Desejo
divulgar o trabalho que se segue, de autoria de Maria Lima, neta do principal
fundador da Cia. De Tecidos Santanense, seu primeiro Diretor Presidente — Cel.
Manoel José de Souza Moreira, conforme consta das “Disposições Transitórias”
dos Estatutos de 26 de setembro de 1891.
A fábrica
da Santanense foi inaugurada dia 7 de setembro de 1895, quando era gerente o
pai da autora do artigo, o Cel. João de Cerqueira Lima.
É
importante registrar, antes, o testemunho que a autora Maria Lima juntou ao
texto quando, por carta, em 1951, o remeteu do Rio de Janeiro:
“Procurei fazer este pequeno trabalho sobre a
vida de meu avô, com a maior sinceridade possível. Uma biografia deve ser fiel
como uma radiografia. E o biógrafo, desapaixonado com o radiologista.
Se tiver alcançado meu objetivo terei de
agradecer as informações de minha mãe, Donana, filha de Manoel José de Souza
Moreira, testemunha de grande parte dos fatos relacionados com o pai e uma
grande apaixonada pela verdade — “Eu falo é a verdade”, diz minha mãe a todo
instante.
É agradável saber que tão ilustre e notável
pioneiro é avô de meu sogro, bisavô de meus filhos e tetravô de meus netos! ”
Guaracy
de Castro Nogueira
Quando se
pergunta a Manoel José de Souza Moreira quantos anos tinha, ou quando fazia
anos, respondia sistematicamente: “ Eu regulo com Dom Pedro II”.
Não era
para parecer mais moço que respondia assim. Porque D. Pedro II nasceu a 2 de
dezembro de 1825 e Manoel José de Souza Moreira nasceu em 5 de fevereiro de
1829. Era três anos, dois meses e três dias mais moço que o Imperador.
Será que
esta resposta saía de uma admiração por Pedro II, ou vinha de um meio de extravasar
seu desejo de ter nascido nobre? Admitindo-se exclusivamente a segunda
hipótese, pode-se afirmar que Manoel José de Souza Moreira soube tirar dessa
pequena fraqueza elementos para fazer de si mesmo um homem nobre, na verdadeira
acepção da palavra.
Nasceu em
Bonfim, Estado Minas Gerais. Era filho do fazendeiro, Guarda – Mor Antônio de
Souza e de Maria Sabina do Nascimento. Passou a residir em Sant’Ana do Rio São
João Acima em 1841, por aí assim.
Viera
praticar no comércio com o parente Manoel Gonçalves Cançado, para cuja casa
seus pais o haviam mandado. Existia outro motivo — pretendiam casá-lo com a
Aninha (Ana Joaquina de Jesus), segunda filha de Manoel Gonçalves Cançado e
Tereza Maria da Conceição.
A mais
velha (Maria Felizarda) tinha casado com o Francisco, irmão mais velho de
Manoel José de Souza Moreira e que também tinha ido praticar no comércio com o
pai da moça.
Mais uma
vez, como posteriormente em mais três vezes consecutivas (vieram ainda o
Vicente, o José e o Joaquim, que se casaram com Joaquin, Delfina, Domitila
respectivamente), a pretensão dos pais, tanto de um lado como de outro, se
transformava em realidade.
Manoel e
Aninha casaram-se. Ele com vinte anos. Ela quatorze. Deram-se sempre muito bem,
parecendo ter nascido um para o outro. Tratavam-se por primos.
— Primo
Manoel, dizia ela. Com essa dispepsia não vou muito longe.
— Qual o
que, prima Aninha! Eu vou durar menos que você. Mulher doente mulher pra
sempre!
Viveram
casados quarenta e nove anos. Ele tinha razão. Não foi ela quem se foi mais
cedo. Foi ele aos 69 anos de idade. Ela faleceu com setenta e quatro.
Tiveram
doze filhos: Manoel (Manoelzinho), Virgílio, Maria (Cota), Tereza, Augusto,
Josias (falecido em criança), Orozimbo, Migdônio, Castorina, Maria (Neca),
Jovino e Ana (Donana).
Manoel
José de Souza Moreira era um crente. Trabalhou gratuitamente, como servente de
pedreiro na construção da velha Matriz. Não deixava de ir à missa aos domingos.
Nem de confessar-se e comungar pelas Missões. Era esse o costume naquele tempo.
O sino
tocava para a missa. Se estava atendendo um freguês (era negociante) dizia-lhe
no seu jeito de falar, baixo e enrolado: “Vamos à missa, depois voltamos para
acabar com isto. Fechava as portas e saía para a igreja junto com o freguês.
Não faltaram na sua vida episódios interessantes para demonstrar a qualidade
magnífica de seu caráter e de sua inteligência.
