No
meu tempo, no qual as pessoas viajavam de trem, tínhamos diversos tipos de
trens, que variavam pela carga, horário, rapidez e conforto. Por Itaúna
passavam o Subúrbio (esse exclusivo de Itaúna a BH e vice-versa) o Misto, que
carregava passageiros e carga, o Expresso, trem diurno com carro restaurante,
poucas paradas, para transporte exclusivo de passageiros e o Noturno. Este,
mais sofisticado, tinha carro restaurante, cabines com leitos ou carros com
poltronas leito e poucas paradas. Somente nas principais cidades. Assim como o
Expresso, era mais rápido. Os dois destinavam-se a viagens mais longas.
O Noturno, que possuía até camareiros, como o
próprio nome indica, só viajava a noite. O carro restaurante era algo a parte.
Tinha fogão tocado a lenha ou a carvão, cozinheiro e ajudantes, garçons
fardados e às vezes " maitre d'hotel “. Cardápio " a la carte". Coisa chique para
poucos. A bordo do trem vendia-se
bebidas. Normalmente, cerveja, vinho, vinho do Porto e conhaque. Servidas por
garçons fardados e de gravatas borboleta.
Em
Itaúna tínhamos dois Juízes de Direito. A comarca já era importante é somente
um não era suficiente. Lembro-me bem de vários e a história que passo a narrar
é verídica.
Um
dos juízes, de nome Nabor, pai de dois grandes amigos meus, era baixinho, quase
minúsculo. Empertigado, sempre de terno e gravata, sanguíneo, eternamente cor
de rosa. Chegou em Itaúna em fins dos anos cinquenta e começo dos sessenta do
século passado. Já chegou viúvo, com três filhos homens e três meninas. Todos
bonitos, claros e rosados. Uma coleção de " biscuits". Miúdos como o pai.
O
Doutor Nabor, parece-me que tinha uma namorada em Belo Horizonte e viajava
sempre para vê-la. Ia e voltava de trem. A volta, sempre de Noturno. Ia me
esquecendo. O magistrado era bom de copo e tinha uma voz tonitruante. Fazia
inveja a qualquer locutor. Gostava de cerveja da marca "Portuguesa",
fabricada pela Antártica em uma fábrica em Belo Horizonte, onde se localiza
hoje o Shopping Oiapoque. Cerveja ruim, engarrafada em cascos verdes.
A
preferência em Itaúna era da Brahma Chopp, casco escuro. Doutor Nabor ainda
tinha uma preferência estranha. Gosta de cerveja sem gelo. Portuguesa quente,
casco verde erapra poucos. O próprio " mijo de égua “.
Numa
de suas viagens de volta para Itaúna, o magistrado aboletou-se no Noturno e logo
que a composição da Rede arrancou, chamou o garçom e fez o pedido: " por
favor, uma Portuguesa, casco verde, sem gelo". O serviçal argumentou que
não tinha a cerveja. No entanto, se quisesse Brahma, tinha sem gelo, mas casco
escuro. O baixinho era tinhoso e sabedor de suas virtudes como autoridade,
pediu para falar com o Maitre. Na sua presença o chefe dos garçons usou dos
mesmos argumentos e disse mais. A cerveja pedida vendia pouco e daí a falta
dela no estoque. Pedia desculpas, mas nada mais poderia fazer.
Em
vista do impasse, o Dr. Nabor mandou que viesse falar com ele, nada mais nada
menos do que o Chefe do Trem, autoridade máxima do comboio. Na presença do
Chefe, devidamente fardado de azul e apito pendurado no pescoço, o baixinho
juiz, já alterado, recitou sua ladainha. Nada feito. A chefe nada podia
fazer!!!
Doutor
Nabor por fim aquiesceu em beber um conhaque. Bebeu vários e já nas imediações
de Mateus Leme, estava vermelho como um peru é bem " tocado".
Pediu
mais uma dose é o garçom resolveu dizer-lhe que não lhe serviria mais. Já
bebera o bastante. O homenzinho virou um capeta. Proferiu impropérios, xingou a
mãe do garçom e aprontou um carnaval. O pobre garçom, que teria uma longa noite
pela frente, obrigado a equilibrar-se com o balanço do trem, perdeu a paciência
e deu uma bofetada no magistrado. Uma só, o bastante para colocá-lo no devido.
Com a esfrega, Dr. Nabor aquietou e recolheu-se ao carro de passageiros, depois
de pagar a conta.
Surpresa
maior, o baixinho reservou para a equipe do trem, assim que a composição
estacionou em Itaúna. Investido de sua autoridade de Meritíssimo Juiz, deu voz
de prisão ao Chefe do Trem, ao Maitre e ao Garçon. Reteve todo o Noturno da
Rede Mineira de Viação em Itaúna, até que se resolvesse o impasse. Tinha sido
desacatado e agredido. Queria e obteve lavratura de atos circunstanciais,
boletim de ocorrência, coleta de provas e exame de corpo de delito. Atrasou o
trem que ia para Cruzeiro/SP, por três horas.
Abuso
de autoridade é coisa antiga no Brasil.
Texto:
Urtigão (nascido em Rio Piracicaba desde de 1943) é pseudônimo de José Silvério
Vasconcelos Miranda, que viveu em Itaúna nas décadas de 50 e 60. Causo verídico enviado especialmente
para o blog Itaúna Décadas em 03/01/2018.
Organização: Charles Aquino
Organização: Charles Aquino