domingo, agosto 31, 2025

DR. JOSÉ GONÇALVES

O Dr. José Gonçalves de Souza nasceu em 9 de setembro de 1862, no arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima — atual cidade de Itaúna, Minas Gerais. 
Foi batizado aos 27 dias de vida pelo pároco Padre João Batista de Miranda, tendo como padrinhos o Guarda-Mor Antônio de Souza Moreira e Dona Thereza Maria de Jesus. 
Filho do coronel José Gonçalves de Souza Moreira e de Delfina Gonçalo de Souza Moreira, pertencia a uma das famílias mais tradicionais e influentes da região.

Em sua juventude, iniciou os estudos primários em sua terra natal, prosseguindo depois com o curso secundário em Ouro Preto. Mais tarde, frequentou o renomado Colégio do Caraça, considerado um dos centros de ensino mais prestigiados do Império. 

Seguindo sua vocação, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, onde concluiu o curso de “Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais” em 1886. Essa formação daria a ele as ferramentas para uma vida pública que uniria direito, política, economia e educação.

Casou-se com Cecília Bahia Gonçalves, filha do Major Francisco Bahia Rocha, tradicional família mineira. O casal teve oito filhos: três mulheres e cinco homens, consolidando laços familiares que se estendiam entre Itaúna, Pitangui e Belo Horizonte. Sua ligação com a cidade foi não apenas institucional, mas também afetiva, registrada em discurso no qual afirmou: “Como é que não hei de gostar da terra de minha mulher e berço de meus filhos?”

Fixou-se em Pitangui como Juiz de Direito, cidade onde construiu sólida reputação de advogado e liderança política. Tornou-se figura respeitada pela seriedade no exercício da magistratura e pela defesa das liberdades civis, destacando-se ainda como chefe do movimento conhecido como gonçalvismo, que marcou profundamente a história local em oposição ao vasquismo de Vasco Azevedo. 

Essa rivalidade encontrou um de seus momentos mais emblemáticos na Sedição de 1896, quando José Gonçalves defendeu juridicamente os líderes populares acusados de sublevação, garantindo sua absolvição em júri realizado em Pará de Minas. O episódio reforçou sua imagem de advogado comprometido com a justiça e, ao mesmo tempo, consolidou sua posição como chefe político de uma corrente que dominaria a vida pública pitanguiense por décadas.

A sua trajetória política percorreu diferentes instâncias como Deputado, Senador Estadual e Deputado Federal. No Governo de Júlio Brandão (1910–1914), ocupou a pasta de Secretário da Agricultura, Indústria, Terras, Viação e Obras Públicas, cargo estratégico em um momento de expansão e modernização de Minas Gerais. Nesse período, reforçou políticas de apoio à agricultura, industrialização e educação técnica.

Dr. José Gonçalves também atuou no setor privado, presidindo a Companhia de Tecidos Industrial Pitanguiense e a Companhia de Tecidos Santanense de Itaúna, além de fundar a União dos Manufatores Têxteis (1902), consolidando-se como elo entre política e economia.

Sua liderança ajudou a consolidar Minas Gerais como polo emergente da indústria têxtil. Essa dupla liderança, política e empresarial, exemplifica como sua trajetória ultrapassou fronteiras municipais, projetando-o como figura central da Primeira República mineira.

Um marco de sua forte ligação com Itaúna foi a fundação da Cooperativa de Laticínios Itaunense (1911). Em 19 de março de 1913, participou da inauguração da sede e da fábrica, sendo homenageado como símbolo da modernização agroindustrial. Sua presença legitimou a iniciativa, projetando Itaúna no cenário estadual como polo de inovação no setor lácteo.

Entre suas muitas realizações, destacou-se a fundação da Escola Livre de Engenharia de Belo Horizonte, em 1911 — um marco para a educação mineira e um passo decisivo para preparar gerações de engenheiros que ajudariam a transformar o país. 

Como Secretário de Agricultura, presidiu a reunião de fundação e assumiu o cargo de primeiro diretor. Essa iniciativa não apenas atendeu às demandas técnicas de um estado em industrialização, mas também representou sua visão estratégica de formar quadros para o futuro.

Segundo o Monsenhor Vicente Soares, em A História de Pitangui, o Dr. José Gonçalves contribuiu para a construção da nova Matriz de Nossa Senhora do Pilar, após o incêndio do templo em 1914. Colocou à disposição da comissão construtora o engenheiro Dr. Benedito José dos Santos, responsável pela planta da nova igreja, o que demonstra seu compromisso com a religiosidade e o patrimônio cultural da cidade.

Sua memória permanece viva não apenas em Itaúna, sua terra natal, mas também em Pitangui. Até poucos anos, segundo o blog Daqui de Pitanguy, existia na Praça Brito Conde, no coração da cidade, um busto em sua homenagem. A presença desse monumento revelava o reconhecimento público e a tentativa de eternizar sua importância na paisagem urbana.

 Ainda que o busto já não esteja lá, o registro da homenagem ajuda a compreender como a cidade guardava e projetava sua memória. Além disso, uma rua próxima à Igreja Matriz continua a lembrar seu nome: Rua José Gonçalves.

Outro testemunho da preservação de sua memória está na área da educação no município de Itaúna. Em 23 de março de 1955, por meio do Decreto nº 4.497, assinado pelo então governador Juscelino Kubitschek, as Escolas Reunidas “Dr. José Gonçalves” foram transformadas em Grupo Escolar, com a mesma denominação. Com o passar dos anos, a instituição passou a ser denominada Escola Estadual José Gonçalves, mantendo viva a homenagem ao ilustre itaunense.

Homem íntegro, de espírito republicano e progressista, José Gonçalves foi reconhecido como orador brilhante, advogado respeitado, político atuante, empresário visionário e educador transformador. Sua vida cruzou os mundos da política, da economia e da cultura, sempre com compromisso com o desenvolvimento regional. Faleceu em 6 de junho de 1937, sendo sepultado em Belo Horizonte, no Cemitério do Bonfim, onde repousa como um dos grandes nomes da história de Minas Gerais.

Assim, a trajetória do Dr. José Gonçalves de Souza não pode ser compreendida sem considerar suas raízes profundas em Itaúna, sua cidade natal, onde recebeu o berço e os primeiros valores familiares, e em Pitangui, cidade onde casou, teve seus filhos e consolidou sua carreira pública e política. Esses dois municípios foram os pilares de sua vida pessoal e profissional, espaços onde deixou marcas de progresso, cultura e memória.

Itaúna lhe deu o berço; Pitangui lhe deu os frutos. Entre ambas, construiu-se o legado de um homem que soube unir tradição e modernidade, tornando-se símbolo de liderança, empreendedorismo e desenvolvimento para toda a região. 


NOTA

MARCO INICIAL DA ESCOLA ESTADUAL DR. JOSÉ GONÇALVES

Um marco decisivo na história da Escola Estadual Dr. José Gonçalves foi a assinatura do Decreto nº 4.497, em 23 de março de 1955, pelo então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira. Esse documento transformou as antigas Escolas Reunidas “Dr. José Gonçalves”, que já funcionavam em Itaúna, em Grupo Escolar, consolidando sua estrutura pedagógica e administrativa.

Naquele período, as Escolas Reunidas reuniam diversas turmas do ensino primário em um mesmo espaço. Já os Grupos Escolares representavam um avanço significativo: contavam com direção própria, professores especializados e organização por séries. A mudança significava, portanto, um salto de qualidade na educação local, em sintonia com as transformações vividas em Minas Gerais e no Brasil.