Um deles
foi no Rio. Passava pela rua do Ouvidor. Deu com os olhos numa taboleta com a seguinte inscrição:
“Dá-se o prêmio de 50$ooo a quem ganhar uma partida de Dama”.
Atravessou
a rua. Atrás de um guichê, um homem de que se viam apenas as mãos, movimentava
as pedras. Em pé na calçada, um concorrente jogava.
Esperou
acabar a partida, ganha pelo homem escondido atrás do guichê. Ofereceu para
jogar. Jogou e ganhou.
O adversário propôs nova partida. Aceitou ganhando
novamente. O homem de trás do guichê mandou chama-lo lá dentro. Queria uma
explicação sobre o jogo.
O
comerciante de Sant’Ana do Rio São João Acima explicou-lhe os lances
matemáticos que costumava fazer. E ao lhe ser entregue a importância a que
tinha direito, recusou-se a recebe-la. Desculpou-se. Jogava para distrair-se.
Não podia, portanto, ser remunerado.
Outra
vez, foi em sua casa comercial. Um desconhecido chegou para fazer compras.
Primeiro pediu sete metros de chita. O negociante tirou da prateleira a peça
apontada, colocou-a sobre o balcão. O desconhecido examinou a fazenda entre os
dedos, perguntou quanto era. — Tanto.
Respondeu o negociante.
O homem
achou caro e pediu diferença. O negociante percebeu que o sujeito não entendia
do artigo. E percebeu também que se não concordasse com a diferença solicitada,
perderia a oportunidade de adquirir um freguês.
Concedeu a diferença. E,
supondo que a exigência viesse a ser repetida, foi aumentando um pouco o preço
das outras mercadorias pedidas, para lhe ser possível satisfazer o comprador,
sem se prejudicar.
Aconteceu
que o freguês não discutiu mais os preços, aceitando-os sem condições. No fim,
o negociante sem o desconto concedido na chita, outra, com a diferença e os
aumentos feitos propositalmente. O freguês aceitou a primeira. E tornou-se
comprador assíduo na Casa do sr. Manoel, como era conhecida.
Lia sobre
a medicina. Como não havia médico nas redondezas, atendia os doentes que o
procuravam, tratando por homeopatia. Diagnosticava, receitava, fornecia os
remédios. Tudo de graça. Lia sobre
direito. Se havia questão entre os fazendeiros, ele era consultado, E sua
decisão, acatada. Se havia engano nas medições de terras, ele as conferia. Era
o agrimensor.
Era de
estatura mediana, claro, corado, cheio de corpo, rosto largo, testa estreita,
olhos miúdos e claros, cabelos lisos e escuros, barba bastante farta e longa.
Alegre, jovial, gostava de conversar.
Conversava com todo mundo que passasse a
porta de sua casa.Inteligente,
compreendia o valor da instrução. Queria que todos os filhos estudassem. Todos
estudaram um pouco. Só o Augusto pode forma-se. Formou-se em medicina.
Deve ter
sido uma alegria imensa para o pai ter um filho médico! Neca e Castorina
estudaram em Mariana. Donana, muito franzina, talvez não pudesse suportar o
rigor de um colégio de freiras daquela época. Estudou num colégio de leigas
existente em Pitangui.
De
severidade serena, impunha-se ao respeito dos filhos, dos irmãos, dos
sobrinhos, de todos. Gostava de música. Tocava viola. Depois aos quarenta e
tantos anos, adquirindo no Rio um piano para sua filha Castorina, começou a
fazer umas escalas e alguns exercícios fáceis. Apesar dos dedos já estarem
perros, conseguiu tocara algumas valsas e polkas.
Aos
sessenta anos, resolveu fechar a casa comercial. Era tempo de descansar. O
homem não deve trabalhar depois dos sessenta. Deve aposentar-se, pensava.
Proferia provérbios e se deixava influenciar por eles. “Quem aos vinte não tem barba, aos trinta não casa, aos quarenta não
terá nem barba, nem casa”. Tinha
sessenta anos. Se não tivesse feito alguma coisa até alí, não o faria mais.
Dava conselhos: “Meu filho, se tiver
dinheiro par emprestar, empreste. Abonar, não abone, nunca! ”
Mas o seu
temperamento não pôde suportar a inação. E começou-se a fase mais agitada da
sua vida. Começou de um sonho. Sabendo da fundação da Companhia de Tecidos
Cedro e Cachoeira pela família Mascarenhas, na fazenda de São Sebastião em Curvelo,
desejou fundar uma congênere em Sant’Ana, reuniu os filhos, os parentes, os
amigos, comunicou-lhes o plano.
