sexta-feira, novembro 28, 2025

MENÇÃO HONROSA: PEDRA NEGRA

Monografia sobre o Reinado de Itaúna recebe 1ª Menção Honrosa no Concurso Sílvio Romero 2025

O resultado preliminar do Concurso Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular – edição 2025, promovido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/Iphan),trouxe uma notícia de grande relevância para Itaúna e para os estudos sobre cultura popular no Brasil.

Entre as 121 monografias inscritas de todas as regiões do país, o trabalho “Reinado, folclore e cultura popular em Itaúna: o adro do Rosário como território sagrado da memória afrodescendente”apresentado sob o pseudônimo Pedra Negra, do historiador itaunense Charles Galvão de Aquino, recebeu a 1ª Menção Honrosa, reconhecimento que o coloca ao lado das pesquisas mais inovadoras e consistentes deste ano no campo do folclore e das tradições afro-brasileiras.

A conquista é representativa não apenas pelo resultado em si, mas pelo que simboliza para a cidade de Itaúna e para os debates contemporâneos sobre patrimônio, memória e identidade. O Concurso Sílvio Romero, criado em 1959, é um dos mais tradicionais certames acadêmicos do país.

As monografias vencedoras passam por um processo rigoroso de avaliação, conduzido por uma comissão de pesquisadoras e pesquisadores de instituições como UFBA, UFMG, UFRGS, UnB, UFF e UFMT, referência nacional em antropologia, história, cultura popular e música. 

Esses especialistas analisam cada trabalho a partir de critérios que incluem contribuição teórica, originalidade temática, domínio bibliográfico, consistência argumentativa e clareza na apresentação dos resultados. Em outras palavras, não se trata de um prêmio de participação, mas de um espaço onde apenas pesquisas com real densidade acadêmica ganham destaque.

Neste contexto altamente competitivo, a menção honrosa atribuída ao trabalho evidencia que o estudo sobre o Reinado, o Congado e o adro do Rosário em Itaúna alcançam um nível de maturidade intelectual que dialoga com agendas nacionais e com debates consolidados sobre religiosidade afro-brasileira, memória coletiva, territórios sagrados e patrimônio cultural.

O texto premiado demonstra que o adro do Rosário não é apenas um espaço físico, mas um território ritual e histórico onde narrativas, práticas e símbolos afrodescendentes resistiram e se reinventaram ao longo do tempo, mesmo diante de repressões, tentativas de silenciamento e transformações urbanas. 

Essa perspectiva interdisciplinar coloca Itaúna em posição de destaque ao reconhecer que suas celebrações e tradições não são manifestações periféricas, mas elementos essenciais da herança cultural brasileira.

Ao tratar o adro do Rosário como um “território sagrado da memória afrodescendente”, o estudo ilumina práticas de fé, redes de solidariedade e formas de resistência que estruturaram a experiência negra no município e continuam a moldar sua identidade cultural.

O reconhecimento nacional, portanto, fortalece reivindicações em torno da preservação do patrimônio material e imaterial, especialmente no Morro do Rosário de Itaúna/MG.

Ao receber a 1ª Menção Honrosa, o trabalho Reinado, folclore e cultura popular em Itaúna ganha visibilidade pública e passará a integrar o acervo da Biblioteca Amadeu Amaral do CNFCP, onde poderá ser consultado por pesquisadores, estudantes e instituições interessadas no tema.

Isso contribui não apenas para difundir o nome de Itaúna e de sua tradição centenária, mas também para ampliar o debate sobre a memória afrodescendente no interior de Minas Gerais, aproximando a cidade de outras pesquisas nacionais sobre congados, reinados e religiosidades negras.

A premiação abre portas importantes para o fortalecimento das políticas culturais locais, já que legitima a relevância do Reinado e do adro do Rosário enquanto patrimônios coletivos.