O decreto fundamentava-se na alínea “g”, do artigo 4º da Lei nº 408, de 14 de setembro de 1949, que concedia ao governador a atribuição de transformar Escolas Reunidas em Grupos Escolares sempre que necessário. Assim, ao assinar o decreto em 1955, Juscelino apenas colocava em prática uma prerrogativa já prevista em lei.

Esse ato marcou o início de uma nova fase para a educação em Itaúna, com maior reconhecimento oficial, melhores condições de ensino e a consolidação do nome Dr. José Gonçalves como patrono da instituição.

Portanto, o marco inicial do nome “Escola Estadual Dr. José Gonçalves” foi oficialmente estabelecido em 23 de março de 1955.


Referências:

Pesquisa, elaboração e arte: Charles Aquino – Historiador Registro nº 343/MG

Imagem restaurada com IA. 

Acervo: IHP - Instituto Histórico de Pitangui 

Acervo Faculdade Engenharia:  UFMG, Marco Elísio.

"Brasil, Minas Gerais, Registros da Igreja Católica, 1706-2018," database with images, FamilySearch (https://familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HT-D1X7-HPD?cc=2177275&wc=M5N9-L29%3A370027101%2C369941902%2C370648401  : 22 May 2014), Divinópolis > Santana > Batismos 1858, Dez-1874, Fev > image 62 of 274; Paróquias Católicas (Catholic Church parishes), Minas Gerais.

AQUINO, Charles. Cooperativa Laticínios Itaunense. Itaúna em Décadas, 20 dez. 2018. Disponível em: https://itaunaemdecadas.blogspot.com/2018/12/cooperativa-lacticinios-itaunense.html

AQUINO, Charles. Gonçalvismo em Itaúna. Itaúna em Décadas, jun. 2024. Disponível em: https://itaunaemdecadas.blogspot.com/2024/06/goncalvismo-em-itauna.html

BRASIL. Estado de Minas Gerais. Decreto nº 4.497, de 23 de março de 1955. Transforma as Escolas Reunidas “Dr. José Gonçalves”, de Itaúna, em Grupo Escolar, com a mesma denominação. Disponível em: ALMG – Assembleia Legislativa de Minas Gerais. https://www.almg.gov.br/legislacao-mineira/texto/DEC/4497/1955/

Blog Daqui de Pitanguy. Disponível: https://daquidepitangui.blogspot.com/

DINIZ, Sílvio Gabriel. O Gonçalvismo em Pitangui: História de trinta anos de domínio político. Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 28, p. 9-11, 20-33, 44, 51-52, 81-82, 1969.

Jornal A UNIÃO (Ouro Preto). Ano 1886, n. 33, p. 2, 22 dez. 1886. Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=714640x&pagfis=111 

SOARES. Monsenhor Vicente. A história de Pitangui. BH, 1972, p.252–254.

SOUZA, Miguel Augusto Gonçalves de. História de Itaúna, BH, Ed. Littera Maciel Ltda, 1986, p. 229-232.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Escola de Engenharia comemora centenário de sua primeira turma de graduados. UFMG 90 anos, 29 mar. 2017. Disponível em: https://www.ufmg.br/90anos/escola-de-engenharia-comemora-centenario-de-sua-primeira-turma-de-graduados/

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Escola de Engenharia comemora centenário de sua primeira turma de graduados. UFMG 90 anos, 29 mar. 2017. Disponível em: https://www.eng.ufmg.br/portal/aescola/historico/

sábado, agosto 30, 2025

O MAESTRO DA PEDRA NEGRA

Poucas cidades podem orgulhar-se de ter sua identidade cívica tão fortemente marcada por uma obra musical como Itaúna. O Hino Oficial do Município, cuja letra foi composta pelo Dr. José Valeriano Rodrigues e cuja melodia nasceu do talento do Professor e Maestro Jesus Ferreira, é uma síntese da história, da fé, do trabalho e do progresso que moldaram a comunidade.

Jesus Ferreira, homem simples e profundamente ligado às raízes itaunenses, possuía a habilidade rara de traduzir em sons aquilo que a poesia exalta em palavras. Sua música deu vida aos versos que celebram Sant’Ana, a fé dos primeiros habitantes, o trabalho árduo dos ancestrais e o desenvolvimento industrial da cidade.

Em 1956, escrevendo de São Paulo, o Professor Jesus Ferreira dirigiu-se ao irmão Cosme Caetano da Silva – "jornalista, advogado, radialista, dramaturgo, político e também homem das artes". Nessa carta, registrada com carinho e esperança, ele relatava o desafio de musicar os versos de Valeriano Rodrigues e o desejo de ser útil à sua “cara Itaúna”:

“Fiz tudo o que estava ao meu alcance para agradar a vocês e me sentirei muito feliz se puder ser de alguma forma útil a nossa cara Itaúna. Se conseguirmos o prêmio, irei até aí, e celebraremos…”

A carta revela não apenas o processo criativo, mas também o afeto que Jesus nutria pela cidade e pela família. Com humildade, ele confiava que seu trabalho pudesse conquistar o júri e perpetuar-se como símbolo municipal.

Veio a confirmação: a melodia de Jesus Ferreira foi escolhida em concurso público, recebendo a consagração oficial. A Lei Municipal nº 331, de 11 de outubro de 1956, sancionada pelo prefeito Milton de Oliveira Penido, oficializa o hino, legitima a escolha popular e reconhece a obra de Valeriano Rodrigues (letra) e Jesus Ferreira (melodia).

A norma resultou de um concurso público, previsto por Lei Municipal que estabeleceu uma comissão julgadora composta por personalidades locais (Lincoln Nogueira Machado, Padre Waldemar Antônio de Pádua Teixeira e Professor Osvaldo Chaves).  Mais tarde, a Lei nº 416, de 2 de junho de 1958, reforça juridicamente a decisão, corrige e consolida a redação legal, transformando o hino em um símbolo municipal.

A importância do Hino de Itaúna e dos demais símbolos oficiais foi reforçada décadas depois pela Lei nº 3.278, de 12 de agosto de 1997, que determinou a obrigatoriedade do ensino do significado e valor dos símbolos oficiais do município, bem como do canto e da interpretação da letra do hino, em todos os estabelecimentos de ensino público da cidade. Os símbolos definidos pela lei — Hino, Bandeira e Brasão — tornaram-se parte da formação cidadã das novas gerações, garantindo que o legado de Jesus Ferreira e de José Valeriano Rodrigues permanecesse vivo não apenas em cerimônias cívicas, mas também nas salas de aula, onde crianças e jovens aprendem a valorizar sua história e identidade.

Legado e Memória

A melodia criada pelo Maestro Jesus Ferreira não é apenas acompanhamento musical: ela transforma a poesia em experiência coletiva. O ritmo solene e ao mesmo tempo vibrante permite que o hino seja entoado em cerimônias oficiais, escolas e eventos culturais, unindo gerações em um mesmo sentimento de pertencimento.

A música ressalta a grandeza da terra natal, reforça a religiosidade com a devoção a Sant’Ana e ecoa o som das fábricas, do ferro e dos teares que fizeram de Itaúna um centro de trabalho e esperança.

Hoje, ao se ouvir o Hino de Itaúna, ressoam não apenas versos e notas, mas também a dedicação de um professor que, em meio às dificuldades da vida cotidiana, soube transformar talento em patrimônio cultural. A carta ao irmão Cosme é um documento vivo desse momento histórico, mostrando que, antes da glória, houve esforço, humildade e amor pela cidade natal.

