passado fo­­ram decisivos para a formação da identidade cultural brasileira. No início daquela década feérica, um grupo de artistas causou furor no Teatro Municipal de São Paulo com a Semana de Arte Moderna de 22. Era o começo do desmoronamento do conservadorismo na arte e nas ideias, àquela altura consideradas ultrapassadas para explicar a nação. Mas o velho edifício não iria ao chão da noite para o dia. Foi tombando durante todo o decênio até se tornar um monte de entulho esquecido. E Minas Gerais teve um papel determinante nesse processo.

Foi em Belo Horizonte, em 1925 e 1926, que um jovem e brilhante poeta, Carlos Drummond de Andrade, juntou alguns amigos igualmente talentosos e ateou fogo na paróquia passadista, com o lançamento de A Revista. Outras publicações pipocaram na capital e no interior, a exemplo da Verde, de Cataguases. Algumas, como elas, ingressaram no chamado cânone da arte moderna. Outras afundaram em um injusto esquecimento. É o caso do leite criôlo (grafada assim mesmo, em minúsculas e com circunflexo).

 Agora, felizmente, ela reaparece em uma edição fac-símile pelas mãos do Instituto Amilcar Martins (Icam). O lançamento será no dia 3 de dezembro, às 19 horas, na Academia Mineira de Letras, onde haverá uma homenagem ao sociólogo Fernando Correia Dias, autor do prefácio da reedição, morto aos 86 anos, em setembro. Com 152 páginas, vai custar 60 reais e estará à venda em algumas livrarias. “Apesar da importância da publicação, ela estava completamente esquecida”, diz Amilcar Martins Filho, diretor do Icam.

A leite criôlo não era exatamente uma revista. Com exceção do primeiro número, lançado como um tabloide e distribuído gratuitamente nas ruas no dia 13 de maio de 1929, em comemoração aos quarenta anos da abolição da escravatura, as dezoito edições seguintes circularam aos domingos apertadas em menos de uma página no suplemento literário do jornal Estado de Minas.

O raquitismo era compensado pelo número de colaborações que chegavam de várias cidades do Brasil. Publicaram lá autores como Cyro dos Anjos, João Alphonsus, Marques Rebelo e o próprio Drummond, que colaborou três vezes, em uma delas sob o pseudônimo de Antonio Crispim. A folha era dirigida por três jovens literatos, João Dornas Filho, Guilhermino César e Achilles Vivacqua.

Com um time desses, como explicar a desatenção de estudiosos a leite criôlo? No elucidativo texto crítico que acompanha a reedição, o professor Miguel de Ávila Duarte, um dos poucos acadêmicos a estudar a publicação, lembra que as ideias veiculadas pelo periódico se chocavam com os valores consagrados pelo modernismo. A principal delas dizia respeito ao racismo.

Como sugeria no próprio título, leite criôlo procurava, à maneira como os modernistas paulistas fizeram com o índio, agregar a cultura africana à formação da nossa identidade. Aí esbarrava no pensamento dominante do Brasil naquela época. Era quase unânime considerar o negro inferior e associá-lo a “males da nacionalidade” como luxúria, cobiça, tristeza e preguiça.

“É bom lembrar que a eugenia, a suposta ciência do melhoramento genético da humanidade, era ainda amplamente considerada uma especialidade científica legítima”, afirma Duarte. Em resumo, leite criôlo não negava a importância do legado africano, mas acreditava que uma miscigenação da população brasileira eliminaria os supostos defeitos que ele carregava. “É necessário enfrentar o triste passado racista da intelectualidade brasileira, ” diz Duarte.


Referência:
Texto: André Nigri -  28 de novembro de 2012 -  Revista Veja BH
Organização e pesquisa: Charles Aquino