domingo, março 26, 2017

PROGRESSO E MUTILAÇÃO DO BONFIM

O PROGRESSO E A MUTILAÇÃO DO MORRO DO BONFIM

Osório Martins Fagundes
No nosso tempo de menino, havia pegado à parede da direita do pequeno templo, um tablado de madeira, de uns dois metros de altura aproximadamente, tendo na sua retaguarda uma escada com degraus de tábuas, que dava acesso à parte superior daquele palanque. Sobre este, em determinada posição fora colocado em peças apropriadas de madeira, o pequeno sino da Capela Senhor do Bonfim, que badalara ali durante algumas décadas pelas festas de Santa Cruz. Mas no decorrer dos anos, corroído pelas intempéries, aquele tablado tornou-se perigoso, sujeito a provocar a queda de alguém; foi, pois, arrancado em certa época que se fazia a reforma da igrejinha. Esta continua lá, no seu estado primitivo, porém sem o palanque e o pequeno sino. Também o velho cruzeiro de madeira foi substituído há poucos anos, — quando da administração interina do Dr. Willian Leão, na Prefeitura — por um belo cruzeiro de cimento armado, que se ilumina à noite, através de força da Cemig.
Na década de vinte, — para citar o nosso tempo — e posteriormente também, todo ano, no dia 3 de maio, grande parte do povo da cidade subia a pé até o alto da serra, desobrigando-se de um dever cristão, rezando ao pé da Santa cruz e na Capela Senhor do Bonfim. Naquela época, atravessa-se o Rio São João sobre a ponte de madeira e seguia-se estrada afora até o sopé da serra. Ali, a gente deixava a estrada boiadeira e ganhava uma vereda íngreme e sinuosa, para subir a serra até junto ao cruzeiro e a capela. Era uma subida longa e cansativa. Mais ou menos no meio da jornada, havia um muro seco, de pedras superpostas, que atravessava a montanha em sentido horizontal, para divisão de pastos da fazenda do Retiro. No decorrer do tempo, no local onde as pessoas tinham que pular o muro, as pedras foram caindo e rolando pelas escarpas, tornando aquele setor uma passagem permanente para o povo, a caminho da igrejinha.
Olhada de seu cume, a Serra do Bonfim é muito bonita pela sua configuração arredondada no alto, em cujo platô, quase plano, acham-se edificados o cruzeiro e a capela. Na retaguarda desta, ou seja, o lado norte da serra, a sua descida não é muito longa, porque está ligada logo abaixo a uma cadeia de pequenas montanhas. Para o oeste, ou seja, para as bandas do pequeno córrego Lava-pés, que fica lá em baixo, no vale, é um verdadeiro penhasco de grande profundidade! Para o leste, lado do futuro "campus" da Universidade, a sua conformação é bastante íngreme e extensa. E para o sul ou o lado que dá para a cidade, já é do nosso conhecimento a sua extensão e declividade.
Do lado direito da vereda, para quem sobe, e quase chegando ao cume da montanha, há um grande esbarrancado — ou terra quebrada — produzido pelas enxurradas das águas pluviais. Ele descamba do novo trevo da rodovia que faz ligação com a estrada de Pará de Minas. Desde a época em que a gente era menino, já existia ali aquela forte erosão no terreno, a partir do alto, até a fralda da serra, atingindo em baixo a estrada que seguia em direção ao Calambau e alhures. Ainda agora, com a ligação da rodovia Itaúna – Pará de Minas, num corte do terreno, pouco acima da usina de asfalto, a gente avista o finalzinho daquela erosão da serra. O esbarrancado acima descrito começa precisamente na vala (valado) que existia ali na divisa entre duas propriedades agrícolas: a fazenda do Retiro, que pertencia ao Sr. Astolfo Dornas e o sítio do Nhô da Joanica, hoje pertencente à Universidade de Itaúna.
Lá do alto da serra, descortina-se uma vista maravilhosa em todas as direções quando vales e serras se intercalam em dezenas de quilômetros horizonte afora! ... E nos vales distantes, a gente avista as silhuetas de diversos lugarejos que cintilam ora ali, ora acolá. É uma visão simplesmente deslumbrante, que nos oferece aquele quadro pintado por Deus! ...