O legado do Maestro Jesus Ferreira, bem como o de seu irmão Cosme Caetano, ultrapassa a obra musical. Representa a união de família, arte e cidadania em prol de Itaúna. Cada vez que o hino é entoado, é como se a voz do professor ainda ecoasse, conduzindo em melodia o orgulho de um povo. Assim, o nome do Professor e Maestro Jesus Ferreira ficou eternamente gravado na história de Itaúna (Pedra Negra), como o compositor da trilha que embala os ideais de fé, luta e progresso.

 VEJA MAIS...

HINO DE ITAÚNA

O MAESTRO DA ALMA

PROFESSOR ITAUNENSE

ENSINO DOS SÍMBOLOS

BRASÃO DO MUNICÍPIO

BANDEIRA DE ITAÚNA

JORNAL FOLHA DO POVO

SETEMBRO CELEBRAÇÕES

Referências:

Pesquisa e elaboração: Charles Aquino – Historiador Registro nº 343/MG

Imagem meramente ilustrativa criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.       

Carta datilografada de Jesus Ferreira (SP) ao irmão Cosme Silva (MG) – Acervo Professor Giovanni Vinicius (sobrinho de Jesus e filho de Cosme).

ITAÚNA (Município). Lei nº 331, de 11 de outubro de 1956. Adota letra para o “Hino do Município de Itaúna”. Itaúna: Prefeitura Municipal, 1956.

ITAÚNA (Município). Lei nº 416, de 2 de junho de 1958. Modifica o artigo 1º da Lei nº 331, de 11 de outubro de 1956. Itaúna: Prefeitura Municipal, 1958.

ITAÚNA (Município). Lei nº 3.278, de 12 de agosto de 1997. Dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino do significado dos símbolos oficiais do Município, bem como do canto e da interpretação da letra do Hino Municipal nos estabelecimentos de ensino público. Itaúna: Prefeitura Municipal, 1997.

ITAÚNA DÉCADAS - Biografia Cosme Silva    

sexta-feira, agosto 22, 2025

ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS

Encomendação das Almas em Itaúna 

Quando a Quaresma se instala em Itaúna, a cidade parece ganhar outro fôlego, mais lento, mais denso, como se as ruas guardassem segredos que só a noite conhece. É então que, às quartas e sextas-feiras, um pequeno cortejo rompe a rotina, trazendo consigo a memória de tempos antigos: a Encomendação das Almas.

Não há badalos de sinos nem anúncios festivos. O chamado vem do silêncio, da chama trêmula das velas, do som áspero da matraca que corta a noite como um lamento. À frente, uma cruz coberta por pano roxo guia os passos — cor da penitência, da espera, do mistério. 

Atrás dela, homens e mulheres seguem com o olhar fixo, em silêncio profundo, obedecendo ao preceito de nunca voltar os olhos para trás. Dizem que quem ousa quebrar essa regra pode ver o que não deve: as almas que caminham junto ao grupo, invisíveis, mas presentes, ansiosas pelas preces que lhes são oferecidas.

As ruas, de repente, se tornam santuário. Em cada encruzilhada, em cada cruzeiro de pedra, o cortejo se detém. O “tirador” entoa, em tom grave, o cântico que atravessa gerações: “Alerta, pecador, alerta...” E o coro responde, como um eco antigo, unindo vozes em súplica pelas almas esquecidas no purgatório. É um canto de dor, mas também de esperança — um fio que costura o visível e o invisível, o humano e o divino.

Do lado de dentro das casas, moradores acompanham em silêncio. Rezam suas Ave-Marias, acendem pequenas luzes, deixam-se tocar pela melodia que entra pelas frestas das janelas. A cidade inteira parece rezar junto, ainda que muitos nem estejam nas ruas. O rito não é apenas visto, é sentido.

A cada parada, a cena se repete, mas nunca é a mesma. No cemitério, o ar parece mais denso; diante da igreja, mais leve; na encruzilhada, mais misterioso. O som da matraca anuncia o início e o fim de cada momento, despertando não apenas as almas, mas também a consciência dos vivos: somos todos, um dia, memória à espera de oração.

Quando a meia-noite se aproxima, o cortejo se encerra diante de uma igreja. O último cântico, “Bendita sejais”, sobe como uma prece derradeira. As velas se apagam, e o silêncio retorna às ruas. Mas não é um silêncio vazio: é o silêncio cheio da presença dos que já partiram, reconfortados pelas vozes dos vivos.

Assim, ano após ano, a Encomendação das Almas em Itaúna refaz a ponte entre tempos e mundos. É mais que um ritual; é uma crônica viva, cantada e rezada, que recorda aos vivos a fragilidade da existência e oferece às almas a esperança da eternidade.

 

RELIGIOSIDADE, PRESERVAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO

A Encomendação das Almas em Itaúna constitui-se como um dos mais expressivos exemplos de continuidade e reinvenção das práticas do catolicismo popular em Minas Gerais. A tradição, de origem luso-brasileira, foi retomada em 2014 após anos de interrupção e, desde então, passou a integrar de forma viva o calendário religioso da cidade.

Trata-se de um ritual exclusivamente quaresmal e noturno, marcado por um profundo caráter penitencial. Os participantes, conhecidos como encomendadores, percorrem ruas e cruzamentos do centro urbano após as 22h, carregando velas, terços, lenços e sobretudo a cruz coberta por pano roxo, sinal de luto e penitência no período litúrgico.

À frente do cortejo, um guia conduz a caminhada em silêncio absoluto, sendo a fala reservada apenas aos momentos de canto e oração. O gesto de não olhar para trás, enfatizado pela tradição, traduz a crença de que as almas acompanham os vivos durante o trajeto e podem se manifestar de forma aterradora caso alguém rompa o protocolo do olhar fixo no crucifixo.

O percurso inclui um número ímpar de paradas – três, cinco, sete ou nove – realizadas diante de encruzilhadas, cruzeiros, igrejas ou cemitérios. Cada parada é marcada pelo som seco da matraca, instrumento que desempenha papel ritual central, tanto para iniciar e encerrar cânticos quanto para simbolicamente “acordar” as almas.

A musicalidade surge, então, como elemento-chave: cânticos de entonação lúgubre, como “Alerta, pecador, alerta”, são entoados de forma responsorial, com um “tirador” iniciando os versos e o coro respondendo em uníssono. Esse diálogo sonoro expressa não apenas a intercessão pelos mortos, mas também uma pedagogia religiosa, advertindo os vivos sobre a penitência, o pecado e a necessidade de conversão.

A participação dos fiéis não se limita à rua. Nas casas por onde o cortejo passa, espera-se que os moradores, mesmo sem sair, rezem em silêncio as orações solicitadas – Pai Nosso e Ave Maria – em sintonia com os encomendadores. Desse modo, o ritual cria uma atmosfera que ultrapassa o espaço físico do grupo e envolve toda a comunidade no sufrágio das almas.

Um aspecto singular em Itaúna é o apoio eclesial. Diferente de outros locais onde a prática subsiste de modo residual, aqui padres e paróquias não apenas autorizam, mas incentivam a celebração. Os folhetos com letras dos cânticos são distribuídos após missas, e muitos sacerdotes chegam a participar, ainda que discretamente, como simples devotos, reforçando a legitimidade do rito. Esse amparo institucional fortalece os encomendadores e garante a continuidade da tradição em meio às mudanças sociais e urbanas.