Em 1891,
houve a Assembleia Consultiva de acionistas, instalando-se a Companhia de Tecidos Santanense, com o
capital de Cr$600.000,00. E com a seguinte diretoria: Manoel José de Souza
Moreira, diretor-presidente; seu genro, Antônio Pereira de Mattos,
diretor-gerente; seu filho, Manoel Gonçalves de Souza Moreira,
diretor-tesoureiro.
Antônio
Pereira de Mattos, apesar de ter prestado serviços incalculáveis à Companhia no
período de sua fundação, não exerceu praticamente as funções de gerente, devido
à sua profissão de viajante.
Exerceram-na, nesse período, Manoel Gonçalves de
Souza Moreira, homem de fortuna feita e bastante experimentado em negócios;
depois, o próprio Manoel José de Souza Moreira e finalmente João de Cerqueira
Lima.
A obra
era arrojada demais para a época. Havia falta de organização no trabalho
remunerado, em consequência de ainda recente abolição dos escravos; havia falta
absoluta de técnicos; falta de meios de transportes: eram os carros de bois que
chiavam lentos nos caminhos estreitos; falta de segurança na vida política do
país, então nos primeiros anos da República. Tudo isto vinha prejudicar o
nascimento da empresa.
A certo
ponto, Manoel Gonçalves de Souza Moreira (Manoelzinho) perdeu o ânimo para
prosseguir. E sugeriu que se paralisassem as obras. Com certeza, pensava em
evitar consequências piores. Seu pai não concordou com isto. Manoelzinho deixou
então a gerência.
Manoel
José de Souza Moreira tomou a si mesmo o encargo de tudo. Viveu dias
atribuladíssimos. Atormentava-o principalmente a responsabilidade assumida
perante amigos que, confiando nele, haviam adquirido ações da Companhia e empatado
nela suas reservas.
Paralisar
as obras, como seu filho pretendia, seria uma fuga à hora do combate. Não havia
outro jeito senão continuar o trabalho começado. Velho, já muito doente, ia
curvado sobre o cavalo, todos os dias, a Santanense, para inspecionar tudo.
Em 1895,
João de Cerqueira Lima, recém-casado com Donana, sua filha caçula, assumiu a
gerência da Companhia.
O velho
batalhador se sentia cada vez mais combalido. Seu coração se sentia vez mais
fraco. A respiração, cada vez mais difícil. O aneurisma avançava para a fase
final.
Em
setembro de 1895, a fábrica começou a funcionar. Seu grande fundador chegou a
escutar, encantado, o barulho dos teares e a ver rodopiarem os fusos nos filatórios. Dois anos depois, a doença o
impedia de sair de casa. Era informado de todos os negócios. E verificava,
satisfeito, que a Companhia estava indo bem.
Em
outubro de 1898, seu estado de saúde piorou muito. Os pés, muito inchados. A
dispneia, horrível! Finda a primeira semana de dezembro, caiu numa inconsciência
completa. Parecia não ver, nem escutar. Mas, num domingo, não se sabe se foram
os sinos da igreja que o despertaram desse torpor,
ou se foi o aviso da morte: recuperou a lucidez.
Mandou chamar o padre Antônio,
confessou-se, comungou e passou o resto do dia falando e fazendo recomendações:
“Quero que perdoem as dívidas do Orozimbo
e do Migdônio. Do contrário, não vão receber nada no inventário ... Deem ao
Augusto um conto de réis. Ele teve muito trabalho em tratar de mim...”
À
tardinha, prima Aninha estava perto dele, arrumando a lamparina de azeite.
Primo Manoel disse então, olhando-a pela derradeira vez neste mundo: “Você, prima Aninha, vai viver ainda mais uns
dez a onze anos”. Disse isto, fechou os olhos e caiu de novo em estado de
inconsciência. Alguns dias depois, suspirou e se foi para sempre, na tarde de
22 de dezembro de 1898.
Passados
dez anos, onde meses e três dias, a prima Aninha partia deste mundo para lhe
fazer companhia no outro.
Manoel
José de Souza Moreira passou pela terra, na venturosa Sant'Ana do São João
Acima, como servente de pedreiro, comerciante, médico, jurisconsulto,
agrimensor, artista e industrial. E, também como um profeta.
REFERÊNCIAS:
NOGUEIRA, Guaracy de Castro. Texto
editado no jornal “O Itaunense” em agosto de 1988, p.6-7.
Instituto Cultural Maria Castro Nogueira. Texto
original datilografado por Marina Lima e enviado aos cuidados do dr. Guaracy de
Castro Nogueira.
Acervo: Instituto Cultural Maria
Castro Nogueira
Fotografia: Charles Aquino
LIMA, Maria: Texto
biográfico escrito em 1951 para o Cinquentenário de Itaúna.
Pesquisa e organização: Charles
Aquino