Num momento em que muitas manifestações de matriz africana ainda enfrentam preconceito, marginalização e disputas simbólicas, ver um estudo sobre Itaúna ser destacado entre tantas pesquisas de alta qualidade reafirma a necessidade de valorização das tradições negras como fundamento da cultura brasileira.

Sob o pseudônimo Pedra Negra, a pesquisa reconhecida nacionalmente demonstra que o interior mineiro produz conhecimento capaz de transformar debates, ampliar horizontes e reposicionar histórias que por muito tempo foram relegadas aos bastidores.

A 1ª Menção Honrosa do Concurso Sílvio Romero 2025 não celebra apenas um pesquisador: celebra o Reinado, celebra a memória do Rosário e celebra a força ancestral que moldou — e continua moldando — Itaúna como um território vivo de fé, resistência e pertencimento.



Resumo: Esta monografia analisa o Reinado, o folclore e a cultura popular em Itaúna, tomando o adro da Capela do Rosário como território sagrado da memória afrodescendente. O Reinado de Nossa Senhora do Rosário é interpretado como prática religiosa e política, na qual fé, ancestralidade e resistência se entrelaçam de forma coletiva. Embora o antigo cemitério tenha sido suprimido em sua estrutura física, abriga os restos mortais de centenas de afrodescendentes, configurando-se como espaço de pertencimento, dignidade histórica. 

A pesquisa demonstra como a cultura popular afro-brasileira transforma o esquecimento em presença simbólica viva. Diante da desatenção histórica e do apagamento dessa dimensão funerária, o trabalho defende o reconhecimento do antigo cemitério do adro como patrimônio imaterial, imprescindível à história negra e à construção da identidade cultural itaunense.


quinta-feira, novembro 13, 2025

PADRE ROSSINI

Rossini Cândido Nogueira nasceu em Itaúna, Minas Gerais, a 28 de maio de 1902, época em que a cidade ainda assimilava as transformações do final do século XIX e início do XX, marcada por forte religiosidade popular, sociabilidade comunitária e crescente valorização da instrução escolar. 
Seu nascimento foi registrado no Livro Tombo da Paróquia de Sant’Ana de Itaúna, onde consta que era filho natural de Isaltina Cândida, sendo batizado no dia 7 de julho de 1902 pelo Monsenhor Fernando Barbosa. Seus padrinhos foram o Major Senocrit Nogueira e Isma Maria de Jesus.

A presença do Major Senocrit como padrinho não se limitou ao simples ato sacramental: tratou-se de uma figura decisiva na vida do menino Rossini.

Homem influente, de recursos e grande prestígio na sociedade itaunense, Senocrit assumiu para si a responsabilidade pela educação, formação intelectual e, sobretudo, pela sustentação material da vocação religiosa do afilhado.

Foi ele quem financiou seus estudos e, reconhecendo a nobreza e o brilho de sua inteligência, incentivou sua entrada no seminário. Não por acaso, o próprio Rossini posteriormente incorporaria o sobrenome Nogueira — herança espiritual e afetiva do padrinho que o ajudou a se tornar quem foi.

Desde muito cedo, Rossini revelou sinais claros de vocação sacerdotal. Já em criança demonstrava inclinação para a vida de oração, docilidade, espírito de serviço e grande interesse pelas coisas do altar.

O historiador João Dornas Filho, que conheceu de perto a realidade cultural de Itaúna, afirmou que o menino Rossini era dotado de “viva inteligência” e desde criança manifestava uma “piedosa vocação para o sacerdócio”. Frequentou as primeiras letras no Grupo Escolar local e, posteriormente, aprofundou seus estudos com professores que perceberam imediatamente seu talento excepcional.

Entre seus mestres estavam professor José Gonçalves de Melo, respeitado educador, e Padre João Ferreira Álvares da Silva, figura intelectual de destaque no clero itaunense. Este último exerceu papel fundamental ao reconhecer não apenas a vocação, mas o brilhantismo do jovem Rossini.