Outro traço de destaque é o uso das novas tecnologias como recurso de preservação e difusão. Além de panfletos impressos, a prática se vale de flyers digitais e QR Codes que direcionam a áudios e vídeos das celebrações. Essa inovação insere a Encomendação das Almas no universo midiático contemporâneo, ampliando seu alcance e oferecendo uma forma de documentação viva da tradição. Ao mesmo tempo, demonstra a capacidade de adaptação da religiosidade popular frente aos desafios da modernidade urbana – como trânsito, iluminação artificial, barulho da cidade e presença de curiosos.

Mais do que uma tradição isolada, trata-se de uma manifestação que atravessa décadas e que, em Itaúna, apresenta um percurso histórico particular. Uma hipótese relevante é que a “Reza ou Procissão das Almas” tenha tido início em 1933, conforme registrado no Livro do Tombo da Paróquia de Sant’Ana, sob a pena do vigário Pe. José Ferreira Neto. Nesse documento, o sacerdote anotou:

“Foi introduzido pelo atual Vigário, o piedoso dos costumes de se fazer no dia de Finados, uma tocante procissão, chamada das almas no cemitério.”

Esse registro permite compreender que a prática, hoje parte da memória coletiva, remonta às primeiras décadas do século XX e já naquele tempo era concebida como expressão tocante da piedade popular.

Do ponto de vista musical e simbólico, os cânticos cumprem múltiplas funções: marcam ritualmente cada momento; reforçam os valores da fé católica; definem quais almas são lembradas e beneficiadas; e orientam os devotos sobre como participar. Eles condensam uma visão de mundo em que a vida e a morte se entrelaçam, reafirmando a esperança na intercessão e na misericórdia divina.

Em síntese, a Encomendação das Almas em Itaúna não é apenas a reprodução de uma tradição antiga, mas sim sua ressignificação. O grupo atual mostra-se capaz de articular fé, comunidade e tecnologia para manter viva uma prática ancestral. O resultado é uma celebração que, a cada Quaresma, percorre as ruas da cidade, entre velas e matracas, como um testemunho da permanência do catolicismo popular. Trata-se, portanto, de uma devoção que une gerações, conecta vivos e mortos e insere Itaúna no mapa das expressões culturais e religiosas de Minas Gerais.


Referências:

Pesquisa e elaboração: Charles Aquino – Historiador Registro nº 343/MG

Imagem meramente ilustrativa criada com IA, inspirada no conteúdo do texto. 

Livro do Tombo da Paróquia de Sant’Ana — 1902 a 1947, p. 30v.

EUFRÁSIO, Vinícius; ROCHA, Edite. A Encomendação das Almas na cidade de Itaúna-MG: cânticos e contexto. In: XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas – 2019, p.1-7. Disponível em: https://anppom.org.br/anais/anaiscongresso_anppom_2019/5631/public/5631-20583-1-PB.pdf

 

terça-feira, agosto 12, 2025

AS TRÊS IMAGENS DE SOBREIRA

A trajetória de um cristão-novo nas Minas setecentistas: da mácula inquisitorial à fundação de marcos sagrados

Manoel Teixeira Sobreira nasceu na freguesia de Vila Cova da Lixa, concelho de Felgueiras, no Arcebispado de Braga — região do Minho, norte de Portugal.

Filho de Domingos Vaz e de Luiza Gonçalves, ambos naturais da freguesia de Borba de Godim, também no concelho de Felgueiras, era oriundo de uma terra marcada por intensas correntes migratórias rumo ao Brasil. 

Movido por esse fluxo, atravessou o Atlântico e, nas Minas do século XVIII, encontrou o cenário propício para construir sua fortuna. Em Vila Rica, destacou-se como negociante e, posteriormente, como abastado proprietário de terras, firmando alianças estratégicas que asseguraram sua inserção e prestígio na sociedade mineradora.

O casamento com Maria Ribeira da Conceição, filha de Manoel Ribeiro Filgueiras — conterrâneo de Vila Cova da Lixa — e de Ana Maria de Campos, natural de Recife, Pernambuco, evidencia o peso das redes de origem como fator de confiança e apoio na mobilidade social colonial. Essas conexões de terra natal eram comuns entre reinóis no Brasil e serviam de base para parcerias de negócios e alianças matrimoniais.

Em 1742 o negociante já residia em Vila Rica, já casado, requereu em Lisboa a carta de familiar do Santo Ofício — cargo honorífico ligado à Inquisição portuguesa. Esse título não apenas conferia prestígio, mas garantia privilégios jurídicos e proteção em disputas, funcionando também como um selo de “pureza de sangue” para quem o obtinha.

O processo, porém, foi interrompido sem despacho final após diligências na sua terra natal revelarem suspeitas sobre sua ascendência. O comissário inquisitorial recolheu depoimentos que apontavam a avó paterna, Ana Ferreira, como filha de Cecília Ferreira, uma mulher solteira que tivera filhos com Henriques Monteiro, judeu castelhano fugitivo da Inquisição.

O relato das testemunhas de que Manoel teria adotado o sobrenome Sobreira (de seu bisavô, o Reverendo Manoel Sobreira) para se afastar do “Henriques” mostra um caso típico de estratégia onomástica para tentar apagar vínculos públicos com a origem judaica. Essa prática — mudar sobrenomes, enfatizar linhagens “limpas”, buscar alianças matrimoniais estratégicas — era comum entre cristãos-novos em busca de aceitação social.

Essa ascendência o inseria automaticamente na categoria jurídica e social de cristão-novo, grupo marcado por estigma hereditário na sociedade portuguesa de Antigo Regime. Embora o batismo o tornasse formalmente cristão, a “mácula de linhagem” — tida à época como transmissível indefinidamente — impunha barreiras a certos cargos e honras, entre eles a carta de familiar do Santo Ofício.

O caso de Sobreira ilustra bem o mecanismo inquisitorial de “prova de limpeza de sangue”, pelo qual a Inquisição investigava não apenas o candidato, mas seus ascendentes e colaterais por várias gerações. A descoberta de um antepassado “contaminado” bastava para reprovar o pleito, independentemente da conduta religiosa do candidato.

Apesar do insucesso na habilitação ao Santo Ofício, Manoel Teixeira Sobreira consolidou-se nas Minas como um agente econômico multifuncional. Em Vila Rica, atuou como comerciante e credor, figurando em ações cíveis — de Alma e de Crédito — na Execução para cobrar devedores, além de emprestar mercadorias — inclusive em operações com outros abastados comerciantes —, o que evidencia circulação de capital e uma rede de parceiros bem azeitada.

Além do comércio, investiu na mineração e na produção rural, garantindo receitas estáveis e expandindo sua influência. Participou da arrematação de contratos régios e obteve sesmarias estratégicas, transformando mercês reais em patrimônio e consolidando-se na elite mineradora do século XVIII. Ao lado da fortuna material, Manoel investiu na paisagem do sagrado, pedindo de Setúbal, Portugal três imagens por promessa: Senhor do Bonfim e duas Sant’Ana. Em contexto setecentista, devoção pública funcionava tanto como expressão religiosa quanto como estratégia de legitimidade — aproximando o benfeitor da comunidade e blindando reputações em tempos sensíveis à pureza de sangue.

Bonfim: o Senhor do Bonfim como padroeiro e identidade

Foi nas terras da Rocinha, onde Manoel Teixeira Sobreira fixara residência, que a primeira das imagens encontrou repouso. Em 1750, já na Fazenda Palestina, no vale do rio Águas Claras, ele obteve licença episcopal para erguer uma capela; ali foi entronizada a imagem do Senhor do Bonfim, núcleo do culto que mais tarde daria lugar ao atual Santuário.

