sábado, fevereiro 24, 2024

JOÃO DORNAS: ACADEMIA MINEIRA

   O discurso de João Dornas Filho ao tomar posse na Academia Mineira de Letras em 1948, substituindo Carlindo Lélis na cadeira nº 12, patrono Alvarenga Peixoto, é uma reflexão profunda sobre sua trajetória intelectual e a história literária e cultural de Minas Gerais. Dornas Filho expressa humildade e um desejo sincero de ser um membro diligente da academia, apesar de considerar-se sem merecimento.

   Ele contextualiza sua geração, marcada pela Primeira Guerra Mundial e suas consequências devastadoras, e como essa experiência alimentou um desejo ardente de transformação social, política e estética. Essa geração, segundo Dornas Filho, foi impulsionada pelo movimento modernista, que buscava recuperar e ajustar as esperanças e possibilidades sociais destruídas pela guerra. Ele admite que, em sua juventude, foi um crítico severo da geração anterior, acreditando que esta havia falhado em preservar o patrimônio intelectual.

   Com o passar do tempo, Dornas Filho reconhece que suas críticas foram excessivas e levianas, e que as questões sociais são mais complexas do que ele havia percebido. No entanto, ele defende que o vigor e a luta de sua geração não foram em vão, resultando em uma maior consciência da supremacia do espírito humano.

   No elogio ao patrono da cadeira nº 12, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Dornas Filho traça um panorama da história literária de Minas Gerais, destacando as primeiras manifestações literárias no século XVIII e a importância da Escola Mineira. Ele menciona a relevância de Vila Rica como um centro cultural, comparando-a a Weimar na Alemanha, e enaltece Alvarenga Peixoto como um dos grandes intelectuais e inconfidentes da época.

   O discurso termina com uma reflexão sobre a estética modernista e a rebeldia da geração de Dornas Filho, justificando suas ações e críticas como fruto de uma tentativa de romper com um mundo que julgavam incapaz de resolver seus problemas. Ele conclui reconhecendo a perenidade do espírito humano e a capacidade da Academia de acolher aqueles que, no passado, a criticaram, simbolizando a reconciliação e a continuidade do legado intelectual.



 João Dornas Filho

Discurso de recepção 1948

Pronunciado ao tomar possa na Academia Mineira de Letras (AML)

substituindo Carlindo Lelis Cadeira n°12 – Patrono: Alvarenga Peixoto


Senhores Acadêmicos.

   Aqui estou para integrar-me na fortuna do vosso convívio, as mãos vazias de merecimento, mas repleta a alma do desejo de ser, entre os menores, o mais diligente dos confrades. Venho de uma geração atormentada pela insânia dos homens do meu século, e trazendo na alma o ressaibo do sofrimento e o calor da revolta. A guerra de 1914, dividindo os homens pelo ódio e destruindo as possiblidades sociais dessa geração, plantou lhe no espírito a esperança de recuperar essas possiblidades pela transformação radical dos quadros sociais políticos e estéticos que, a nosso ver, eram os responsáveis pela hecatombe.

   O movimento modernista que sacudiu todas as camadas espirituais do mundo pós-guerra, tem a sua raiz nessa esperança de recuperação e ajustamento. Por ela, a minha geração se bateu com bravura e convicção sem limites. O calor da refrega e a certeza da justiça de uma causa tão bela, justificam nos moços que a lidaram o excesso em incorreram, excesso que não invalida a grandeza da sua missão e do papel que desempenhou na história espiritual desta primeira metade do século XX.

   Fui um dos mais severos acusadores no julgamento da geração anterior, porque estava convencido da sua incapacidade em guardar o patrimônio mental que deveria nos ser transferido, senão aumentado, pelo menos intacto na grandeza que o século XIX lhe fundira. Daí o meu desdém — o desdém da inexperiência e da revolta contra a vossa Casa, cujo espírito, fundido pelo humanitarismo do grande século anterior, representava aos meus olhos inexpertos um estado de coisas que era urgente modificar.

   Os anos, a experiência dos homens e das coisas que é o primeiro generoso dos cabelos brancos, mostraram-me afinal que fui excessivo e leviano. As causas são mais complexas, são mais profundas, são mais rebeldes à terapêutica social do que supunham a ignorância e o ódio da minha geração.

   Mas, é certo também que não foi perdido o vigor que imprimimos à nossa luta. Dela nasceu uma consciência mais viva da supremacia do espírito humano —   e tão viva, que a maior revivescência medieval que já subjugou os homens em todos os séculos da História, foi esmagada implacavelmente pelas forças imponderáveis do espírito na mais sangrenta batalha que sulca de luz os caminhos da Humanidade. Só está benemerência é bastante para situar o movimento modernista, principalmente no Brasil, no mais destacado lugar da história social e política do século XX.