Foi Padre João Ferreira quem o encaminhou ao Seminário de Mariana, conseguindo sua admissão em 1917, quando o menino tinha apenas quinze anos. A partir desse momento, iniciava-se uma trajetória que combinaria disciplina monástica, rigor acadêmico e profunda espiritualidade.

No seminário de Mariana, Rossini destacou-se imediatamente. Tornou-se aluno distinto, querido pelos colegas e especialmente estimado pelo arcebispo Dom Silvério Gomes Pimenta, o grande intelectual da Igreja mineira e figura central da vida religiosa do início do século XX. 

A amizade entre o jovem seminarista e o venerável arcebispo ficou registrada por Dornas Filho, que o definiu como “dileto amigo” de Dom Silvério — privilégio raríssimo, sinal inequívoco do brilho do seminarista itaunense.

Em 1923, com a fundação do Seminário Eucarístico em Belo Horizonte, Rossini foi transferido para a capital, continuando seus estudos e acumulando responsabilidades intelectuais: além de seminarista destacado, tornou-se professor no novo seminário criado pelo recém-nomeado arcebispo D. Antônio dos Santos Cabral. Ali completou sua formação teológica, consolidando um perfil equilibrado entre o saber acadêmico e a mística da vida sacerdotal.

Finalmente, no dia 29 de maio de 1927, Rossini Cândido Nogueira recebeu a Ordenação Sacerdotal, coroando dez anos de formação e dedicação. Poucos dias depois, retornaria triunfalmente à sua terra natal para celebrar a Primeira Missa, evento que ficaria para sempre gravado na memória coletiva de Itaúna.

No dia 5 de junho de 1927, ao chegar na Estação Ferroviária, encontrou um cenário de emoção incomum: segundo o Livro do Tombo da Paróquia de Sant’Ana, a plataforma estava “apinhada de povo como nunca se vira”. Famílias inteiras, crianças em uniforme escolar, autoridades civis e religiosas, irmandades e pessoas simples, todas reunidas para acolher seu primeiro filho sacerdote ordenado após muitos anos.

O professor Anselmo Rosset, em discurso vibrante, saudou-o em nome da cidade, exaltando tanto sua vocação quanto o orgulho cívico daquela geração. Padre Rossini respondeu com profunda comoção, dizendo que aquela recepção possuía “duplo caráter — de fé e de civismo”.

No dia seguinte, celebrou sua Missa solene na Matriz de Sant’Ana, paramentado ricamente e acompanhado liturgicamente por figuras de prestígio: Monsenhor João Alexandre, Padre Cornélio Pinto e o Vigário Geral, Monsenhor João Rodrigues de Oliveira. Uma excelente orquestra abrilhantou a celebração, e o sermão foi proferido pelo Padre João Vernusia, que tomou como tema a profunda pergunta: “Sacerdos, quis es tu?” — “Sacerdote, quem és tu?”

Ao final, o jovem padre apresentou suas mãos ungidas ao povo para o tradicional beijo, que se fez “com muito respeito”, conforme o Tombo registra.

Aquele dia terminou com homenagens, discursos e um almoço solene no Club Itaunense, conforme registra Dornas Filho. A população via em Rossini não apenas o sacerdote recém-ordenado, mas um símbolo da ascensão cultural e espiritual da própria cidade.

Poucos anos depois, sua vida pastoral ganharia novos rumos. Em 31 de dezembro de 1928, foi nomeado vigário da Paróquia de São Gonçalo da Contagem pelo arcebispo Dom Antônio Cabral. Sua posse ocorreu em 20 de janeiro de 1929, conforme ata lavrada por Monsenhor João Rodrigues de Oliveira.

A solenidade foi simples, seguindo o ritual canônico: leitura da provisão, entrega do templo e assinatura pelo novo pároco. Em Contagem, Padre Rossini teria uma atuação marcada pela humildade, zelo pastoral, dedicação silenciosa e atenção profunda aos pobres, doentes e crianças.