Mais que um objeto devocional, a imagem funcionou como marco fundador do povoado: em seu entorno consolidaram-se vizinhanças, abriram-se caminhos, organizaram-se procissões, e multiplicaram-se promessas e ofertas votivas (os chamados ex-votos, objetos oferecidos aos santos como agradecimento por graças recebidas), estruturando uma sociabilidade centrada na fé, em uma religiosidade que combina o catolicismo tradicional com elementos populares, herdados da tradição ibérica e adaptados ao contexto mineiro.

O nome da cidade de Bonfim é uma homenagem direta à imagem do Senhor do Bonfim. A própria toponímia evidencia o papel estruturante dessa devoção: Bonfim é o nome que substituiu “Bonfim do Paraopeba” após a emancipação e elevação do arraial à categoria de cidade, em 1860. A fé e o reconhecimento popular à imagem foram tão marcantes que influenciaram, inclusive, os registros administrativos e a formação simbólica da comunidade.

 Santana do Paraopeba: a imagem de Sant’Ana e o barroco da fé rural

A história da imagem de Nossa Senhora Sant’Ana em Santana do Paraopeba — distrito do município de Belo Vale/MG — está intimamente ligada aos primórdios da colonização do Vale do Rio Paraopeba e ao desenvolvimento cultural e religioso da região. Erguida como expressão de fé e devoção pelos primeiros colonos portugueses, a imagem representa não apenas um símbolo religioso, mas também um testemunho material do processo de formação social e espiritual do interior de Minas Gerais no século XVIII.

Destinada à então São Pedro do Paraopeba, a segunda imagem de Sant’Ana acompanhou a frente mineradora que Manoel Teixeira Sobreira e o sócio Manoel Machado abriram na região. Por volta de 1735, ergueram no alto de um outeiro uma capela dedicada à padroeira, que rapidamente se tornou o núcleo religioso e organizador do povoado, rebatizando-o como Santana do Paraopeba. A imagem trazida por Sobreira permanece no altar; a capela, de feição barroca, foi restaurada e hoje é bem tombado do município de Belo Vale. A devoção se renova anualmente, sobretudo em 26 de julho, quando peregrinações e festejos reafirmam a memória devocional e a identidade local — sinais da durabilidade do gesto fundador de Sobreira.

A imagem de Sant’Ana, mais que um objeto de culto, representa um elo entre o passado e o presente, entre o sagrado e o território. Sua presença foi determinante para a formação espiritual, urbana e social de Santana do Paraopeba, que por sua vez é parte indissociável da história de Belo Vale.

Itaúna: a Sant’Ana das barrancas do Rio São João Acima

A imagem de Senhora Sant’Ana, padroeira de Itaúna, representa não apenas um símbolo religioso, mas também um marco histórico e identitário da cidade. A trajetória dessa imagem entrelaça-se com a própria formação do município, sendo possível traçar suas origens até os primeiros momentos da colonização da região, ainda no século XVIII.

A imagem depositada em Itaúna foi colocada inicialmente em um oratório simples de taipa de pilão no alto do morro, próximo a um antigo cruzeiro. Estima-se que esse oratório tenha sido erguido por volta de 1739. Foi nesse espaço que a imagem em madeira entalhada, proveniente da cidade de Setúbal, passou a receber as primeiras manifestações de fé da população local. Com o tempo, esse oratório daria lugar à Capela de Sant’Ana, construída com autorização do Bispo de Mariana, Dom Frei Manoel da Cruz, em 1750. A capela foi concluída em 1765 e, no ano seguinte, foi nomeado o primeiro capelão: o padre José Teixeira de Camargos.

A importância da imagem de Sant’Ana transcende sua presença física e simbólica. A devoção à santa impulsionou a nomeação do arraial como “Sant’Ana do Rio São João Acima”, expressão do vínculo afetivo e devocional da comunidade com sua padroeira. A própria origem do nome “Itaúna” não apaga essa marca inicial: antes de ser cidade, o lugar era reconhecido como um espaço de fé e pertencimento sob o manto de Sant’Ana.

Ao longo dos séculos, a imagem acompanhou o desenvolvimento do povoado, atravessando as transformações dos períodos colonial, imperial e republicano da história brasileira. Foi testemunha do surgimento de uma paróquia em 1841, da fundação da Companhia de Tecidos Santanense em 1895, e da emancipação político-administrativa do município em 1901. Em 1961, por Bula do Papa João XXIII, Sant’Ana foi oficialmente declarada Padroeira de Itaúna.

A imagem de Sant’Ana que hoje repousa na Matriz da cidade é considerada uma das relíquias religiosas mais importantes de Itaúna. Trata-se de uma escultura barroca em madeira policromada do tipo “Sant’Ana Mestra” — representando Sant’Ana ensinando a Virgem Maria. É, muito provavelmente, o bem religioso mais antigo do município e está protegida por tombamento municipal.

Seu valor ultrapassa o aspecto material: a imagem carrega consigo um elo emocional com a comunidade, sendo objeto de orações, promessas e peregrinações. Sua presença na vida litúrgica da cidade é marcada, especialmente, pela tradicional festa de julho, celebrada há quase três décadas, reunindo milhares de fiéis em novenas, procissões e outras manifestações de fé.

A imagem em cedro de Senhora Sant’Ana é mais que uma peça devocional — é uma herança cultural que guarda em si a memória da fé dos antepassados, dos pioneiros, das famílias, das comunidades negras e brancas que ali ergueram capelas, cantaram ladainhas e construíram a cidade ao redor da fé. Hoje, protegida como patrimônio tombado, a imagem continua a exercer sua função simbólica de agregação comunitária, memória viva e resistência cultural. Ao preservá-la, Itaúna preserva a si mesma — sua história, sua identidade e sua alma coletiva.

Tutela, casamento e cautela historiográfica

Em 1737, Manoel Teixeira Sobreira requereu a D. João V licença para transportar seus sobrinhos órfãos ao Reino, “debaixo de fiança”, a fim de apresentá-los “em juízo competente” e assumir a tutoria. O pedido descreve quatro menores (“três fêmeas e hum macho”), filhos de Manoel Ribeiro Filgueira; são nomeados Manoel, Anna Maria e Thereza, informando-se ainda que até então a mãe, Ana Maria de Campos, fora sua tutora e administradora.

Dado que outras fontes identificam a esposa de Sobreira como Maria Ribeira da Conceição, filha de Manoel Ribeiro (Filgueira) e de Ana Maria de Campos, é altamente plausível que Maria seja a menor nomeada no requerimento de 1737 — o que implicaria que Sobreira casou-se com uma das órfãs sob sua tutela. A hipótese é coerente com o conjunto documental (parentesco, redes de conterrâneos, cronologia), mas reclama confirmação direta em assento matrimonial e/ou autos de tutela (prestação de contas, termo de exoneração) conforme o direito vigente.

Em regra, tutores que se casavam com tuteladas deviam prestar contas e obter autorização da justiça eclesiástica/cível; rastros dessa tramitação podem constar dos livros de casamentos paroquiais (Vila Rica e entorno) e dos autos cíveis das comarcas.

Em suma, o raciocínio é consistente — mesmos pais, mesma rede e cronologia compatível —, e a identificação de Maria como uma das órfãs é provável. A demonstração cabal, contudo, depende da localização do assento de casamento (com menção da filiação e, idealmente, referência à tutela/dispensa) e/ou de peças judiciais relativas à tutela. A hipótese, agora fortalecida pela menção explícita do nome, permanece historiograficamente prudente até sua confirmação documental.

