Amilcar
Martins Filho, na sede do ICAM
“Apesar de sua importância, a publicação ficou
completamente esquecida”
Rebento
bastardo do modernismo, periódico Leite Criôlo ganha reedição.
Reeditado,
o periódico leite criôlo revela como o racismo ainda estava presente no
pensamento intelectual dos anos 20.
O
s anos 20 do século passado foram decisivos para a formação da identidade
cultural brasileira. No início daquela década feérica, um grupo de artistas
causou furor no Teatro Municipal de São Paulo com a Semana de Arte Moderna de
22. Era o começo do desmoronamento do conservadorismo na arte e nas ideias,
àquela altura consideradas ultrapassadas para explicar a nação. Mas o velho
edifício não iria ao chão da noite para o dia. Foi tombando durante todo o
decênio até se tornar um monte de entulho esquecido. E Minas Gerais teve um
papel determinante nesse processo.
Foi
em Belo Horizonte, em 1925 e 1926, que um jovem e brilhante poeta, Carlos
Drummond de Andrade, juntou alguns amigos igualmente talentosos e ateou fogo na
paróquia passadista, com o lançamento de A Revista. Outras publicações
pipocaram na capital e no interior, a exemplo da Verde, de Cataguases. Algumas,
como elas, ingressaram no chamado cânone da arte moderna. Outras afundaram em
um injusto esquecimento. É o caso do leite criôlo (grafada assim mesmo, em
minúsculas e com circunflexo).
Agora, felizmente, ela reaparece em uma edição
fac-símile pelas mãos do Instituto Amilcar Martins (Icam). O lançamento será no
dia 3 de dezembro, às 19 horas, na Academia Mineira de Letras, onde haverá uma
homenagem ao sociólogo Fernando Correia Dias, autor do prefácio da reedição,
morto aos 86 anos, em setembro. Com 152 páginas, vai custar 60 reais e estará à
venda em algumas livrarias. “Apesar da importância da publicação, ela estava
completamente esquecida”, diz Amilcar Martins Filho, diretor do Icam.
A
leite criôlo não era exatamente uma revista. Com exceção do primeiro número,
lançado como um tabloide e distribuído gratuitamente nas ruas no dia 13 de maio
de 1929, em comemoração aos quarenta anos da abolição da escravatura, as
dezoito edições seguintes circularam aos domingos apertadas em menos de uma
página no suplemento literário do jornal Estado de Minas.
O
raquitismo era compensado pelo número de colaborações que chegavam de várias
cidades do Brasil. Publicaram lá autores como Cyro dos Anjos, João Alphonsus,
Marques Rebelo e o próprio Drummond, que colaborou três vezes, em uma delas sob
o pseudônimo de Antonio Crispim. A folha era dirigida por três jovens
literatos, João Dornas Filho, Guilhermino César e Achilles Vivacqua.
Com
um time desses, como explicar a desatenção de estudiosos a leite criôlo? No
elucidativo texto crítico que acompanha a reedição, o professor Miguel de Ávila
Duarte, um dos poucos acadêmicos a estudar a publicação, lembra que as ideias
veiculadas pelo periódico se chocavam com os valores consagrados pelo
modernismo. A principal delas dizia respeito ao racismo.
Como
sugeria no próprio título, leite criôlo procurava, à maneira como os
modernistas paulistas fizeram com o índio, agregar a cultura africana à
formação da nossa identidade. Aí esbarrava no pensamento dominante do Brasil
naquela época. Era quase unânime considerar o negro inferior e associá-lo a
“males da nacionalidade” como luxúria, cobiça, tristeza e preguiça.
“É
bom lembrar que a eugenia, a suposta ciência do melhoramento genético da
humanidade, era ainda amplamente considerada uma especialidade científica
legítima”, afirma Duarte. Em resumo, leite criôlo não negava a importância do
legado africano, mas acreditava que uma miscigenação da população brasileira
eliminaria os supostos defeitos que ele carregava. “É necessário enfrentar o
triste passado racista da intelectualidade brasileira, ” diz Duarte.
Referência:
Texto:
André Nigri - 28 de novembro de 2012
- Revista Veja BH
Organização e pesquisa: Charles Aquino