Chegada à noite no dia 3 de maio, da cidade a gente avistava o fogo baixo que se alastrava em formato de eito, pelas bacias e escarpas da serra, sinal evidente de que alguém atirara um fósforo aceso ao capim, ás margem da trilha. Este fato parecia ser do gosto de certas pessoas que subiam a serra do Bonfim, no dia de Santa Cruz, porque as queimadas se repetiam todos os anos!
Até alguns anos atrás, após a festa da Santa Cruz, a Serra do Bonfim voltava a sua tranquilidade de sempre, recebendo na época de estiagem os raios solares desde o amanhecer, até que o astro-rei se escondesse no poente, e no inverno, a chuva mansa ou forte caindo do céu, dando às árvores, os arbustos, a pastagem e toda aquela vegetação, cujas raízes se infiltravam nas suas entranhas.
Mas a partir de três anos, mais ou menos, o PROGRESSO, sob a bandeira desfraldada pela Telecomunicações de Minas Gerais S/A com a "sigla" Telemig, começou a perturbar a tranquilidade da Serra do Bonfim. Primeiramente, através do estado, desapropriando uma faixa de terreno serra acima, para que fosse construída ali uma estrada de automóvel até o cume da montanha. Esta via de acesso destina-se ao transporte de pessoas e material de construção, para as obras que deveriam ser edificadas naquele local pela Telemig, com amplo programa de melhoramento nas comunicações com outras cidades do País pelo sistema de discagem direta à distância (DDD) o que viria realmente beneficiar muito à comunidade itaunense.
Elaborado que foi o projeto para esse empreendimento, a direção da Telemig pôs em ação as suas máquinas. A partir da rodovia MG 050, ex- MG 07, os tratores com as suas lâminas gigantescas, começaram a penetrar nas entranhas da serra, arrebentando pedras, arrancando árvores, cortando barrancos e seguindo o traçado da engenharia com curvas à direita e à esquerda, procurando contornar a subida da serra até o seu cume.
Durante meses, os motores daquelas possantes máquinas fizeram-se ouvir de longe suas arrancadas morro acima; com as suas lâminas abrangentes, iam revirando a terra, aplainando, abaulando a curta estradinha do Bonfim. E de nada valeram os protestos silenciosos da serra, contra a penetração da máquina avassaladora nas suas entranhas! A terra que ia sendo revolvida, rolando na frente da lâmina do trator, era como se fosse o sangue de suas veias!
Dentro de algum tempo estava pronta aquela estradinha de acesso ao alto da serra. Mas aquilo era apenas o começo da MUTILAÇÃO da montanha, porque havia ainda outros planos, para sangrar fundo a sua natureza! Realmente, na retaguarda da Capela, questão de uns dez metros de distância, a máquina dirigida pelo homem, começara a penetrar de novo nas suas entranhas, cortando barrancos e espalhando a terra aqui e ali, a fim de transformar aquele local numa pequena praça, o que foi realizado no decorrer de alguns meses.  O corte para o lado da capelinha ficou mais de três metros de altura. Aquele setor da serra ficou plano como se fora um campo de futebol. Ali construíram a casa de máquinas e diversas outras aparelhagens, para os fins a que se propunha a Telemig. E aquela plataforma da retaguarda da igrejinha desvirtuou a configuração primitiva da serra, porque ela deixou de ser o que fora antes. Também ali, ela protestou em silêncio contra sangria que fizeram no seu corpo físico! É que a natureza tem alma também! Era a máquina, através do homem, DESFIGURANDO as coisas da natureza, procurando transformar a montanha em planície! ...

Fonte/Texto:
FAGUNDES, Osório Martins. Fragmentos de Um Passado – Memórias, Narrativas, Homenagens, Crônicas, e Cartas, 1977, p. 626,627,628. 

Pesquisa: Charles Aquino / 7º Período História / UEMG

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