   Feita esta ligeira explicação de penitência, proferida com a mesma sinceridade com que manejei o florete do sarcasmo contra as instituições acadêmicas da minha terra, permiti, senhores, que inicie a minha oração, cumprindo o dever estatutário de esboçar o elogio crítico do patrono da cadeira número 12, o poeta inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto, que me coube ocupar pela morte de outra expressiva figura de homem de letras que foi Carlinho Lélis, seu fundador.

   Quando em meados do século XVIII foram dadas à luz as duas primeiras manifestações literárias de Minas — “Triunfo Eucarístico” (1734), escrito por Simão Ferreira Machado, e “Áureo Trono Episcopal” (1749), de autor anônimo, ambas de valor literário apenas cronológico e histórico, já a conquista do nosso território havia se firmado pela criação das vilas de Sabará, Vila Rica e Mariana (1711) e o grande rush do ouro havia cunhado na cera plástica do indígena os caracteres psicológicos do negro paulista de origem lusa, fecundado o terreno de que nasceria a nossa literatura popular consubstanciada no folclore. Ê o que podemos chamar com propriedade o início da nossa criação literária, apesar de oral e tradicional como a dos rapsodos medievais.

   Portanto, quando, ao descambar o século, surge a Escola Mineira, uma literatura popular já extinta por estes grotões auríferos, sendo aquela apenas a manifestação erudita e nem sempre vernácula da alma do nosso povo. Por este tempo já o sentido de pátria havia provocado todas as rebeliões dos mineiros como a dos Emboabas e a de Felipe dos Santos, para citar as mais significativas, e a maioria dos bardos da América Mineira já eram brasileiros ilustres pela pecúnia e pelas letras. Vila Rica, no dizer de Sílvio Romero, “era então no Brasil uma espécie de Weimar. Pequena cidade de província, reunia em si, a um só tempo, homens como Cláudio Manuel da Costa, Tomaz Antônio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Diogo Pereira de Vasconcelos, Luiz Vieira da Silva Mascarenhas, Francisco Gregório Pires Monteiro, as maiores ilustrações brasileiras da época, residentes na Colônia”.

   É o velho axioma sociológico do tropismo econômico, pois nas Minas Gerais estava o centro de interesses da Coroa com o aparecimento do ouro e do diamante ... Inácio José de Alvarenga Peixoto, patrono da acadêmica que me apontou o destino, foi um dos inconfidentes e um desses espíritos da Cumiada Intelectual da Weimar brasileira [...].

   Senhores acadêmicos. Já vos disse que venho de uma geração tangida pelo infortúnio do ódio e do sofrimento, e que teve a rebeldia como solução para os seus problemas morais. É isto que explica, em estética, o aparecimento do modernismo, O modernismo foi a maneira pela qual rompemos com um mundo que supúnhamos apodrecido, simplesmente porque não soubera resolver os problemas que lhe foram apresentados. Éramos muito moços e ardentes para compreendermos a complexidade desses problemas, e daí a revolta, o sarcasmo, a ironia, a impiedade — que foram o selo dessa geração torturada.

   Os anos, os sofrimentos que se gravaram, uma compreensão mais justa das fraquezas e uma percepção mais humana das reservas de energia e nobreza que palpitam no fundo de todas as almas — nos deram a consciência do nosso papel no jogo de todo esse drama formidável. Não passávamos de um elo na imensa cadeia das gerações ...

   Transmitimos a nossa mensagem, que não podia deixar de ser escarninha revolta e trouxemos a nossa colaboração de esperança e de fé na construção de um mundo que virá certamente — mais legal e mais justo, e, portanto, mais belo e amável ...

   E a Academia Mineira de Letras, recebendo em seu seio mais de um desses rebeldes que a desdenhavam, nos dá a imorredoura lição da perenidade do espírito no tumulto das paixões e na inanidade dos punhos crispados pelo ódio ...


MEMORIAL JOÃO DORNAS 

SAIBA MAIS:

Referências:

Pesquisa, organização e análise do texto: Charles Aquino

Texto: João Dornas Filho (In memoriam)

Fonte impressa: FILHO, João Dornas. Discurso de recepção (Academia Mineira de Letras), Ed. Mantiqueira, 1952, impressa oficial de Minas Gerais, BH, p.7-12,56-57.

Acervo: “Fotografia tirada na noite de 16 de novembro de 1948, ao tomar posse na cadeira de nº12 da Academia Mineira de Letras” (informações no verso da imagem). Arquivo Público Mineiro. Disponível em:  http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=34008

AML -  Academia Mineira de Letras: https://academiamineiradeletras.org.br/cadeiras/