Discurso de recepção 1948
Pronunciado ao tomar
possa na Academia Mineira de Letras (AML)
substituindo Carlindo Lelis Cadeira n°12 – Patrono: Alvarenga Peixoto
Senhores Acadêmicos.
Aqui estou para integrar-me na
fortuna do vosso convívio, as mãos vazias de merecimento, mas repleta a alma do
desejo de ser, entre os menores, o mais diligente dos confrades. Venho de uma
geração atormentada pela insânia dos homens do meu século, e trazendo na alma o
ressaibo do sofrimento e o calor da revolta. A guerra de 1914, dividindo os homens
pelo ódio e destruindo as possiblidades sociais dessa geração, plantou lhe no
espírito a esperança de recuperar essas possiblidades pela transformação
radical dos quadros sociais políticos e estéticos que, a nosso ver, eram os
responsáveis pela hecatombe.
O movimento modernista que
sacudiu todas as camadas espirituais do mundo pós-guerra, tem a sua raiz
nessa esperança de recuperação e ajustamento. Por ela, a minha geração se bateu
com bravura e convicção sem limites. O calor da refrega e a certeza da justiça
de uma causa tão bela, justificam nos moços que a lidaram o excesso em
incorreram, excesso que não invalida a grandeza da sua missão e do papel que
desempenhou na história espiritual desta primeira metade do século XX.
Fui um dos mais severos
acusadores no julgamento da geração anterior, porque estava convencido da sua
incapacidade em guardar o patrimônio mental que deveria nos ser transferido,
senão aumentado, pelo menos intacto na grandeza que o século XIX lhe fundira.
Daí o meu desdém — o desdém da inexperiência e da revolta contra a vossa Casa,
cujo espírito, fundido pelo humanitarismo do grande século anterior,
representava aos meus olhos inexpertos um estado de coisas que era urgente
modificar.
Os anos, a experiência dos homens
e das coisas que é o primeiro generoso dos cabelos brancos, mostraram-me afinal
que fui excessivo e leviano. As causas são mais complexas, são mais profundas,
são mais rebeldes à terapêutica social do que supunham a ignorância e o ódio da
minha geração.
Mas, é certo também que não foi
perdido o vigor que imprimimos à nossa luta. Dela nasceu uma consciência mais
viva da supremacia do espírito humano — e tão viva, que a maior revivescência medieval
que já subjugou os homens em todos os séculos da História, foi esmagada implacavelmente
pelas forças imponderáveis do espírito na mais sangrenta batalha que sulca de
luz os caminhos da Humanidade. Só está benemerência é bastante para situar o
movimento modernista, principalmente no Brasil, no mais destacado lugar da história
social e política do século XX.
Feita esta ligeira explicação de
penitência, proferida com a mesma sinceridade com que manejei o florete do
sarcasmo contra as instituições acadêmicas da minha terra, permiti, senhores,
que inicie a minha oração, cumprindo o dever estatutário de esboçar o elogio
crítico do patrono da cadeira número 12, o poeta inconfidente Inácio José de
Alvarenga Peixoto, que me coube ocupar pela morte de outra expressiva figura de
homem de letras que foi Carlinho Lélis, seu fundador.
Quando em meados do século XVIII
foram dadas à luz as duas primeiras manifestações literárias de Minas — “Triunfo
Eucarístico” (1734), escrito por Simão Ferreira Machado, e “Áureo Trono
Episcopal” (1749), de autor anônimo, ambas de valor literário apenas
cronológico e histórico, já a conquista do nosso território havia se firmado pela criação
das vilas de Sabará, Vila Rica e Mariana (1711) e o grande rush do ouro
havia cunhado na cera plástica do indígena os caracteres psicológicos do negro
paulista de origem lusa, fecundado o terreno de que nasceria a nossa literatura
popular consubstanciada no folclore. Ê o que podemos chamar com propriedade o início
da nossa criação literária, apesar de oral e tradicional como a dos rapsodos
medievais.
Portanto, quando, ao descambar o
século, surge a Escola Mineira, uma literatura popular já extinta por estes
grotões auríferos, sendo aquela apenas a manifestação erudita e nem sempre
vernácula da alma do nosso povo. Por este tempo já o sentido de pátria havia
provocado todas as rebeliões dos mineiros como a dos Emboabas e a de Felipe dos
Santos, para citar as mais significativas, e a maioria dos bardos da América
Mineira já eram brasileiros ilustres pela pecúnia e pelas letras. Vila Rica, no
dizer de Sílvio Romero, “era então no Brasil uma espécie de Weimar. Pequena
cidade de província, reunia em si, a um só tempo, homens como Cláudio Manuel da
Costa, Tomaz Antônio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Diogo Pereira
de Vasconcelos, Luiz Vieira da Silva Mascarenhas, Francisco Gregório Pires
Monteiro, as maiores ilustrações brasileiras da época, residentes na Colônia”.
É o velho axioma sociológico do
tropismo econômico, pois nas Minas Gerais estava o centro de interesses da
Coroa com o aparecimento do ouro e do diamante ... Inácio José de Alvarenga
Peixoto, patrono da acadêmica que me apontou o destino, foi um dos
inconfidentes e um desses espíritos da Cumiada Intelectual da Weimar brasileira
[...].
Senhores acadêmicos. Já vos disse
que venho de uma geração tangida pelo infortúnio do ódio e do sofrimento, e que
teve a rebeldia como solução para os seus problemas morais. É isto que explica,
em estética, o aparecimento do modernismo, O modernismo foi a maneira pela qual
rompemos com um mundo que supúnhamos apodrecido, simplesmente porque não
soubera resolver os problemas que lhe foram apresentados. Éramos muito moços e
ardentes para compreendermos a complexidade desses problemas, e daí a revolta,
o sarcasmo, a ironia, a impiedade — que foram o selo dessa geração torturada.
Os anos, os sofrimentos que se gravaram,
uma compreensão mais justa das fraquezas e uma percepção mais humana das
reservas de energia e nobreza que palpitam no fundo de todas as almas — nos
deram a consciência do nosso papel no jogo de todo esse drama formidável. Não passávamos
de um elo na imensa cadeia das gerações ...
Transmitimos a nossa mensagem,
que não podia deixar de ser escarninha revolta e trouxemos a nossa colaboração
de esperança e de fé na construção de um mundo que virá certamente — mais legal
e mais justo, e, portanto, mais belo e amável ...
E a Academia Mineira de Letras,
recebendo em seu seio mais de um desses rebeldes que a desdenhavam, nos dá a
imorredoura lição da perenidade do espírito no tumulto das paixões e na
inanidade dos punhos crispados pelo ódio ...
Pesquisa, organização e análise do texto: Charles Aquino
Texto: João
Dornas Filho (In memoriam)
Fonte impressa: FILHO,
João Dornas. Discurso de recepção (Academia Mineira de Letras), Ed.
Mantiqueira, 1952, impressa oficial de Minas Gerais, BH, p.7-12,56-57.
Acervo: “Fotografia
tirada na noite de 16 de novembro de 1948, ao tomar posse na cadeira de nº12 da
Academia Mineira de Letras” (informações no verso da imagem). Arquivo Público
Mineiro. Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=34008
AML - Academia Mineira de Letras: https://academiamineiradeletras.org.br/cadeiras/