A fase final de sua vida, no entanto, é descrita com grande riqueza pelo jornal O Lampadário, edição 791, de 21 de junho de 1941, órgão oficial da Diocese de Juiz de Fora. Ali lemos o relato comovente de sua morte repentina, ocorrida no domingo anterior, após celebrar a Santa Missa. Naquele dia, seu sermão girou em torno de uma só frase, repetida com força espiritual: “Estote parati! Estai preparados!”

A pregação tratava da vigilância cristã, baseada em Lucas 12,37: “Bem-aventurado o servo a quem o Senhor achar vigilante quando vier.”

Pouco depois de proferir esse sermão — chamado pelo jornal de “o grande sermão da vida, sermão mudo, mas eloquente” — Padre Rossini sofreu um mal súbito e faleceu. Uma hora após ele despedir o povo com o “Ite, Missa est”, outro sacerdote já iniciava a Missa de corpo presente.

Sua morte, aos 39 anos, causou enorme comoção. Durante todo o dia, a população formou longas filas para se despedir; muitos ajoelharam diante do corpo; sua mãe, Dona Isaltina, recebeu homenagens tocantes. A Missa de Réquiem, celebrada no dia seguinte, reuniu grande parte do clero mineiro, além de representantes do arcebispo de Belo Horizonte e do bispo de Juiz de Fora. O cortejo fúnebre, descrito como “imponente e silencioso”, revelou a dimensão do amor e do respeito conquistados pelo sacerdote.

O Lampadário resumiu sua existência com a frase latina:

“Subita mors — Sacerdoctum sors.”  “Uma morte súbita — a sorte dos sacerdotes.”

E completou com o versículo evangélico que ele próprio havia pregado minutos antes de partir: “Bem-aventurado o servo que o Senhor achar vigilante.”

Assim foi Rossini Cândido Nogueira: sacerdote desde a infância, brilhante aluno dos seminários de Mariana e Belo Horizonte, afilhado amado e protegido do Major Senocrit Nogueira, filho exemplar de Itaúna, pastor humilde e trabalhador em Contagem, e, sobretudo, um homem que viveu e morreu no altar, consumindo a própria vida no mesmo ato sagrado que dava sentido à sua existência.

Sua história, embora breve, é luminosa — e sua memória permanece como testemunho de fidelidade, pureza e entrega total ao chamado de Deus.

Hoje, no Cemitério Central de Itaúna, repousam lado a lado os túmulos do Major Senocrit Nogueira e de Padre Rossini Cândido Nogueira, uma proximidade que não é apenas física, mas profundamente simbólica. 

O gesto de sepultá-los juntos perpetua, em pedra e silêncio, o laço espiritual e humano que os uniu em vida: o padrinho que assumiu papel paternal, custeou a educação, moldou o destino e deu o sobrenome ao afilhado; e o sacerdote que, graças à generosidade e ao amparo desse benfeitor, pôde florescer como um dos mais brilhantes ornamentos do clero mineiro.

Major Senocrit — figura central na articulação da emancipação político-administrativa de Itaúna e verdadeiro guardião da formação intelectual do jovem Rossini — permanece, mesmo após a morte, como sentinela discreto ao lado daquele cuja vocação ajudou a sustentar. Assim, os dois descansam juntos como repousa uma obra ao lado de seu artífice; como se o próprio tempo tivesse reconhecido que a história de um não se completa sem a do outro.

  NOTA FINAL

Há muitos anos, desde minhas primeiras leituras do livro Itaúna: Contribuição para a História do Município (1936), de João Dornas Filho, carreguei comigo o desejo de aprofundar a trajetória do Padre Rossini Cândido Nogueira. Dornas, ao registrar algumas linhas sobre o sacerdote itaunense, despertou em mim a certeza de que ali havia uma história maior, mais rica e quase esquecida, à espera de ser resgatada.

No entanto, durante muito tempo, encontrei pouquíssimas informações adicionais: fragmentos dispersos, registros isolados, ecos tênues da memória de um homem que, apesar de sua breve existência, marcou profundamente a vida religiosa da cidade.