Cristão-novo

A trajetória de Manoel Teixeira Sobreira, cristão-novo nas Minas setecentistas, condensa as ambivalências do Antigo Regime luso-brasileiro: entre o estigma inquisitorial e a mobilidade social, entre a devoção sincera e a estratégia de legitimação, entre o capital econômico e o capital simbólico. Reprovado na habilitação ao Santo Ofício por “mácula de sangue”, Sobreira não permaneceu à margem: acumulou terras, diversificou negócios, firmou contratos régios e inscreveu o sagrado na geografia de Bonfim, Santana do Paraopeba e Itaúna. Cada uma dessas fundações religiosas, ancoradas em imagens trazidas de além-mar, revela como a fé podia se converter em instrumento de coesão social e em legado duradouro.

As Minas ofereceram condições únicas para a ascensão social dos cristãos-novos, com oportunidades mais rápidas e amplas do que em regiões como a açucareira. Espalhados por todo o território, eles mantinham redes de comunicação que atravessavam fronteiras e conectavam diferentes partes da América e da Europa. Nesse contexto, Manoel Teixeira Sobreira se destaca como exemplo de quem soube transformar essas conexões e oportunidades em patrimônio, influência e memória.

Mais que um proprietário ou negociante de vulto, foi mediador de sentidos e construtor de marcos de identidade coletiva. Ao redor das imagens que introduziu, consolidaram-se arraiais, moldaram-se paisagens e perpetuaram-se devoções que atravessaram séculos. Assim, a biografia de Manoel Teixeira Sobreira ultrapassa os limites da vida individual para se projetar na memória e no patrimônio de comunidades que, até hoje, rezam, celebram e se reconhecem sob a sombra de sua obra.

 Nota final

Esta pesquisa já estava concluída e pronta para ser publicada quando o jovem historiador Filipe Abner fez uma pergunta que mudou totalmente meu olhar sobre Manoel Teixeira Sobreira: sobre a possibilidade de ele e seus antepassados terem sido cristãos-novos.
Essa indagação abriu um leque de informações e conexões que até então eu não havia observado, levando-me a retomar os estudos, buscar novas fontes e aprofundar a análise. O resultado foi uma compreensão mais ampla e precisa de quem ele foi. Agradeço ao historiador Filipe por sua contribuição valiosa e o encorajo — assim como a todos os jovens pesquisadores — a continuar fazendo perguntas instigantes. São essas inquietações que movem a pesquisa histórica e fazem toda a diferença na construção do conhecimento.

Ao longo dos anos, realizamos visitas e pesquisas empíricas nos três locais históricos diretamente ligados à trajetória de Sobreira, acompanhados dos genealogistas Aureo Nogueira, Alan Penido e Alexandre Campos, cujo apoio e incentivo à valorização da história mineira foram fundamentais. Nessas ocasiões, fizemos registros fotográficos e filmagens que contribuíram para documentar e preservar a memória desses espaços. 

                                                    

Organização e pesquisa: Charles Galvão de Aquino – Historiador Registro nº 343/MG

Colaboradores:

Filipe Abner Silva Souza

Dr. Alan Penido

Alexandre Magno Martoni Debique Campos

Aureo Nogueira da Silveira


Referências consultadas:

Fontes Primárias:

ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO – AHU (Portugal). Minas Gerais, caixa 29, doc. 3087, 1737, p.1-8.  Projeto Resgate – BNDigital. Disponível em: http://resgate.bn.gov.br/docreader/017_RJ_AV/20771. Acesso em: 13 ago. 2025.

ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO. Extinção do Tribunal do Santo Ofício e da Inquisição. Portugal. Exposição virtual. Disponível em: https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/tribunal-do-santo-oficio/. Acesso em: 12 ago. 2025.

PORTUGAL. Tribunal do Santo Ofício. Conselho Geral. Diligência de habilitação de Manuel Teixeira Sobreira. Habilitações incompletas, doc. 4695, 1741-1742. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/788ee5ed33844c6392cd1cc2df2333ab .Acesso em: 12 ago. 2025.

Fonte Impressa:

Itaúna em Detalhes – Pesquisa Guaracy de Castro Nogueira - Enciclopédia Ilustrada de Pesquisa. Edição: Jornal Folha do Povo, 2003, fascículo, 2- 6.

Bibliografias: 

NOVINSKY, Anita. Ser marrano em Minas Colonial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 40, p. 203-220, 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/m9BHw96SxvjbjZwVbkvfpqr/?lang=pt . Acesso em: 11 ago. 2025. 

PEREIRA, A. M. Trajetórias individuais: uma proposta metodológica para o estudo dos comerciantes nas Minas setecentistas. Locus: Revista de História[S. l.], v. 22, n. 2, p. 495-496, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20836 . Acesso em: 12 ago. 2025. 

RODRIGUES LOPES, L. F. Os que fracassaram: os candidatos rejeitados pelo Santo Ofício em Minas Gerais Colonial. Locus: Revista de História[S. l.], v. 27, n. 1, p. 215–216, 2021. DOI: 10.34019/2594-8296.2021.v27.31898. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/31898 . Acesso em: 12 ago. 2025.

TRIGUEIRO, Renato. Museu de Cabeceira – Bonfim/MG – Documentário. Belo Horizonte, edição do autor, p, 8-10, 2008.

Sites: 

IBGE – Histórico do município de Bonfim – Disponível: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/bonfim/historico 

Jornal S’Passo – Luiz Mascarenhas, “Capela do Rosário” e “Sant’Ana, nossa Padroeira”. Disponível: https://jornalspasso.com.br/santana-nossa-padroeira/ 

Memorial Santana Belo Vale. Disponível em: https://visitebelovale.com.br/memorialdesantana     

Prefeitura de Belo Vale – Tombamento da Igreja de Santana. Disponível: https://www.belovale.mg.gov.br/pagina/11653/TOMBAMENTO%20IGREJA%20DE%20SANTANA

Prefeitura Municipal de Bonfim – Informações Históricas. Disponível: https://www.prefeiturabonfim.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/conheca-a-historia-de-bonfim/6594 

Prefeitura Municipal de Itaúna/MG – Quadro III Processo Tombamento da Imagem de Sant’Ana Mestra. Disponível: https://www.itauna.mg.gov.br/arquivos/imagem_da_senhora_de_santana_01105806.pdf

Prefeitura Municipal de Itaúna/MG: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Codempace Bens Patrimoniais Tombados e Registrados.  Disponível: https://www.itauna.mg.gov.br/portal/secretarias-paginas/154/relacao-de-bens--protegidos-por-tombamento/

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto. 

sexta-feira, agosto 08, 2025

SANTANENSE 1896

Progresso em Sant’Anna de São João Acima: A Fábrica Santanense em 1896

No final do século XIX, enquanto o Brasil vivia os primeiros anos da República, algumas regiões de Minas Gerais começavam a experimentar os sinais de um novo tempo: o da industrialização. Um exemplo eloquente desse processo pode ser encontrado em um registro publicado em Belo Horizonte, no qual se destacava o desempenho da Companhia de Tecidos Santanense, situada no então distrito de Sant’Anna de São João Acima — atual cidade de Itaúna.