Sempre soube que um dia o tempo apresentaria a oportunidade necessária para preencher essas lacunas. E esse momento chegou de forma inesperada e profundamente feliz.
Recebi uma mensagem do jovem Dalmo Assis de Oliveira, conhecido popularmente como Dalminho, que, por indicação do pesquisador Alexandre Campos, desejava contribuir com documentos e informações históricas sobre o Padre Rossini. Ao abrir seus arquivos e estudos, fiquei maravilhado: eram dados preciosos, registros raros, recortes antigos, imagens, narrativas e detalhes que eu jamais havia encontrado.

Graças ao empenho de Dalmo — que durante anos reuniu silenciosamente esse material — foi possível reconstruir, com rigor e sensibilidade, uma biografia antes incompleta. Suas contribuições permitiram entrelaçar documentos de época, relatos familiares, registros paroquiais e pesquisas acumuladas ao longo da minha própria jornada, resultando em um texto que devolve ao Padre Rossini o lugar que lhe é devido na memória de Itaúna.

Compreendi, naquele instante, que a história, mais uma vez, se fazia presente de forma generosa. Através de encontros inesperados, ela nos oferece as chaves para abrir portas há muito fechadas, permitindo que registremos, preservemos e honremos a vida de pessoas que — como o Padre Rossini e aqueles que o acompanharam — contribuíram para a formação espiritual, cultural e humana do nosso município.

Este trabalho, portanto, é mais do que uma biografia. É um ato de resgate, um gesto de gratidão e uma reafirmação de que a memória histórica de Itaúna continua viva graças a todos os que se dispõem a compartilhá-la, preservá-la e ampliá-la.



Referências:

Realização e pesquisa: Charles Aquino

Colaboração, Acervo e Pesquisa: Dalmo Assis de Oliveira

DORNAS FILHO, JoãoItaúna: contribuição para a história do município. Belo Horizonte: [s.n.], 1936. p. 120-121

O LAMPADÁRIO: órgão oficial da Diocese de Juiz de Fora. Juiz de Fora, ano XVI, n. 791, 21 jun. 1941.

LAR CATHOLICO. Juiz de Fora: Missionários do Verbo Divino, ano XV, n. 28, 10 jul. 1927, p. 223.

LIVRO BATISMOSArquivo Eclesiástico de Itaúna/MG. "Brasil, Minas Gerais, Registros da Igreja Católica. FamilySearch (https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HT-6X77-ZTC?wc=M5NS-GP8%3A370040701%2C369941902%2C370074301%26cc%3D2177275&lang=pt&i=45&cc=2177275 ): 13/11/2025),  Santana > Batismos 1901, Dez-1918, Nov > image 46 of 398; Paróquias Católicas (Catholic Church parishes), Minas Gerais.

LIVRO DO TOMBO - Paróquia Santana de Itaúna/MG (1902-1947), p. 15, 15v.

PARÓQUIA DE SÃO GONÇALO DA CONTAGEM. Ata de posse do Reverendo Padre Rossini Cândido Nogueira. Livro do Tombo, Contagem–MG, 20 jan. 1929.

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto e acervo. 

quarta-feira, novembro 12, 2025

PRESERVAR X DEMOLIR (PARTE VIII)

O texto assinado pelo engenheiro Hudson Santos revela um momento decisivo no debate sobre a preservação da memória urbana de Itaúna, no final da década de 1970 — discussão que se intensificaria ao longo da década de 1980.

 Trata-se de um documento que expressa, com clareza e urgência, a preocupação com o risco de perda definitiva do antigo hospital — edifício que, para além de sua função original, cristalizou valores identitários, afetivos e culturais de gerações itaunenses.

O autor situa o hospital como símbolo do passado arquitetônico local e, sobretudo, como um marco da construção coletiva da cidade. 

Ao enfatizar que “o hospital velho é memória”, ele reconhece o patrimônio não apenas como matéria — tijolos, paredes, telhado — mas como expressão viva da história social, das práticas assistenciais e filantrópicas e da formação da identidade comunitária.

Em seu apelo ao poder público, o texto demarca um período em que Itaúna enfrentava dilemas comuns às cidades brasileiras de média dimensão nas décadas finais do século XX: modernização urbana acelerada, especulação imobiliária e abandono de edificações históricas. Esse cenário muitas vezes colocava o passado em confronto com o presente — e a memória coletiva em posição vulnerável.

A narrativa enfatiza a ação destrutiva do tempo sobre os edifícios históricos. Tal leitura ecoa as discussões contemporâneas de preservação, que reconhecem que o maior inimigo do patrimônio cultural nem sempre é a demolição direta, mas o abandono silencioso e progressivo, capaz de transformar bens materiais em ruínas. 

Cada dia de “descuido”, afirma Hudson, é uma agressão à memória — uma frase que sintetiza o drama do patrimônio em cidades que naturalizam o esquecimento.

Essa visão coincide com princípios defendidos pela UNESCO e por intelectuais como Alois Riegl e Pierre Nora, para quem monumentos, lugares de memória e testemunhos arquitetônicos são pilares da memória social e da consciência histórica.

Ao afirmar que “é no passado cultural de uma civilização que encontramos a chave para o futuro”, o autor se posiciona contra uma ideia de modernidade que rompe com suas próprias raízes. O apelo ultrapassa a preservação física do edifício e atinge uma dimensão simbólica: restaurar é também restaurar o elo social com a história.

Essa perspectiva é fundamental para a compreensão do patrimônio como recurso de identidade, pertencimento e educação histórica — valores que hoje pautam políticas culturais em nível nacional e internacional.

O texto demonstra que a defesa do hospital não era isolada, mas compartilhada por outros moradores atentos ao destino da cidade. A carta assume tom de manifesto: convoca autoridades e sociedade à responsabilidade coletiva sobre o bem cultural.

Essa postura reforça a importância da participação social nos processos de preservação e antecipa debates atuais sobre patrimônio participativo, memória democrática e cidadania patrimonial.

A carta de Hudson Santos é, por si só, documento histórico de grande relevância. Ela representa não apenas a defesa de um edifício, mas a reivindicação do direito à memória, ao legado cultural e à história compartilhada dos itaunenses.

Hoje, diante do processo de restauração em curso do "Hospital Velho" (Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira), o texto ganha novo significado: torna-se testemunho da resistência da memória frente ao abandono, e símbolo da vitória da preservação sobre o esquecimento.

A permanência — mesmo após anos de espera — confirma o que o engenheiro antecipava: salvar o patrimônio não é um capricho nostálgico, mas um dever para com a cidade e suas gerações futuras.

PATRIMÔNIO CULTURAL X RESTAURAÇÃO

A restauração do hospital velho é viável e possível, mas qualquer trabalho de restauração é um empreendimento de alto custo e de grande morosidade. No entanto, é um trabalho que precisa ser feito. O tempo, nas velhas construções, age como mortal inimigo, destruindo-as totalmente ou reduzindo-as a um monte irreconhecível de escombros. 

Cada dia de descuido — ou mesmo de descaso — pode ser fatal ao patrimônio ou implicará em aumento no custo da restauração. Cada dia de descuido — ou mesmo de descaso — é um crime contra a mesma memória histórica e cultural.

Desta forma, apresento ao prefeito municipal e aos senhores vereadores, o meu apelo (e de tantos outros itaunenses), para que nossa jovem — e já fraca — memória municipal, não sofra mais uma perda. Não deixem que escombros venham a ocupar o lugar de uma possível casa de cultura ou mesmo uma faculdade.

O hospital velho é memória. É o passado arquitetônico itaunense, grande referência de nossa história. É no passado cultural de uma civilização que encontramos a chave para o futuro.

HUDSON SANTOS

Engenheiro Geólogo 

 

 Referência:

Organização e arte: Charles Aquino

Jornal ITA VOX - 1979/1980