Fundada em 1891, a fábrica já dava sinais expressivos de vitalidade econômica em 1896. Somente naquele ano, a produção alcançou a marca de mais de 300 mil metros de tecidos de algodão, brancos e coloridos, atendendo a uma demanda crescente. O lucro líquido registrado refletia uma gestão eficiente e um mercado consumidor em expansão. A baixa quantidade de tecidos em estoque no fim do ano mostrava que a produção encontrava escoamento rápido, sem acumular-se nos armazéns: havia, portanto, circulação, consumo e retorno.

Mais do que números, o texto revela aspectos fundamentais sobre o modo como o empreendimento se organizava. A diretoria da fábrica contava com figuras proeminentes da elite local. Essa configuração mostra como o capital econômico e o capital político frequentemente se entrelaçavam na condução dos negócios regionais, impulsionando o desenvolvimento com base nas redes de influência locais. Não à toa, o Conselho Distrital, espécie de câmara local, aprovou um voto de louvor ao gerente, reconhecendo o avanço da fábrica como expressão do espírito progressista da comunidade.

E é justamente neste ponto que o texto assume um tom simbólico. Ao dizer que o progresso da fábrica “vem atestar o espírito yankee dos santanenses”, não apenas pela força e dedicação dos empreendedores locais, mas também invoca um ideal de modernidade associado a eficiência, trabalho, inovação. A frase funciona como afirmação de identidade e orgulho regional — Sant’Anna se via (ou queria ser vista) como uma vila moderna, ativa, capaz de competir em igualdade com os centros mais dinâmicos do país.

Entretanto, o entusiasmo não anula a crítica. Mesmo com solo fértil e favorável, a região não tinha um desenvolvimento suficiente no cultivo do algodão, base essencial para o funcionamento da fábrica. A dependência da importação dessa matéria-prima "em rama" é qualificada como “quase vergonhosa”, denunciando uma contradição estrutural: uma fábrica moderna funcionando em uma região que não lhe garantia insumos básicos. Era o retrato de um modelo de industrialização que, apesar do sucesso técnico, ainda carecia de integração com a produção agrícola local. O alerta é claro: o verdadeiro progresso exigia não apenas máquinas e lucros, mas também planejamento e articulação entre diferentes setores da economia.

Este documento, mais do que um simples relatório empresarial, é uma janela para compreender os desafios e ambições do interior mineiro no final do século XIX. Revela como distritos como Sant’Anna de São João Acima buscavam se destacar em meio à economia nacional, apostando na indústria como caminho para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, expõe as limitações de um país que tentava se modernizar, mas ainda enfrentava entraves históricos, como a concentração fundiária, a fraca diversificação agrícola e a ausência de políticas públicas voltadas à integração produtiva.

Para a história de Itaúna, esse texto é uma fonte preciosa. Ele mostra que a origem industrial da cidade não foi mero acaso, mas fruto de estratégias, investimentos e sonhos de progresso. A Companhia de Tecidos Santanense foi um dos pilares dessa transformação — não apenas por suas máquinas, mas pelo que ela representava: uma aposta no futuro, feita com os pés ainda fincados em um passado que resistia a mudar por completo.

 INDÚSTRIA MINEIRA

Lê-se na Capital de Belo Horizonte: “A Companhia de Tecidos Santanense, fundada no próximo distrito de Sant’Anna de São João Acima (1891), teve um lucro líquido de 43:435$057 (Quarenta e três contos, quatrocentos e trinta e cinco mil e cinquenta e sete réis) ou 8% sobre o capital realizado. Durante o ano de 1896 a fábrica produziu 306.089,20 metros de algodões brancos e de cores, tendo estes produtos grande procura.

Em 31 de dezembro o depósito de fazendas era apenas 24:000$000 (vinte quatro contos de réis). A fábrica tem trabalhado com quarenta teares, e montou outras machinas que devem começar a funcionar em junho próximo. É gerente da empresa o senhor João de Cerqueira Lima, sendo presidente o deputado estadual, dr. José Gonçalves de Souza e tesoureiro o senhor Manoel José de Souza Moreira.

O parecer do Conselho Distrital propôs um voto de louvor ao gerente da companhia, cujo estado de progresso é indiscutível e vem atestar o espírito yankee dos santanenses. Lamentamos tão somente, que ali, onde a uberdade do solo compensa todo o trabalho, não se desenvolva em larga escala o plantio do algodoeiro, pois é quase vergonhoso, se é que não o é em absoluto, ver-se o nosso Estado importar algodão em rama!


A análise desse documento permite refletir sobre diversos aspectos econômicos, sociais e culturais da época:

O ano de referência é 1896, período da Primeira República (ou República Velha), em que Minas Gerais buscava redefinir sua posição econômica após o declínio do ciclo do ouro e diante da ascensão do café em outras regiões. O texto evidencia a tentativa de inserção de Minas no processo de industrialização nacional, através da produção têxtil, um dos primeiros setores industriais brasileiros a se consolidar.

A Companhia de Tecidos Santanense é apresentada como um exemplo de sucesso, com: Lucro líquido de 43:435$057 réis, equivalente a 8% sobre o capital realizado, valor expressivo e indicativo de boa gestão e demanda favorável. Produção de 306.089,20 metros de tecidos brancos e coloridos — o que mostra não apenas capacidade produtiva, mas também diversificação de produtos. Baixo estoque no fim do ano (24 contos de réis), sinalizando uma venda eficiente da produção. O dado de que os produtos tinham “grande procura” reforça a ideia de que havia mercado consumidor, tanto local quanto regional, para os têxteis produzidos no interior mineiro.

A fábrica operava com quarenta teares e se preparava para instalar novas máquinas em junho, o que demonstra um processo contínuo de modernização tecnológica e ampliação da capacidade produtiva. Esse dado é relevante para compreender como, mesmo em regiões interiores de Minas, havia esforço em acompanhar os avanços industriais, importando provavelmente equipamentos estrangeiros (possivelmente ingleses ou americanos) ou de centros industriais mais desenvolvidos como São Paulo e Rio de Janeiro.

O parecer do Conselho Distrital, que propõe um voto de louvor ao gerente, demonstra o envolvimento cívico da comunidade com a fábrica. A expressão “espírito yankee dos santanenses” é especialmente significativa: elogia-se a mentalidade empreendedora, associando-a aos ideais de progresso e modernização dos Estados Unidos (referência ao “American way of business”). Essa comparação reforça um tipo de orgulho regional e um desejo de diferenciação positiva dentro do Estado de Minas, sugerindo que Sant’Anna seria um exemplo a ser seguido por sua capacidade de inovar e gerar riqueza.

Apesar do bom desempenho da fábrica, a falta de plantio de algodão na própria região. Considerando que essa era a matéria-prima fundamental para a indústria têxtil, o texto denuncia a dependência de importação de algodão em rama, o que era visto como “quase vergonhoso”.

Isso revela um paradoxo no modelo de desenvolvimento local: havia indústria, mas não havia uma base agrícola de suporte devidamente articulada, resultando em custos mais altos e dependência externa. O autor sugere que, dada a “uberdade do solo” (fertilidade), o cultivo do algodão deveria estar mais disseminado — uma crítica ao atraso agrícola diante do avanço industrial.

Este texto é uma fonte primária importante por revelar: a inserção do interior mineiro no processo de industrialização nacional; a formação de elites industriais locais com base na política e nos negócios familiares; o esforço de modernização industrial e tecnológica; a valorização simbólica da iniciativa privada e do trabalho como formas de progresso; e ao mesmo tempo, a denúncia de desequilíbrios estruturais, como a falta de articulação entre agricultura e indústria.

Para o estudo da história de Itaúna e de Minas Gerais, esse documento reforça a importância da Companhia Santanense como elemento fundacional da cidade de Itaúna, que viria a emancipar-se pouco depois, em 1901. Também serve como base para análises sobre o empreendedorismo regional, a transição entre economia agrária e industrial, e as tensões entre progresso técnico e estrutura agrária tradicional.

 

Referencias:

Organização e pesquisa: Charles Aquino

Fonte impressa:

Jornal “Minas Geraes” - Ouro Preto, MG, 18 de maio de 1897, ed. 130, p.5.

Jornal “Minas Geraes”, Ouro Preto, 17 de novembro de 1891, ed. 248, p.3.

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.

 

quinta-feira, julho 31, 2025

FRANCISCO 1884

 A JORNADA DE FRANCISCO

A narrativa a seguir é uma história fictícia, mas inspirada em documentos históricos autênticos: os anúncios de jornais do século XIX que buscavam capturar pessoas escravizadas que haviam fugido.

Esses registros, como o publicado em 1884 sobre o jovem Francisco, detalhavam com minúcia impressionante as características físicas e comportamentais das pessoas, revelando não apenas o esforço dos senhores em recapturá-las, mas também as marcas físicas e simbólicas de uma sociedade marcada pela violência e pela desumanização.

Ao construir a história de Francisco, buscamos dar vida a essas linhas secas e burocráticas dos anúncios, imaginando as emoções, os medos, as estratégias de fuga e os encontros humanos que não aparecem nos registros oficiais. 

Não se trata de julgar com os olhos do presente, mas de fazer um exercício de empatia histórica: olhar para o passado com profundidade, entendendo o contexto e reconhecendo as resistências silenciosas e corajosas de tantos homens e mulheres.

Esta é, portanto, uma ficção baseada em vestígios reais. Um convite à memória, à escuta do que os arquivos não disseram por completo — e à valorização da luta pela liberdade que moldou a história do Brasil.

 ESPERANÇA DE LIBERDADE

Em outubro de 1884, a Fazenda Medeiros, localizada em Sant’Anna de São João Acima, vivia dias de inquietação. Francisco, um jovem escravizado de 21 anos, tinha desaparecido na calada da noite, deixando para trás apenas um vazio e muitas perguntas. Pardo escuro, de estatura regular, cabelos anelados e uma expressão de determinação que desafiava o destino, ele já não podia mais suportar as correntes invisíveis que o prendiam àquela vida.

Desde cedo, Francisco era conhecido por sua inteligência e habilidade em aprender rapidamente. Apesar do trabalho árduo, ele tinha um espírito forte e alimentava um sonho proibido para muitos: a liberdade. Ele sabia que essa busca era perigosa, mas o desejo de ser dono de si mesmo superava o medo.

Na noite de sua fuga, Francisco aproveitou a escuridão para escapar pelos campos. Guiado pelas estrelas e pelo conhecimento que adquirira ao longo dos anos, ele traçou um caminho rumo às montanhas, onde esperava encontrar abrigo e talvez a ajuda de quilombos. Mas o perigo estava em todos os lugares. Os anúncios espalhados em jornais e a recompensa oferecida por José Ignácio de Mello eram um lembrete constante de que ele era caçado como um animal.

Francisco, porém, era astuto. Para confundir seus perseguidores, adotou o nome de Antônio Modesto e procurou se misturar entre os trabalhadores livres das pequenas vilas pelas quais passava. Sua capacidade de mudar de identidade, bem como sua descrição física marcante — como a verruga em um dos lados do rosto —, tornavam cada dia uma batalha para permanecer oculto.

Nessa jornada, Francisco encontrou aliados improváveis: pessoas comuns que, tocadas pela sua história e coragem, decidiram ajudá-lo. Uma dessas pessoas era Maria Clara, uma jovem viúva que, apesar dos riscos, ofereceu-lhe abrigo e informações sobre rotas seguras. Com o passar do tempo, Maria Clara e Francisco desenvolveram uma conexão profunda, unida pela esperança de um futuro melhor.

No entanto, a rede de caçadores de recompensas estava sempre um passo atrás. Em um momento de tensão, Francisco foi quase capturado ao atravessar uma pequena cidade. Foi salvo apenas graças a um grupo de quilombolas que interveio no momento certo, levando-o para um quilombo escondido nas profundezas da mata.

No quilombo denominado Catumba, Francisco encontrou mais do que proteção; encontrou uma comunidade de resistência, formada por pessoas que, como ele, tinham enfrentado o impensável em busca de liberdade. Lá, ele se tornou um líder, organizando ações para resgatar outros escravizados e lutar contra o sistema que tentava subjugá-los.

Apesar dos desafios, Francisco nunca esqueceu de onde veio nem o preço de sua liberdade. Sua história tornou-se uma lenda entre os quilombolas e as comunidades negras da região. Pouco anos depois, quando a abolição finalmente chegou, muitos se lembraram de Francisco como um símbolo de coragem e resiliência, um homem que enfrentou o impossível para conquistar aquilo que todos têm direito: a liberdade.

 Jornal A Província de Minas, nº 235
Ouro Preto, 27/11/1884

Elaboração: Charles Aquino

Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.

Ouro Preto, 27 de novembro, 1884 Santana de São João Acima (Itaúna/MG).

segunda-feira, julho 28, 2025

LIBERTOS NO PITANGUI

Estudar Pitangui é essencial para compreender a história de Itaúna. 

A Revista de História da UEG publicou o artigo hoje (28/07/2025). O estudo investiga como libertos e suas comunidades articularam fé, reputação, palavra empenhada e estratégias jurídicas para acessar crédito, consolidar vínculos sociais e afirmar sua dignidade em uma sociedade colonial marcada por hierarquias.

Com base em fontes documentais como testamentos, registros matrimoniais, e as chamadas Ações de Alma — processos judiciais em que o juramento religioso era utilizado como instrumento de cobrança de dívidas — o artigo evidencia como a religiosidade popular e o sincretismo afro-cristão sustentavam formas de economia moral e resistência simbólica.

As irmandades leigas, especialmente as compostas por pessoas negras e pardas, são analisadas como instâncias centrais de apoio espiritual, solidariedade comunitária e regulação econômica. Ao integrar práticas religiosas, compromissos de palavra e redes de crédito informal, o texto contribui para uma historiografia que reconhece a atuação dos libertos como agentes históricos fundamentais na construção das sociabilidades no interior mineiro do século XVIII.

A leitura do artigo ganha ainda mais relevância ao se considerar que a atual cidade de Itaúna (MG) teve suas origens no antigo arraial de Santana do Rio São João Acima, que esteve juridicamente subordinado à vila de Pitangui durante o período colonial. Esse arraial, situado às margens do rio São João, funcionava como ponto estratégico de paragem e passagem de tropeiros, comerciantes e viajantes que, partindo da Corte (Rio de Janeiro), cruzavam o interior das Minas em direção à Picada de Goiás, uma das principais rotas coloniais rumo ao centro-oeste.

Esse papel geográfico e logístico inseria o arraial de Santana nas dinâmicas econômicas, religiosas e culturais de Pitangui, influenciando a formação das primeiras irmandades, práticas devocionais e relações creditícias locais. Entender, portanto, a “Pitangui” — com suas estruturas jurídicas, valores comunitários e redes espirituais — é fundamental para compreender as origens históricas de Itaúna e os traços de resistência e ancestralidade que ainda marcam sua cultura popular.


Imagem: Revista História da UEG